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Mulheres e Migração: A representação da mulher migrante em pinturas de artistas italianos e o seu papel na história das migrações para o Brasil
Os importantes fluxos migratórios que se intensificaram no século XIX foram propiciados por uma conjuntura de fatores. Aspectos socioeconômicos, que levaram milhares de pessoas à miséria, políticas migratórias voltadas à ocupação de território e atração de mão de obra barata, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias e meios de transporte capazes de conduzir multidões em uma velocidade sem precedentes na história da humanidade. Por esse motivo, muitos estudiosos denominaram esse período (desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX) como "A Grande Imigração".
Apesar de ter atingido diversas partes do globo, esse deslocamento humano é mais significativo, em termos quantitativos, na rota entre Europa e América, especialmente quando observamos os números relacionados aos Estados Unidos, Canadá, Argentina e Brasil. Em nosso país, a transformação dessas migrações em um fenômeno de massa ocorreu no final da década de 1880 (ainda que, com certa frequência, recebêssemos migrantes desde a década de 1820). Concorrem para essa transformação as milhares de entradas de italianos, principalmente de regiões do norte da península, tais como o Vêneto e Friuli e a Lombardia, em direção aos estados do sul e sudeste brasileiro.
Não cabe aqui nos aprofundarmos nos motivos pelos quais essas pessoas decidiram migrar para o Brasil. Em resumo, podemos sublinhar os fatores citados por Emilio Franzina, como uma série de colheitas escassas, a baixa do preço dos cereais, a diminuição do valor do gado, a escassez de salários, a suspensão de trabalhos pela instabilidade das estações e o rigor do inverno, que reduziram uma massa de camponeses à situação de miséria extrema, subalimentação e exploração[1]. Por outro lado, o Brasil vivenciava o processo do fim da escravidão e desejava atrair mão de obra barata, europeia[2], para o trabalho em zonas agrícolas, particularmente na lavoura cafeeira do oeste paulista em plena expansão.
Uma das estratégias utilizadas pelo Brasil para exortar as pessoas na escolha do país como nova morada foi a concessão de subsídios para migrantes que cumprissem determinados pré-requisitos, além de investimento pesado em propaganda. No estado de São Paulo, a Sociedade Promotora da Imigração[3] revelava que tinha como intenção o recrutamento de famílias ou indivíduos que já possuíssem algum parente residente em solo paulista. Segundo Lucy Maffei Hutter:
"A Sociedade não encontrou dificuldades em recrutar os emigrantes, pois limitou-se, principalmente, a introduzir pessoas que tivessem parentes e amigos domiciliados na província e, para tanto, foram publicados anúncios em todos os jornais de São Paulo, convidando os estrangeiros que quisessem utilizar as passagens gratuitas para suas famílias à se dirigir a diretoria, a fim de solicitá-las. Tão logo a Sociedade iniciou suas atividades, afluíram ao escritório cartas e listas nominais de chamados. Na ocasião, evitou-se dar passagens para famílias de artistas e negociantes, dando-se preferência às famílias de agricultores."[4]
Os desdobramentos dessa política de subsídios e as ações de agentes e subagentes migratórios, que ganhavam por pessoa recrutada, povoou os campos italianos de uma esperança de vida melhor no Brasil. Como resultado, dezenas de milhares de famílias optaram por partir. Saíam quase que em procissão de suas pequenas aldeias em direção aos portos onde aguardavam a partida do vapor. Obviamente esse movimento não passou despercebido pela sociedade italiana; políticos e instituições, como a Igreja Católica, se posicionaram ora contra, ora a favor das migrações e os debates sobre o tema avançaram por anos. Medidas e critérios foram tomados em relação à saída de cidadãos, novas burocracias foram desenvolvidas e outros problemas surgiram, principalmente nas cidades portuárias, como Gênova e Nápoles, que experimentavam dia após dia a chegada de levas de famílias desprovidas de dinheiro e que, muitas vezes, perambulavam pelas ruas e hospedarias da cidade em troca de comida ou uma noite melhor de sono enquanto não conseguiam embarcar.
