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Mobilidade Humana e Coronavírus: "Não tem país livre sem mulheres livres"
Entrevistamos, para essa série, Rawa Alsagheer, de 24 anos, uma mulher com muito orgulho, tal e como ela diz. É palestina, nascida na Síria e mora no Brasil desde 2015. Antes mesmo de entrar na sua história, precisa explicar a do seu pai, que nasceu na Palestina, mas teve que sair para a Síria em 1948, ano conhecido como o Nakba (catástrofe).
Por uma determinação estatal, é garantida a nacionalidade palestina para todos os descendentes de refugiados palestinos nascidos fora daquele território. Com isso, busca-se conservar o direito de retorno dessas pessoas à Palestina. Por isso, Rawa é palestina apesar de ter nascido na Síria. O que, a princípio, é uma vantagem também pode se tornar um desafio para ela, principalmente nos procedimentos burocráticos que são pedidos ao entrar em outros países.
A documentação dos palestinos nascidos fora da Palestina é bem mais difícil do que a de quem nasceu na Palestina ou tem outra nacionalidade porque a gente não tem nacionalidade. Nós não temos passaporte. Temos documentos de viagem. No meu documento tá [escrito] "da Palestina, nascida na Síria". Então, está sem nacionalidade, sem identidade, sem nada de colocar um país específico. Então, por isso, fica bem mais difícil.
Apesar desse mecanismo burocrático, nem mesmo o direito de retorno à Palestina está garantido. Até agora estou proibida de entrar na Palestina, diz Rawa.
Em 2014, ela saiu da Síria para a Turquia por causa da Guerra Civil de 2011, começando um caminho que, finalmente, acabaria no Brasil. O objetivo era se reunir com a família, espalhada naquele momento por outros países. Todos concordaram em se reunir no Brasil. Rawa explica como foi e brinca dizendo que o trajeto feito não parece em nada com a narrativa das novelas.
Eu saí da Síria, em 2014, por causa da Guerra Civil, que aconteceu em 2011. Eu saí de lá no fim de 2014 para Turquia, ilegal, e fiquei lá 7 meses. A ideia era viajar para Europa pelo mar, sabe? Esse caminho... é muito perigoso. Eu tava na Turquia, outro irmão estava na Malásia, outra irmã estava no Egito. Meu pai faleceu na Síria, minha mãe ficou sozinha. Então, cada um estava num lugar diferente, todo mundo ilegal.
Então, por isso, a gente decidiu que não tem nada para perder. Vamos tentar pelo Brasil [que] era a única escolha para a gente entrar legalmente, com visto normal, e viajar de avião. Não é igual que, por exemplo, "Órfãos da Terra"[1] que colocaram para chegar no Brasil pelo mar porque não existe esse caminho.
Primeiro chegou a minha irmã com a família dela, depois veio meu irmão. Depois de alguns dias, eu cheguei aqui. Depois, a gente conseguiu mandar convite para minha mãe na Síria e ela conseguiu vir para cá.
Ao perguntar o motivo pelo qual a família se decidiu pelo Brasil, Rawa explica que não havia tanta opção de destino. A documentação, por um lado, e a segurança do caminho, por outro, foram os principais aspectos que tiveram que ser colocados na balança. Assim, a família se decidiu pelo Brasil, mesmo com o desafio de ter um enorme desconhecimento sobre o futuro país de residência.
Eu sempre falo que o Brasil quem escolheu a gente, nem é a gente que escolheu o Brasil. Porque é o único país que podemos entrar com documentação. Com visto normal, pelo avião, sem perigo. Então, como é a única escolha... O Brasil que me escolheu, não eu que escolhi ele.
Então, [sobre o Brasil] tem três coisas que falam: favelas, máfias e bundas. Então, toda essa imaginação, todas as pessoas que falaram comigo e com a minha família: "Vocês estão loucos? Vocês vão para lá, vocês vão para outra guerra". E a gente decidiu que não tem um país que é tudo favelas. Claro que tem comunidades, mas vamos tomar todo o cuidado.
Porque a gente não conhecia ninguém aqui, nem a língua, nem nada. Então, chegamos como [uma pessoa que] nasceu agora e não tá entendendo o que tá acontecendo. Ou, tipo, alguém que perdeu a memória e não tá sabendo em qual continente [está].
Ao chegarem no Brasil e fazerem a documentação, Rawa e sua família não acharam facilidades. O procedimento para conseguir refúgio não foi algo óbvio ou claro. Além disso, ela afirma que as instituições não estão bem informadas sobre a situação de refúgio e o sistema é de difícil compreensão até para os funcionários.
