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Mobilidade Humana e Coronavírus: “É bom a gente poder sempre discutir a garantia dos direitos também”
A conversa com Paulo teve de esperar o fim da tarde, passado o horário comercial, quando terminava seu expediente home office. Jornalista de formação, Paulo Pereira trabalha atualmente para uma revista de publicidade na capital argentina, Buenos Aires, onde vive desde 2013.
Para entender sua chegada àquela cidade, porém, teremos que fazer uma pequena viagem no tempo e também pelo interior de São Paulo, território no qual cresceu e circulou antes de sair pela primeira vez do Brasil. Paulo tem hoje 35 anos e é natural da cidade de Campinas. Ainda pequeno, deixou, junto com seus pais, a casa do avô. Nesse primeiro translado, surgiria tanto uma consciência política, assim como um desejo de frequentar uma universidade, sendo o primeiro da família a fazê-lo.
Meu pai sempre teve uma militância junto com o movimento sem teto, até por isso que a gente mudou para Hortolândia. Foi quando saímos de Campinas que era a casa dos meus avós. A gente morava no mesmo espaço, no fundo da casa. Fomos para a nossa primeira casa, que era uma ocupação do movimento sem teto no interior. Eram terras ocupadas da antiga Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA), a companhia de trens do Estado que tinha terras ociosas. E, então, passa toda essa trajetória da ocupação, da legalização, da luta pela legalização, das leis da terra de uso usucapião e tudo mais, eu cresço neste contexto político. Então, eu sou um caso também que essa militância possibilita o meu acesso a essa bagagem cultural de poder pensar num estudo e em uma universidade. Eu tinha um desejo, mas não sabia como concretizar.
O desejo se concretizaria com o curso de jornalismo na PUC Campinas, custeado por bolsas e estágios. Durante a graduação, Paulo conheceria ainda mais a fundo o interior paulista, ao trabalhar em inúmeras cidades como a própria Campinas, e todo o chamado “Circuito das aguas”, composto por 8 cidades e Amparo, a maior delas onde se localizava a produtora audiovisual que o contratou. A experiência marcante e decisiva, porém, viria no final da faculdade.
Eu gostei muito da minha graduação. A gente apresentou esse documentário que na época se chamou “Mulheres no poder”. Na época, já se discutia a possibilidade de ter uma mulher substituindo o presidente, já se falava sobre isso. E, como estudantes da graduação, com todas as limitações possíveis, a gente queria entender qual era essa mulher que chegava ao poder, o perfil dessa mulher. E aí a gente foi fazer esse documentário sem saber nada de documentário, entrevistando personalidades na política, mulheres no poder institucional. E cara, foi um processo que eu fiquei assim encantado, falei: “é isso que eu quero fazer! ”
Depois de uma passagem profissional por Hortolândia, Paulo inicia um cotidiano estafante de idas e vindas diárias a São Paulo, trabalhando em alguns veículos de comunicação. Surge então a ideia de procurar um curso de audiovisual, “mas no Brasil, era um curso de elite. Era uma fortuna inacessível”. As alternativas então poderiam estar no exterior.
Então eu vi Espanha, era uma possibilidade, se eu conseguisse alguma bolsa de estudos, Estados Unidos era outra vontade, Cuba era a vontade absoluta, de fazer San António de Los Baños (EICTV), mas também tudo muito longe. E Buenos Aires se apresentou como algo muito mais possível, próximo, factível do ponto de vista econômico.
Na época, eu tinha um carro, um Gol 2009, e eu vendi esse carro para poder sub-existir alguns meses em Buenos Aires. E a ideia era um pouco isso: se tudo for muito ruim e dar errado, eu tô a duas horas e meia de avião de São Paulo, ou a 36 horas de ônibus.
Assim, sabendo das “boas escolas de cinema” existentes naquele país, Paulo embarcaria na sua primeira experiência internacional.
Em Buenos Aires
Eu fui trabalhar com turismo na rua Florida, na famosa rua de comercio central. Comecei vendedor para atender brasileiros. Na época, em 2014, tinha muito brasileiro aqui, muito, muito, muito. Também dessa classe média emergente, com acesso ao poder de compra e para muitos era a sua primeira viagem internacional. Então eu fui trabalhar com turismo e eu fui muito bem. Eu conseguia pagar meu mestrado [em cinema-documentário] que não era barato. E era um trabalho sem nenhum vínculo empregatício, com um salário mínimo abaixo do que a lei permitia, com toda essa exploração da mão de obra migrante, quando a gente chega e não consegue nenhum tipo de trabalho.
Após encontrar uma casa para morar também na região central da cidade, encaminhado o trabalho e os estudos, nosso entrevistado conta da percepção sobre a cidade que foi se modificando, os choques e descobertas que foram surgindo da circulação pela cidade.
