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Migrantes ambientais: direitos em tempos de COVID-19
Já não é de hoje que os fluxos migratórios ocorrem ao redor do mundo, principalmente quando se trata de catástrofes ambientais. Com a exploração desenfreada e má gestão na utilização dos recursos naturais, há o incremento de desastres naturais a nível global, o que gera um deslocamento em massa de pessoas em busca de locais seguros.
Tais grupos são conhecidos como migrantes ambientais, definidos pela Organização Internacional das Migrações (OIM) como "pessoas ou grupo de pessoas que, devido a alterações repentinas ou progressivas no meio ambiente, foram adversamente afetadas em suas vidas e, devido às condições que se encontram, decidem ou são obrigadas a deixar as suas casas[1]". Entretanto, esse grupo de pessoas é notoriamente ignorado pelas normas em apreço no Direito Internacional, inclusive não sendo citado na definição de "Refugiado" nos termos da Convenção da ONU sobre o Estatuto do Refugiado[2].
Acredita-se que a ausência dessa figura jurídica tenha ocorrido porque, no ano de 1951 (ano de realização da mencionada Convenção), não eram recorrentes as migrações advindas de catástrofes ambientais. Esses desastres aumentaram consideravelmente no período pós-guerra, época em que o aquecimento global cresce exponencialmente devido à intensificação da atividade industrial e a explosão do consumo, ocasionando uma exploração descontrolada dos recursos naturais.
A falta de proteção jurídica desse grupo de pessoas faz com que se tornem vulneráveis perante as políticas de imigração e possuam maiores dificuldades, inclusive para que outros países aceitem suas solicitações de asilo ou refúgio, principalmente em tempos de pandemia. Em 2011, por exemplo, cerca de 1 milhão de haitianos foram forçados a deixar o Haiti por acontecimentos climáticos, muitos chegando ao Brasil através da fronteira com o Acre. O Brasil não os reconheceu na categoria de refugiados ambientais, porém concedeu-lhes visto humanitário e os benefícios entregues às outras categorias de refugiados[3].
Alguns anos depois, os migrantes ambientais são mencionados pela primeira vez na Lei 13.445 de 22 de maio de 2017, que instituiu a Lei da Migração[4] e permitiu que o visto temporário da acolhida humanitária fosse fornecido àqueles que se deslocam por desastre ambiental. Entretanto, nota-se que se não estiverem explicitamente acolhidos pela legislação, corre-se o risco de não conseguirem esses direitos, tendo em vista que há uma ampla margem interpretativa e discricionária do país que os está recebendo. Essas pessoas estão mais vulneráveis em termos de assistência e proteção de seus direitos fundamentais no país em que se instalam.
Ademais, as pessoas que abandonam seu país possuem uma proteção do Direito Internacional que os impede de serem mandados de volta ao seu local de origem e, enquanto esperam a aprovação de seu pedido – um processo que pode levar anos –, ficam em campos e acampamentos. Em muitos países, os migrantes ambientais não são considerados refugiados, podendo ser vistos como um "estrangeiro comum", que pode ser barrado na fronteira e devolvido ao seu país. Nesse caso, podem não ter acesso aos acampamentos.
Atualmente, em meio à crise mundial do COVID-19, até mesmo os que conseguem acesso aos acampamentos correm riscos gravíssimos, estando dentre os grupos mais vulneráveis. O primeiro ponto a ser analisado é a aglomeração nos campos de refugiados. Nesses locais, é quase impossível evitar a propagação acelerada do vírus, e a situação é agravada pela precariedade das instalações. O maior exemplo de superlotação é o campo de refugiados de Moria, na Grécia, cujo espaço disponível por pessoa é de 5m²[5]. Além disso, outro ponto é a dificuldade de acesso ao sistema de saúde. Como os refugiados em campos ainda não estão regularizados, podem sofrer alguma forma de recusa, repressão e preconceito ao buscarem os serviços de saúde, sem contar a barreira linguística ao tentar contatar os médicos e explicar sintomas.
Entretanto, apesar do cenário jurídico e fático, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil tem tomado medidas a fim de diminuir a propagação da doença[6]. Entre elas, podemos citar a disseminação de notícias e informações sobre a pandemia, organizando sessões informativas em abrigos, assentamentos informais e pontos de grande circulação, acompanhamento de casos individuais, além da criação da plataforma "Help"[7], que disponibiliza, em cinco idiomas, diretrizes de medidas preventivas. Também está ocorrendo a distribuição de kits de higiene às populações de Boa Vista e Manaus.
Nota-se, pelo exposto, que toda forma de proteção a esse grupo de imigrantes é importante, incluindo o acesso aos campos e uma melhora sensível nas estruturas e instalações. Porém, não se deve esquecer que o ponto primordial é sua inclusão legítima na legislação internacional, a fim de contemplá-los com seus direitos de refugiados e trazer segurança jurídica ao saírem de seus países, proporcionando condições mínimas de uma vida digna e proteção no país para o qual se encaminham. Não se deve permitir, portanto, que os refugiados possuam uma proteção jurídica que não abarque todos os seus grupos. É uma mudança muito discutida e de grande complexidade, porém, extremamente necessária, tendo em vista que os casos de migrantes ambientais aumentam exponencialmente ao longo dos anos.
Karina Pereira Guimarães Cavalcanti é graduanda de direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e integrante do grupo de pesquisa "Gestão ambiental e desenvolvimento sustentável na perspectiva discursiva" (CNPq).
Laura Magalhães de Andrade é doutoranda do programa de pós-graduação em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense (PPGDIN-UFF), mestranda do programa de Meio Ambiente, Sustentabilidade e ODS da Universidade do País Vasco (UPV/Cátedra Educação Ambiental UNESCO) e líder do grupo de pesquisa "Gestão ambiental e desenvolvimento sustentável na perspectiva discursiva" (CNPq).
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] Disponível em: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/98/05.pdf. Acesso em: 08 mai. 2020.
[2] Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 08 mai. 2020.
[3] Disponível em: https://monitormercantil.com.br/ate-2050-havera-200-milhoes-de-refugiados-ambientais. Acesso em 08 mai. 2020.
[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm. Acesso em: 08 mai. 2020.
[5] Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/07/Como-refugiados-ficam-vulner%C3%A1veis-na-pandemia-do-coronav%C3%ADrus. Acesso em 08 mai. 2020.
[6] Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/03/20/coronavirus-no-brasil-o-que-estamos-fazendo-para-proteger-refugiados/. Acesso em 08 mai. 2020.
[7] Disponível em: https://help.unhcr.org. Acesso em 08 mai. 2020.
Crédito foto da chamada: © UNHCR/Riccardo Gangale. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" em branco.
A ocupação "Cientistas sociais e o Coronavírus" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) para divulgação de artigos selecionados do boletim homônimo, iniciado em março de 2020. Os textos podem ser consultados, também, em formato de ebook. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.