[Fui] para Polícia Federal para fazer a documentação, pela primeira vez. Eu falava que sou da Palestina, eu coloquei no formulário a nacionalidade palestina. Então, aconteceu um escândalo ali porque eles não entenderam que tem essa questão de documentação, que eu sou refugiada na Síria também. Eu tô pedindo meu segundo refúgio aqui e eles não conseguiram entender.
Neste processo, diz ter percebido o preconceito na interação com algumas instituições, o que atribui ao fato de vir de um país majoritariamente muçulmano.
Eles pegam mais os que são cristãos antes de quem é muçulmano. Eu não sou muçulmana! Eu não sigo nenhuma religião. Mas a minha família é muçulmana. Eu sou da Síria, eu sou da Palestina. Então, para eles, claro que essa mulher é muçulmana.
Finalmente, conseguiu sua documentação de residência permanente, depois de mais algumas dificuldades. Esses atrasos paralisaram completamente sua vida.
Em 2017, depois de dois anos de estar aqui no Brasil, eu consegui pegar meu RNE de cinco anos [de validade]. Eu fui para lá [e vi que] o CONARE escreveu meu nome errado. Eles escreveram mais uma letra no sobrenome da minha mãe. Demoraram seis meses para acertar essa letra só. Eu perdi a faculdade naquele tempo porque tava fazendo um curso e você precisa de RNE para pegar o certificado.
Várias coisas que pararam minha vida. Alugar uma casa, abrir a conta no banco, entrar em um curso, entrar na faculdade... Todas essas coisas precisam de RNE. Com o protocolo [de refúgio] é muito difícil para você fazer.
Diante das dificuldades para obter documento e informações, Rawa reflete sobre a importância de se garantir os direitos dos migrantes e das refugiadas nos países de destino. Na sua compreensão, há um problema para em prática a legislação que seria, supostamente, o garantidor de direitos.
Infelizmente, o governo brasileiro não respeita as leis que eles colocaram. Se aceitar refugiados e se aceitar migrantes, então, você precisa de dar todos os direitos para esses refugiados e imigrantes.
Diferentemente da sua mãe e do seu irmão, que acabaram morando em Santa Catarina, Rawa decidiu ficar em São Paulo. Lá, comenta ter sentido pouca abertura das pessoas, além de não encontrar muitas alternativas de trabalho. A entrevistada explica a relação que estabeleceu na cidade do sudeste brasileiro, lugar que, hoje, considera sua segunda casa, apesar das dificuldades.
Eu prefiro viver em São Paulo. Eu quero andar nas ruas e ver o grafite nas paredes porque eu [me] sinto muito segura. Tipo assim, tem alguém que tá me acompanhando na rua, não tô andando sozinha, tem uma coisa que tá comigo.
Eu senti que São Paulo era meu segundo lugar, minha segunda casa. Até fora as dificuldades que tem São Paulo, das coisas caras, de aluguel que você nunca vai conseguir alugar uma casa... Fora essas dificuldades, eu quero viver dentro de uma cidade misturada, que o racismo não é raro, mas também não é muito. Eu posso, por exemplo, na fila do mercado, abrir uma conversa com uma pessoa que tá na frente. Eu saio dessa fila sabendo a vida dessa pessoa e ela sabe minha vida, sem a gente se conhecer.
Aprender a falar português foi outro desafio importante que ela e sua família tiveram que encarar. Para isso, decidiram que tentariam interagir mais com a sociedade brasileira antes de procurar outros grupos de migrantes árabes. Mesmo sendo mais difícil, a família julgou que a longo prazo seria uma vantagem para aprender português.
A gente decidiu que não vamos chegar perto da comunidade árabe primeiro. Vamos entrar mesmo na comunidade brasileira, para aprender bem rápido, e depois podemos achar pessoas ou comunidade árabe que somos próximos de pensamento, de tradições, de tudo.
Rawa explica como diferentes experiências ajudaram a entender e a falar mais a língua, principalmente vivências no trabalho e pessoas que tiveram disposição e vontade de ajudar.
A área que eu mais consegui aprender português foi a do trabalho. Depois, comecei a trabalhar em restaurantes árabes, que tem uma pessoa [árabe], mas os funcionários são brasileiros, então, para conseguir comunicar.
Depois, quando eu fui para Santa Catarina, meu irmão namorava uma brasileira. Ela não falava inglês, não falava outra língua, só o português, mas foi bom que ela tem muita paciência para te explicar o que tá falando. Ela tem muita paciência para até fazer mimica para você entender. Isso me ajudou muito também.