Eu lembro que uma vez eu saí pro meu horário de almoço. Nessa mesma loja que eu trabalhava no centro. Tem uma praça aqui no centro da cidade, muito famosa, a Plaza San Martin. E ela é muito bonita, muito verde e tal. E no verão, que é um calor insuportável, chega aos 40 graus, úmido, as pessoas saiam dos edifícios, e elas iam comer a sua marmitinha na grama. Eu fiquei muito chocado com isso! Porque quando eu trabalhava, em qualquer trabalho que eu tive no Brasil, a gente não levava marmita para o trabalho. Porque levar marmita é coisa de pobre. Então, você não quer parecer pobre. E ainda mais descer para uma praça e comer uma marmita. É seu atestado de pobreza absoluto né. E eu fiquei chocado porque as pessoas que trabalhavam no banco, nas lojas, todo mundo bem vestido ou malvestido. Foi quando eu comecei a entender que eles ocupavam a rua desde outro lugar. Eles tinham um entendimento sobre a ocupação do espaço público de outro lugar, e isso influenciou no meu entendimento de ocupação de espaço público também.
E foi olhando para o uso do espaço público que Paulo perceberia os primeiros sinais dos impactos que a pandemia traria àquele pais. Ele esperava pela tradicional marcha de 24 de março pela Verdade, Memória e Justiça, um evento de âmbito nacional de memória das violações perpetradas pela ditadura militar (1976-1983), que teve que ser cancelada, quando no dia 20 de março, o presidente Alberto Fernandes decidiu estabelecer a quarentena como medida obrigatória de contenção do vírus.
Para Paulo, a quarentena havia começado uma semana antes, quando voltava de viagem do Brasil. Muito por conta de seu trabalho, ele está acostumado a realizar essa viagem pelo menos 4 vezes ao ano, algo incerto daqui em diante. Desta vez, teve que entrar diretamente para a quarentena, seguindo a determinação do governo para as pessoas que retornavam do exterior.
A pesar de considerar que migrantes brasileiros na Argentina são bem menos expostos a situações explícitas de xenofobia, racismo e mecanismos violentos de exploração quando comparados a outras comunidades imigrantes, um tipo de vigilância geral percebido por Paulo tem sido o disparador de situações de forte tensão.
Tenho conversado com meus amigos, tenho me sentido muito vigiado, desse aspecto porque é um policiamento que não é só institucional. Tem muita polícia na rua, mas [existe] o policiamento também do outro, do vizinho. Tem muita denuncia, sobre gente quebrando a quarentena. É importante dizer que o governo da Argentina tomou medidas muito fortes em relação ao coronavírus. Então, existe uma quarentena de fato no país. Você precisa de justificativa para estar na rua.
E o que a gente tem que analisar como migrante também, e eu volto a dizer de uma migração privilegiada minha, talvez se eu tivesse qualquer outro traço oriental, eu sofreria outro tipo de privação, mas, por exemplo, a gente teve o caso de uma conhecida no grupo [de brasileiros]. Ela tinha acabado de se mudar para um prédio novo. Então, no grupo de WhatsApp do condomínio dela, um morador qualquer passou a exigir que ela mandasse fotos do passaporte dela e da filha, com a data de entrada no país para garantir que elas não tinham acabado de chegar e para ver o transito delas no prédio.
A colega mencionada compõe com Paulo o Coletivo Passarinho, uma agrupação de brasileiros que se organizam politicamente em Buenos Aires. Junto com o coletivo então, Paulo tem tentado compreender o que é possível fazer nessa delicada situação, já que, por um lado, está a necessidade de combate da pandemia e, do outro, a consciência da fragilidade que tem os direitos nessas situações.
O que a gente tem tentado fazer junto com o coletivo era de abrir o diálogo com a comunidade migrante e os outros grupos mais organizados politicamente. E que a gente faça disso não uma reclamação de brasileiros, mas uma reclamação da comunidade imigrante. Mas é isso, não tem muito o que fazer. Em casos extremos você vai na delegacia, registra uma ocorrência e tenta levar isso para o lado jurídico da coisa. O que também barra porque ninguém quer [se expor] como migrante. Você não quer ter esse tipo de problema. Você quer estar até longe [da polícia, das autoridades].
E é bom a gente poder sempre discutir a garantia dos direitos também. Que a pandemia ou qualquer exceção da normalidade, nem sei se essa é a palavra, mas que ela não seja o espaço para os abusos. Em todos os espaços: se a gente for falar do fechamento de fronteiras, o quanto isso é complicado, se a gente for falar dessas restrições, que a gente sempre fale e olhe também para que a lei também proteja os direitos.
Desses casos, o Coletivo Passarinho iniciaria uma campanha de combate a xenofobia durante a pandemia por meio de vídeos e hashtags como #juntossomosmasfuertes, #noalaxenofobia, #juntosfrenamoselcoronavirus, #juntosfrenamoslaxenofobia, mostrando a importância de manter acesa a defesa dos direitos mesmo em meio a mobilização em comum contra o coronavírus.
Paulo nos conta de uma trajetória em que o próprio translado está permeado por lutas políticas, processos de conscientização e formação de desejos – profissionais e estéticos. Foi um desses desejos – de estudar audiovisual – que o levou à vizinha Buenos Aires, estratégica pela proximidade com o Brasil. Com a pandemia, essa proximidade é ressignificada, servindo inclusive como razão para desconfiança em um contexto de vigilância e intensificação da xenofobia. Para nosso entrevistado, porém, essas são questões que vão além dele ou dos migrantes brasileiros. Trata-se de em meio a uma situação de emergência, manter-se sempre alerta para a vulneração dos direitos de todos, mas principalmente daqueles que estão em posições de maior precariedade, dos que costumam ser alvos prioritários de violências no cotidiano.
Crédito foto da chamada: Julieta Sou