As cenas relacionadas a esse fenômeno chamaram a atenção de artistas italianos do final do Oitocentos e início do Novecentos. As representações de migrantes italianos podem ser vistas em diversas obras, como pinturas e esculturas de artistas do período. Alguns deles, inclusive, também decidiram por migrar. As pinturas aqui mostradas reforçam uma das características principais da migração italiana para o Brasil: seu caráter familiar. Isso significa, evidentemente, a presença de homens, mulheres e crianças como protagonistas dessa história. Mas como as mulheres, especificamente, foram representadas nessas obras? Os próximos parágrafos trazem algumas breves reflexões sobre o tema.
Em primeiro lugar, é importante destacar uma observação presente em um artigo da pesquisadora Maila Pentucci, que trata da identidade feminina e a Grande Imigração (Itália-Argentina). Nele, a autora cita alguns estereótipos relacionados à figura do homem e da mulher italianos. Enquanto eles (homens) possuem uma imagem mais empreendedora, ligada ao sucesso no trabalho, a capacidade de se arranjar e adaptar em diversas condições, mesmo as consideradas mais difíceis como as geradas pelas migrações, as mulheres conservam traços mais arcaicos, sempre atreladas à esfera do cuidado e da vida doméstica[5]. Essa noção vai ao encontro da reflexão de Gabrieli Simões em um texto sobre o artista Antonio Rocco e as representações da imigração. Para Gabrieli, "sobretudo nas pinturas, à mulher cabe a esfera do sofrimento e a posição de mãe, enquanto que, ao homem, cabe a luta e o guiar pelos novos caminhos".[6]
Para examinarmos melhor esse tema, utilizaremos aqui cinco pinturas, de quatros artistas italianos e um suíço. Comecemos pela deste último, Adolfo Ferragutti Visconti, nascido em Pura, na fronteira entre a Suíça e a Itália. Em 1903, ele apresentou na Bienal de Veneza a obra "Ricordati della mama", ou em português, "Lembre-se da mamãe". (imagem 1). Segundo artigo assinado por Federico Giannini e Illaria Barata, presente no portal Finestre Sull'Arte, o próprio Feragutti escreveu para um amigo que o quadro era "extremamente doloroso". Acrescentam que o pintor omitiu qualquer outro detalhe da narrativa de modo que toda a atenção se volta para a despedida da mãe e os filhos.[7]
Sob aspectos históricos podemos problematizar a obra levando em consideração o que escrevemos anteriormente. Se a migração italiana para o Brasil se caracterizava pela partida de núcleos familiares, por qual motivo o artista retratou a uma mãe se despedindo dos filhos? Apesar de existirem essas características mais gerais, a história da migração não é única. As pessoas, muitas vezes em conformidade com a família ou apoiadas em conselhos de amigos, autoridades, entre outros, tomavam suas decisões e podiam migrar juntos, separados ou, até mesmo, por vários motivos possíveis, deixar que apenas alguns membros da família migrassem.
Esse assunto é, inclusive, abordado no texto de Maila quando analisa aspectos relacionados à conquista de autonomia e emancipação feminina sob a perspectiva não só das mulheres que partiram em direção à América, mas também das que permaneceram na Itália. Outro ponto que podemos discutir é o fato de que, estatisticamente, era mais provável um homem migrar sozinho e, depois, se reunir com a família, seja de um ou do outro lado do Atlântico, do que uma mulher. Assim sendo, faria mais sentido uma cena de um pai se despedindo dos filhos. No entanto, é importante destacar que o artista não está preocupado em elaborar um quadro fiel às estatísticas ou a história em si. A obra não é esse tipo de documento. Talvez uma ponderação mais interessante seria nos perguntarmos o porquê dele ter escolhido retratar uma cena tão íntima e delicada. Um momento de dor, na figura da mãe se despedindo dos filhos. Essa é, entre esses artistas, uma apresentação recorrente da mulher migrante. Ou seja, a mulher estreitamente relacionada à maternidade.
As duas obras seguintes têm como cenário um lugar símbolo do período da Grande Imigração: os portos.
