Blog

Compartilhe
Mobilidade Humana e Coronavírus: “A África não é um país”
Ainda era início do mês de abril. No Estado de São Paulo, estávamos há apenas alguns dias desde a determinação oficial da quarentena. Às 10h da manhã, sem atraso, Vensam Iala abriu a câmera de seu computador para conversar conosco. Vindo da cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau, é professor, formado em Letras, e trabalha como ator e modelo. Nossa conversa começa lá em 2010, quando embarcou à São Paulo para estudar.
Na verdade, a Guiné-Bissau tem um convênio com o Brasil, em que eles têm essas relações de trocas culturais e educacionais. Todos os anos, até então, vinham estudantes da Guiné-Bissau para várias universidades brasileiras. E o processo seletivo é feito na embaixada do Brasil nos nossos países, na Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e por aí vai. Eu prestei o vestibular lá, passei e vim para cá.
São Paulo foi o destino escolhido por ser o local onde estava o seu único conhecido no país, seu primo. Apesar disso, só chegando aqui Vensam descobriria que não contaria com a proximidade do parente.
Eu achava que por ser UNESP, Universidade Estadual Paulista, ficaria em São Paulo, capital. Nem imaginei que poderia ser no interior da cidade. Aí cheguei aqui, fui para a reitoria e soube que eu tinha mais 6 horas de viagem. Longe da pessoa mais próxima que eu poderia contar. Que isso faz toda a diferença!

Apenas 15 dias após a sua chegada à capital, então, Vensam iniciaria uma vida universitária em Assis, cidade do interior paulista. Além da formação acadêmica em Letras, seria lá onde iria forjar seu olhar sobre o espaço universitário e sobre as distorções que as relações raciais trazem à sociedade brasileira.
Porque eu venho de um país onde os negros, as pessoas pretas, eram a esmagadora maioria. Então, você entra numa faculdade [no Brasil] e vê só pessoas brancas, e a cultura acadêmica é toda branca, reproduz toda essa visão eurocêntrica de visão do mundo: sobre as filosofias, sobre as literaturas. Isso começou a me incomodar muito porque eu queria ver filósofos, escritores africanos, negros, mas não tinha essa referência e isso começou a me incomodar. E eu percebia que essas pessoas, meus amigos reproduziam conceitos muito equivocados, baseados em estereótipos sobre o continente. Essas narrativas sustentam o estereótipo preconceituoso sobre os africanos e os afrodescendentes.
Então, era necessário que as pessoas, de modo geral, entendessem em primeiro lugar que a África não é um país. Porque as pessoas fazem atribuições à África, como se ela fosse um país, mas a África é um continente com 54 países. Cada país com sua diversidade cultural, multiétnica, multilinguística, e que não se resume só a [uma] África ou “o africano”. Então, são várias Áfricas possíveis e é importante que as pessoas compreendam isso.
Essas reflexões foram crescendo durante os anos de estudos, mas tiveram que esperar o momento oportuno para ressurgirem. Em 2014, já formado, nosso entrevistado enfrentaria outra questão: a dificuldade em exercer sua própria profissão por questões migratórias. Segundo as normas, sua permanência no Brasil tinha como objetivo o estudo, sendo vetado o trabalho em condições formais. Com o diploma na mão, se encontrou, então, na contraditória situação de mesmo querendo, não poder se desenvolver e contribuir profissionalmente por aqui.
Não conseguia entender porque eu me formei, terminei, peguei o certificado, o diploma, e, aí, eu não conseguia trabalhar. Quando você entrava para buscar trabalho, os documentos que você tinha não eram ideais para poder solicitar o trabalho que você queria, mesmo tendo todos os requisitos necessários para exercer!
Durante alguns anos, Vensam se manteve em Assis, trabalhando primeiro em restaurantes e, depois, no setor administrativo de uma empresa local. O contato com o primo seguiu durante todo esse período, assim como as visitas à São Paulo. Isso o ajudou a constituir suas próprias redes na metrópole para, finalmente, em 2019 se decidir pela mudança.

Olha, eu sempre digo que não sei se eu enfrento São Paulo mais do que eu desfruto. Porque é uma imensidão e tudo o que você faz é longe. Gera uma demanda e é muita gente! Então, é um pouco sofrido para quem vem de Assis, pra quem vem de Bissau, que são cidades pequenininhas, 100 e pouco mil habitantes. Aí você vem para São Paulo, que tem 12 milhões? É uma diferença gritante. Então, isso acaba sendo muito cansativo, mas eu tava me adaptando, me acostumando já a essa rotina. Tanto é que agora eu to sentindo falta, parece que alguma coisa falta em mim [por] não poder sair.
Vensam se diz um assíduo frequentador dos SESCs na cidade. Além de usuário desses equipamentos culturais, trabalhava em muitos deles como ator, estando antes da pandemia em cartaz com a Companhia Nova de Teatro. O que diz mais sentir falta, porém, é de observar as pessoas e estar com elas.

