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Imigrantes entre a vulnerabilidade e a violência
Vulnerável significa o sujeito ou grupo social que está suscetível de ser exposto a danos físicos ou morais devido à fragilidade em que se encontra, vulnerabilidade é a qualidade desta condição. A vulnerabilidade para acontecer plenamente envolve as condições políticas, econômicas e a ausência de direitos de moradia, segurança, saúde, empregabilidade, entre outros. Ela não existe em si mesma, ela é o sintoma.
Uma forma objetiva da vulnerabilidade é a violência dirigida aos grupos vulneráveis. A violência se constitui como um recurso eventualmente mobilizado para fins políticos, por vezes alimentando também uma barbárie homicida extremamente individualizada. Reitero a análise do destacado sociólogo Michel Wieviorka sobre a falta de debate, a ausência de agentes políticos ou intelectuais capazes de romper o consenso e o silêncio relativo à ausência de direitos. A violência, na análise de Wieviorka, transforma-se necessariamente em objeto de percepções, de representações e de usos – que funcionam por excesso e por carência.
Na medida em que a violência se inscreve no prolongamento de problemas sociais, a carência reforça as modalidades mais fundamentais da dominação, tornando-se inclusive suscetível de ser negada ou banalizada.
É o caso, por exemplo, da perda da alteridade diante da diferença cultural, religiosa, nacional, racial ou de outro tipo, que transformam os diferentes em objeto de fantasmagorias, de medos ou de ressentimentos. Os atores que supostamente incarnam essas qualidades tornam-se suscetíveis, ou seja, tornam-se vulneráveis a ponto de serem diabolizados. A tal ponto que lhes é frequentemente imputada uma violência virtual, que seria quase natural, essencial, até mesmo biológica; essas pessoas são as que realmente sofrem a violência. É sobretudo o caso da imigração e a ideologia construída no Brasil de que os imigrantes não brancos – ou melhor, que não vem dos países centrais, ricos – são tratados como "raças perigosas".
Diante da pandemia, do isolamento social e de todas as consequências das ausências de planejamento para o enfrentamento da crise sanitária pelos governos municipais e estaduais, articulada a uma estratégia pela escolha da morte em massa pelo governo federal, outra tragédia ocorre na cidade de São Paulo. Reafirmo que é outra tragédia, não uma nova.
Na madrugada do dia 17 de junho de 2020, o frentista João Manuel, de 47 anos, foi morto a facadas. Dois outros africanos, ao tentar defendê-lo, foram feridos e hospitalizados. O agressor é um trabalhador brasileiro que exerce a profissão de mecânico. As narrativas de mídia não explicam que, na verdade, a razão da agressão foi xenofóbica e racista, um ataque deflagrado após um questionamento desse brasileiro sobre o pagamento do auxílio emergencial federal para imigrantes.
Todavia, não é o primeiro caso de ataques xenofóbicos contra estrangeiros no Brasil.
Em 2011, na cidade de Cuiabá, o estudante de economia Toni Bernardo, de Guiné-Bissau e da Universidade Federal do Mato Grosso, foi espancado e morto por três pessoas, duas delas policiais militares e o terceiro era filho de um delegado aposentado. O início da agressão, segundo as notícias da época, foi por que Bernardo esbarrou na namorada de um dos envolvidos em uma pizzaria da cidade.
Em 2015, três angolanos foram espancados por policiais militares no bairro do Brás, em São Paulo. As agressões se iniciaram após três homens que estavam em um carro os xingarem de macacos. Houve uma briga entre os grupos, os três angolanos foram autuados pela Polícia Militar, que utilizou de uma abordagem abusiva com insultos, agressões físicas e torturas.
Um caso que marcou a trajetória de imigrantes e refugiados no Brasil no que se refere à violência foi o da estudante angolana Zulmira, de 26 anos, assassinada a tiros em um bar do Brás, na capital paulista, em 2012. Um homem disparou com arma de fogo contra ela e outros colegas. A morte foi antecedida pelos xingamentos de macaco dirigido pelo agressor aos estrangeiros.
A mídia brasileira cumpre seu papel de violência, no caso simbólica, contra imigrantes negros no país. Em 2013, quando ocorreu a entrada de médicos cubanos – não os únicos – contratados pelo Programa Mais Médicos, diversas plataformas informativas classificaram as médicas cubanas como pessoas com cara de empregada doméstica, homens e mulheres como escravos do comunismo, indolentes, incompetentes e que foram trazidos em um avião negreiro. No programa de televisão, o Pânico na Band, o ator Eduardo Sterblitch se utilizou do black face, de grunhidos e gestos exagerados para interpretar, segundo diz no programa, o que para eles seria um africano.
De acordo com Hortense, militante por direitos humanos e advogada nascida na República Democrática do Congo, nos últimos anos existe um aumento da xenofobia e do racismo.