Mas foi no encontro com outras pessoas que lutavam pelos direitos sociais das mulheres e do povo palestino, assim como os dos migrantes e refugiados no Brasil, que conseguiu articular conversas complexas, aprendendo o vocabulário usado nesse meio.
Quando comecei a trabalhar no Al Janiah melhorou muito meu português porque comecei a entrar na área da política, fui para área de ser ativista social. Então, nesse caso, comecei a pegar todos os vocabulários dessas áreas. Foi aquele momento que consegui montar uma conversa certa em português.
Foi muito difícil achar uma comunidade igual que a que eu tô agora. Uma comunidade de esquerda, que entende a luta para as mulheres e a luta para os refugiados aqui no Brasil. Foi muito difícil encontrar essas pessoas. E, na verdade, foi através do Al Janiah que consegui chegar a estas pessoas.
Em São Paulo, Rawa tentou trabalhar com o que tinha estudado na Síria desde os 14 anos: cinema. Fez mais cursos por aqui, mas sua experiência não foi sempre reconhecida, fato que a levou a decidir se afastar da área.
Eu não consegui trabalhar na área do cinema porque foi bem difícil sempre. Todas as produtoras e empresas me colocavam em um quadro de que “você é refugiado, você não tem muita experiência, você é nova”. Tipo, eu corro [atrás do] meu currículo e eles falam "podemos fazer um documentário sobre a sua história". Meu trabalho é atrás da câmera, não é na frente da câmera, porque já estudei direção, edição e câmera.
[Eu não sai] até que aconteceu uma coisa bem grande que não consegui contornar mais, que foi que uma produtora pediu para colocar “refugiada” na frente do meu nome, nos créditos, para ganhar mais dinheiro. Então, eu prometi para mim mesma de não entrar mais nessa área.
Ao deixar o cinema, Rawa passou a dar aulas de árabe. Além disso, no começo deste ano, após visitar sua família em Santa Catarina, iria realizar um dos seus maiores objetivos: começar os estudos universitários. Porém, a chegada da pandemia dificultou essa continuidade. Os desafios que o ensino à distância traz fizeram com que decidisse esperar até tudo voltar ao normal.
Em fevereiro, eu voltei para São Paulo de Santa Catarina e fiz a matrícula na FMU, das ciências sociais e políticas, já que tá tudo certinho na minha vida, também tenho alunos para fazer minhas aulas de árabe, e PA! Tudo parou. Foi muito difícil. Depois de quatro anos e pouco que eu tô tentando entrar na faculdade e, finalmente, consegui fazer a matricula, consegui passar no vestibular, tá tudo certinho, a vida tá maravilhosa, tá em cor de rosa...
Eu fiquei uma semana na faculdade, depois parou tudo. Quando começou a pandemia, foi meio difícil para mim estudar online. E achei muito difícil porque a professora abre e fica falando, falando, falando. Até os brasileiros não estão conseguindo acompanhar, então, imagina eu. Depois de um tempo tentando ficar de 7-8 horas no computador só tentando estudar. E fora minhas aulas de árabe ficaram online também, então, eu ficava 12 horas, 15 horas na frente do computador. Eu tenho enxaqueca, então, fica pior a situação. Então, nesse caso, decidi que iria parar esse semestre. Quando voltar presencial, eu vou voltar para faculdade.
Além das próprias situações desafiadoras no Brasil, Rawa não deixa de olhar para seu país e as dificuldades que as pessoas passam por lá por conta da pandemia. A nossa entrevistada se preocupa, principalmente, com o que as mulheres estão enfrentando na Palestina e Jordânia, onde a violência contra elas disparou durante o isolamento. Talvez, a violência e o assassinato de mulheres em mãos de seus familiares também seja outra pandemia, não menos importante que a do Coronavírus.
Por outro lado, claro que vou olhar para as notícias que estão acontecendo no meu país. As mulheres estão sofrendo violência dentro das casas, no isolamento. Não tem nem polícia para se proteger, não tem ninguém para defender essas mulheres. Há uns 3 dias, eu vi uma reportagem na Jordânia que as pessoas que morreram por Coronavírus, do começo da pandemia até agora, são menos do que as mulheres que foram mortas por causa das famílias.
Então, imagina, você tem uma comunidade inteira que tá com essa consciência do Coronavírus, mas não tem consciência de proteger as mulheres. [Nem] uma lei que proteja as mulheres que tão sendo mortas pelo pai, pelo marido, pelo irmão. Essa é a questão do mundo inteiro, até aqui no Brasil. [No Brasil] tem números que você pode ligar para se proteger. O problema é que ali, por exemplo, na Jordânia, na Palestina, até esses números não te atendem. Porque tem medo da polícia, tem medo do governo.