A imagem 2 é uma das pinturas mais famosas relativas à história da migração italiana: "Gli emigranti" (em português, Os Emigrantes), do artista toscano Angiolo Tommasi. Produzida em 1896, a cena se passa no porto de Livorno e mostra diversas pessoas, de gêneros e idades diferentes, aguardando a viagem próxima. Percorrendo os olhos pela obra conseguimos observar diversas cenas, uma espécie de narração, característica de uma vertente denominada de realismo, mas com um caráter social.[8] Algumas personagens femininas se destacam na paisagem. À esquerda, uma mulher grávida. E, ao lado direito dela, uma família com a mulher segurando a mão da criança. Em outro plano, mais à frente, uma jovem amamenta o seu bebê, enquanto, ao seu lado, uma mãe faz das pernas uma cama para seu filho. No primeiro plano, uma mulher, aparentemente cansada, com a mão no queixo, olhando para frente.
A outra obra (imagem 3), ambientada do mesmo modo no porto de Livorno, foi criada pelo artista Raffaello Gambogi em 1894. Também se chama "Gli emigranti" (em português, Os Emigrantes). Diferente da obra de Tommasi, com muitas ações ocorrendo no cenário, a pintura de Gambogi tem como foco as emoções de uma família[9]. O pai carinhosamente beija a filha caçula enquanto a outra filha aguarda seu abraço. As duas mulheres, provavelmente a esposa e uma filha mais velha, cabisbaixas, parecem absolutamente entristecidas pelo momento.
Mais uma vez, surge o tema das mulheres identificadas com a maternidade. E, de certa forma, no caso da obra de Gambogi, conformadas com a partida, desanimadas.
O mesmo arquétipo da mulher mãe aparece em uma obra relativa a outro estágio do processo migratório: a partida da aldeia natal. O artista Noè Bordignon retrata, em "Gli Emigranti" (imagem 4), o começo da jornada de uma família em direção ao porto. O cenário é um campo da região do Vêneto. Os rostos das pessoas parecem mais animados do que aqueles vistos no porto, talvez em razão de uma esperança por uma vida melhor sem ainda enfrentar as dificuldades típicas da viagem e das burocracias que os aguardavam na cidade portuária de destino. Sobre a carroça, uma mãe segura o seu bebê e, entre os personagens que estão de costas, há, aparentemente, uma criança do lado da mulher. Além disso, ao lado da jovem que está em pé, há uma criança agachada. Essa, certamente, era uma cena comum de ser ver no Vêneto no final do século XIX. Mas, mais uma vez, cabe destacar a relação construída entre a mulher migrante e a maternidade.
Por fim, apresentamos a obra "Os Emigrantes", do artista italiano Antonio Rocco, que migrou para o Brasil (imagem 5). O quadro foi pintado em 1910 e adquirido pela Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1918. Em uma extensa análise sobre a obra e seu contexto, o professor Alexander Gaiotto Miyoshi compara o trabalho de Rocco com os de outros dois artistas citados aqui, Tommasi e Gambogi:
"Como seus colegas, Rocco manifestou solidariedade com seus compatriotas, a quem os retratou igualmente resignados e repetindo algumas silhuetas – Gambogi e Tommasi multiplicaram figuras sentadas, de perfil e imobilizadas; Rocco, por sua vez, retratou as pessoas de frente e em pé. No entanto, a pintura de Rocco os mostra mais cabisbaixos e, além disso, a atmosfera é mais obscura (...)." [10]
Podemos acrescentar, ainda, a reflexão proposta por Gabrieli Simões. Além da tradicional figura feminina atrelada à maternidade, a mulher carregando a criança, a autora destaca:
"Pensando ainda que, no caso de Rocco, a criança que encara o futuro – e o espectador – é um garoto do sexo masculino, esse imaginário se reforça. A criança é a pessoa que sente o deslocamento de forma diferenciada, pois crescerá longe das suas raízes e formará sua identidade no conflito do deslocamento. Esta figura é a única que na obra olha, literalmente, para frente, metáfora do futuro. A potência do olhar infantil é grande: coloca o espectador diante do sofrimento mais genuíno que se pode ter e, mais uma vez, está associado a possível força masculina diante da situação adversa."[11]
Discorremos, brevemente, acerca das representações das mulheres migrantes (entre o final do século XIX e o início do século XX) e a construção de determinados estereótipos relativos ao seu papel no processo migratório. Como contraponto à essa visão, podemos apontar, por exemplo, casos de mulheres que migraram sem os seus maridos para o Brasil e acompanhadas dos filhos. Entre o final de 1903 e meados de 1904, quatro mulheres que passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Brás pediram reembolso pelas passagens pagas.