Eu gosto muito de olhar as pessoas. Eu sou uma pessoa que observa bastante. Então, eu fico observando tudo. Eu moro [agora] em São Paulo, é muito raro as pessoas se olharem. Cada um tá no seu fluxo, mas ainda assim eu me atento a isso. E o que eu sito falta também é da nossa energia, enquanto comunidade [da Guiné-Bissau]. A gente fica muito tempo muito juntos. Isso é uma coisa muito cultural da Guiné-Bissau. Eu não sei generalizar se é uma coisa bem dos africanos, mas os guineenses têm esse calor, acolhedor, de abraço, de estar juntos, de aglomerar, conversar, enfim, a gente faz isso com uma frequência e agora não dá.
Com a chegada da pandemia e também da quarentena, os encontros entre os guineenses se tornaram cada vez mais escassos. A prioridade, neste momento, é o cuidado mútuo e Vensam nos conta que, além da impossibilidade de paralisação no trabalho, um dos maiores empecilhos tem sido as fakenews.
Temos alguns grupos [de aplicativos] que a gente conversa sobre as medidas de prevenção. Por enquanto todo mundo tá tranquilo. A maioria não consegue, infelizmente, aderir à quarentena, ficar em casa, porque muitos de nós trabalham no setor informal ainda. É uma situação que, de fato, acontece. Muitos trabalham de autônomo, mas tem uma maioria que trabalha nas empresas que ainda estão operando. A gente fica preocupado com eles, mas sempre estamos conversando, reforçando essas medidas. E estão cumprindo e, até agora, tá tranquilo.
O que temos feito mais [é] manter-nos informado, principalmente pelas instituições mais sérias, porque tá rolando muita fake news também. E estamos avisando muitas pessoas a ficarem atentas. Nesse momento de crise, aparecem pessoas muito boas, mas aparecem pessoas más. Principalmente para a gente que é imigrante, muitas vezes tem dificuldade com a língua, com toda essa questão. Então, tem gente que acaba se aproveitando disso também. Dentro da comunidade sabemos que tinha um link circulando para as pessoas colocarem seus dados pessoais e isso pode ser usado para interesses obscuros que a gente não sabe. A gente conversou sobre isso lá. E estamos tomando muito cuidado a respeito disso.
O cuidado à distância e o trabalho de informar as pessoas, porém, não se limitam aos conterrâneos residentes no Brasil. Conectado aos acontecimentos também na Guiné-Bissau, Vensam nos explica porque o preocupa tanto a situação por lá.
Tem uma outra preocupação nossa. Essa COVID chegou na Guiné-Bissau também e [em] alguns outros países do continente. Não se ouve falar muito sobre [esse assunto], mas é uma preocupação nossa. Então, diariamente, sempre quando temos possibilidade estamos conversando com os nossos, nos nossos países, para sensibilizar, reforçar esses cuidados. E no nosso caso, na Guiné-Bissau, é muito difícil falar para as pessoas ficarem de quarentena porque a nossa situação econômica é um pouco complicada. A maioria das pessoas, quase 70 % da população, vive de autônomo e de comércio mesmo. De atividades que dificilmente possibilitariam que ficassem em quarentena. Então, é investir mesmo nessas medidas de prevenção a ferro e fogo e estamos sempre conversando a respeito disso, reforçando.
A marca Visto África

Há pouco tempo instalado em São Paulo, Vensam finalmente pôde dar início a um projeto antigo, que o acompanhava desde Assis.
Eu lancei uma marca que tem uma campanha de sensibilização, de desconstrução. A marca se chama Visto África. A Visto África tem dois objetivos: o primeiro é desconstruir toda e qualquer narrativa eurocêntrica sobre o continente africano. O nosso segundo objetivo tem mais um alinhamento pedagógico, que visa uma construção de uma narrativa sob o olhar dos próprios africanos. De nós próprios, porque nós entendemos muito mais da nossa cultura. Porque toda a nossa cultura, toda a nossa vivência, toda nossa história e realidade quando não é negada é contada pelos outros. Então, nós queremos assumir esse papel de contar a nossa própria história, através da nossa própria visão, nossa própria convicção e conhecimento do mundo.
E nós acreditamos que nosso principal público vai ser o público infantil porque é na infância, nessa primeira fase de educação, que se consegue passar a ideia de uma consciência da diversificação multicultural, da diversidade cultural, da ética, da empatia. E eu acredito que é assim que a gente consegue construir um mundo sem preconceitos. Mas vai se estender e vai alcançar, claro, os adultos, mas estamos focando em fazer alguns livros que contam de uma África, principalmente pré-colonial, essa história que o Ocidente não conta. Eles trazem uma narrativa como se a história da África começasse a partir do navio negreiro. Mas não. Nós queremos trazer uma narrativa que mostre a África antes mesmo da chegada dos invasores. E essa é a ideia da marca.
Quando começava a decolar, a marca de Vensam encontrou no caminho a chegada da pandemia em São Paulo e logo surgiriam as dificuldades em realizar entregas. Apesar dessas novas dificuldades, Vensam nos contou que é ainda maior o intuito de levar adiante a sua iniciativa. A marca é, afinal, uma elaboração necessária e valiosa de suas experiências e de muitos outros. Sua forma de ativismo que precisa alcançar cada vez mais pessoas.
Confiante, ao ser perguntado se queria acrescentar algo mais, nosso entrevistado arrematou:
Só reforçar agora a necessidade de quem puder ficar em casa para não propagar esse vírus, cada um fazer a sua parte pelo bem coletivo. Acho que é importante reforçarmos sempre isso. Porque aqueles que não podem também tomarão bastante cuidado com tudo. Em breve venceremos isso. E, após isso, nós teremos aprendido uma lição, que nos vai fazer pessoas muito melhores, enquanto relacionamento interpessoal e enquanto o mundo mesmo, nossa visão de mundo.
Acesse o perfil @vistoafrica no Instagram, conheça as formas de obter estes e outros produtos e colabore com a campanha!