Diante dessa situação, Rawa conta como as mulheres da Jordânia e Palestina se organizaram para protestar. Um ato de coragem frente aos ataques abertos à liberdade de expressão delas.
As mulheres saíram em manifestação, hoje [22 de julho] era manifestação na Jordânia, há duas semanas teve na Palestina. Na Palestina, foram os homens em cima das mulheres, mexeram com elas, no meio da rua, bateram nelas e ninguém falou uma palavra. As mulheres ficaram se defendendo, se batendo com os homens.
Essas mulheres que tão saindo, elas não sabem quando vão voltar pra casa. Uma mulher vai ficar pensando: “se eu sair para essa manifestação e meu pai ver um vídeo, que eu tô nessa manifestação, talvez eu vou estar morta igual àquela menina que morreu ontem”.
Rawa faz uma análise sobre como se chegou a este ponto, uma crítica ao colonialismo e à ocupação da Palestina, com implicações importantes de governos e países ocidentais poderosos.
A gente está falando sobre medo e ocupação, leis que não protegem as mulheres, leis que tão colocadas de mil anos atrás até agora e são as mesmas. Até mil anos atrás era bem melhor. As mulheres de 1900 até 1970 eram liberadas, com todos os direitos. Eram mulheres educadas e até as roupas que usavam têm liberdade mais do que agora. Mas vamos falar de 1970, quando os Estados Unidos colocaram os movimentos Islâmicos no Oriente Médio, entre os países árabes, destruíram tudo. E é isso que eles querem. Colocar o veneno na cabeça da comunidade para deixar mais problemas, para eles ocuparem mais e mais, para eles roubarem mais e mais, colonizarem mais e mais, deixar o povo brigar, deixar as mulheres morrerem e ninguém pega o direito. E eles estão ganhando tudo.
Com comprometimento e determinação, defende que as pessoas têm que acordar e lutar para o projeto de sociedade que querem. Faz um chamado às mulheres Palestinas que, sim, tem esse espaço para sair, com uma família que as entende, para tomar atitude e ações diretas. Ressalta o papel das mulheres nessa luta e chama, também, o povo brasileiro a pensar na coletividade e nos outros nesse momento.
A maioria do povo palestino pensa desse jeito. Mas, infelizmente, eles estão pensando desse jeito só para lutar para terra, para sua pátria. Não é para as mulheres. Então, a gente sempre fala: “não tem país livre sem mulheres livres”. Primeiro liberta suas mulheres, depois consegue liberar essa terra.
Meu sonho é que os brasileiros pensem mais cada um, um no outro. Não só no que você acredita, não. Olha, também, para o que as pessoas acreditam e se reúne mesmo porque, para mim, a mudança não vai ser de uma pessoa sozinha, vai ser de muitas pessoas.
Nossa entrevistada explica que ver essas dificuldades acontecendo longe faz com que sinta certa impotência; fica com muita vontade de ir para lá, tentar entrar na Palestina e promover alguma transformação, nem que seja a pequena escala.
Isso também é muito difícil porque eu tô aqui. Tenho um espaço para seguir na minha vida normal e não tô conseguindo ajudar nada ali. Isso que me deixa com muita raiva, que me deixa com muita vontade de pegar minha nacionalidade brasileira e ir para um país árabe, por exemplo, para a Jordânia. Se eu não conseguir entrar em Palestina, pelo menos, [posso] fazer uma mudança pequenininha.
Ao perguntarmos se essa viagem é uma possibilidade, ela comenta que não é tão fácil. Porém, deixa claro que honrar a memória do seu pai é algo que não está em discussão. Mais cedo ou mais tarde, Rawa está determinada a se reunir com a terra que ele deixou, quando completar suas outras metas aqui no Brasil.
Não é uma possibilidade agora porque eu não estou com nacionalidade brasileira. Eu não sei quando eu vou voltar para lá, mas é claro que não vou gastar toda minha vida aqui no Brasil. No final, tem que voltar para a Palestina mesmo, para fazer mudança ali. Ou, pelo menos, voltar para lá só para fazer o sonho do meu pai porque, quando faleceu, falou que o sonho dele era voltar para a Palestina. Então, pelo menos, voltar para lá só para ver, para falar para o meu pai "tá, pode descansar porque eu já fiz seu sonho". Então, não sei, várias ideias sobre isso, mas claro que não vou sair do Brasil antes de pegar o diploma de ciências políticas.
Referência
[1] Telenovela brasileira, de 2019, que tematizou o refúgio.
Foto da chamada: Rawa em um dos seus trabalhos de contação de histórias. Crédito: Tácito Chimato.