Motoristas de ônibus da região da linha 2727-10 têm se recusado atender aos imigrantes. Após ser assaltado, seu esposo passou a ser seguido ao voltar do trabalho. Em janeiro, um homem foi espancado após retornar da igreja que frequenta.
Esse quadro tem exigido que muitas pessoas da grande comunidade de angolanos, congoleses e camaroneses que vivem no bairro se mudem para outras regiões da cidade por medo.
Antes da pandemia, pesquisas e denúncias já mostravam serem frequentes racismo e xenofobia nos serviços públicos e no ambiente de trabalho, fazendo emergir agora a crise nos serviços de saúde. O que se percebe por essa realidade invisibilizada é um quadro de violência reforçada pela vulnerabilidade que essas pessoas estão vivenciando no Brasil. Essa condição está sendo agravada pelo fato da sociedade brasileira estar conscientemente aumentando a exposição das pessoas ao contágio pelo COVID-19.
A GEOGRAFIA DA PANDEMIA
Muitos imigrantes buscam a Zona Leste da cidade de São Paulo para viver em razão do valor dos aluguéis serem acessíveis. Dados do relatório Georreferenciamento de Pessoas em Situação de Refúgio Atendidas pela Caritas Arquidiocese de São Paulo, publicado 2018, indicam que migrantes vivem principalmente em bairros como a Sé, República, Pari, São Matheus e Itaquera, vários dos quais também têm as maiores taxas de contágio e mortes devido ao Coronavírus. Ainda de acordo com a pesquisa, 55% das pessoas migrantes residem na Zona Leste da capital paulista; 26% no Centro; e 9,5% na Zona Sul.
Contudo, a razão para viverem nesses bairros pode ser, também, o preconceito racial. Trabalhadores transnacionais, imigrantes, refugiados e exilados políticos encontram dificuldade em estabelecer moradia na região central da cidade de São Paulo porque os proprietários não aceitam o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros), além da exigência de fiador, que muitas pessoas não possuem. O preconceito nas imobiliárias é fator determinante, sendo implícita a representação depreciativa em relação ao solicitante por ser originário de algum país africano. E, novamente, a violência simbólica da mídia se expressa em preconceito e discriminação, como relatam pessoas que foram acusadas por "suspeita de tráfico", razão para negar a locação de imóveis. Assim, as periferias da cidade vão recebendo essas pessoas, pois em muitos casos a negociação é diretamente com o proprietário.
Nunca é demais lembrar que o Brasil possui uma Lei de Imigração nº 13.445 /2017 e uma Lei de acolhida a refugiados, de nº 9.474/1997. Ambas, instituem diversos direitos que migrantes e refugiados possuem no país. Mas, ao que a realidade indica, não estão sendo cumpridos pelo Estado e nem respeitados pela população.
Além disso, existe um dever moral e material da sociedade brasileira com imigrantes negros, pois o país é um dos que mais recebeu pessoas do continente africano em um passado não muito distante. Os imigrantes são os responsáveis pela construção das bases econômica, política, social, cultural do Brasil. Ou seja, a dívida histórica com a população negra perpassa pelo respeito à vida de africanos contemporâneos que, à sua forma, estão também contribuindo para o desenvolvimento nacional atual, com seu trabalho, suas culturas, seus valores e seus impostos.
Por fim, o ponto central é que o assassinato de João Manuel evidencia o sintoma de uma violência invisibilizada pela omissão e inépcia do Estado agravada pela ação em casos como a violência policial e as prisões em massa – ações que garantem a manutenção dos lucros e do controle social em cima de um regime de semiapartheid. Mas também é preciso lutar contra o desinteresse de alguns movimentos sociais e lideranças políticas.
Existe uma condição estrutural de violência racial como se vê nos casos mencionados e outros que ainda nem mesmo puderam ser denunciados, relacionados e reforçados por problemas sociais, como a situação do desemprego devido à crise econômica. Esse contexto alimenta a ideologia política da ultra-direita que se dissemina no país junto com a desigualdade racial e problemas de moradia. Apesar de tudo, negadas e, por isso, banalizadas.
Willians Santos é doutorando em Ciências Sociais no IFCH/UNICAMP com pesquisa acerca da trajetória de músicos africanos/as no Brasil. Tem experiências em pesquisas com imigrantes músicos do Leste Europeu no Brasil e brasileiros na França, e com cultura de imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo. É colaborador eventual de jornais e mídias nacionais, assim como pesquisador atuante em teatro, dança, cinema e música afro-brasileira. Trabalha, ainda, com curadoria musical e DJ usando o pseudônimo "DJ Will da Leste".
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Foto da chamada: Johnny Silvercloud. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Conexão Migrante" em branco.
A ocupação "Conexão Migrante" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), para divulgação dos artigos publicados na edição 29 da revista "Conexão Migrante" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.