Eram elas, Anna Marques Jesus (portuguesa), que migrou em companhia de seis filhos; Maria de Jesus (portuguesa) e três filhos; Luigia Barbieri (italiana) e cinco filhos, e Raffaella Caretta (italiana) e três filhos[12]. Todas enfrentaram sozinhas a viagem das suas cidades de origem até o porto, tiveram que lidar com burocracias e pagamentos das passagens, cuidaram das bagagens, encarregaram-se das precauções necessárias para a travessia do oceano, resolveram questões relativas à colocação e trabalho na Hospedaria de Imigrantes e, ainda, reivindicaram direitos concernentes às passagens.
Obviamente, como os casos acima mostram, muitas mulheres migrantes eram ou tornaram-se mães, mas suas ações e atribuições não se resumiram à maternidade e vida doméstica. Elas trabalharam nos campos e nas fábricas, resolveram problemas de lá e cá do Atlântico e participaram dos processos de tomadas de decisões das famílias. As mulheres também foram protagonistas da história da migração para o Brasil.
Referências bibliográficas
[1] FRANZINA, Emilio. A Grande Emigração: o êxodo dos italianos do Vêneto para o Brasil. Campinas: Unicamp, 2006.
[2] Indispensável citar também a política para branqueamento da população brasileira. Apoiada em teses eugenistas, intelectuais brasileiros acreditavam que o Brasil só poderia "civilizar-se" recebendo intensas correntes migratórias europeias no intuito de que, com o tempo, o povo brasileiro se transformasse, progressivamente, em um povo mais branco, europeu.
[3] A Sociedade Promotora de Imigração foi criada em 02/07/1886 com o objetivo de promover a imigração estrangeira em larga escala para o Estado de São Paulo.
[4] HUTTER, M. Lucy. Imigração Italiana em São Paulo (1880-1889; 1902-1914). 2ª ed. São Paulo: Huetec, 2018. p. 36.
[5] PENTUCCI, Maila. Identità femminile e Grande Emigrazione. Donne che partono e donne che restano tra le colline marchigiane e la Pampa argentina. Diacronie: Studi di Storia Contemporanea. P. 1. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3621798.
[6] SIMÕES, Gabriele. Antonio Rocco e as Representações da Imigração. XII EHA. Encontro de História da Arte, Unicamp. P. 291. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2017/Gabrieli%20Simoes.pdf.
[7] GIANNINI, Federico & BARATA, Illaria. Quando i migrante eravamo noi. Gli artisti che raccontarono l'emigrazione italiana di fine Ottocento. Finestre Sull’Arte. Disponível em: https://www.finestresullarte.info/opere-e-artisti/quando-i-migranti-eravamo-noi-emigrazione-italiana-nelle-opere-degli-artisti.
[8] GIANNINI, Federico & BARATA, Illaria. Quando i migrante eravamo noi. Gli artisti che raccontarono l'emigrazione italiana di fine Ottocento. Finestre Sull’Arte. Disponível em: https://www.finestresullarte.info/opere-e-artisti/quando-i-migranti-eravamo-noi-emigrazione-italiana-nelle-opere-degli-artisti.
[9] GIANNINI, Federico & BARATA, Illaria. Quando i migrante eravamo noi. Gli artisti che raccontarono l'emigrazione italiana di fine Ottocento. Finestre Sull’Arte. Disponível em: https://www.finestresullarte.info/opere-e-artisti/quando-i-migranti-eravamo-noi-emigrazione-italiana-nelle-opere-degli-artisti.
[10] MIYOSHI, Gaiotto Alexander. Iconografía de la migración: el caso de la acogida brasileña al cuadro Os Emigrantes (1910) de Antonio Rocco. Revista Colombiana de Pensamiento Estético. Dossier: Iconografía y Comparatismo. p. 65. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/estetica/article/view/92195.
[11] SIMÕES, Gabriele. Antonio Rocco e as Representações da Imigração. XII EHA. Encontro de História da Arte, Unicamp. P. 292. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2017/Gabrieli%20Simoes.pdf.
[12] Jornal Correio Paulistano, 1904. Acervo Digital do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.