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Protagonismo e lutas migrantes no contexto da COVID-19
A pandemia da COVID-19 representa um desafio histórico pelos profundos impactos econômicos, políticos e sociais que gera. Contudo, este fenômeno afeta particularmente os grupos mais pobres, vulneráveis, racializados e discriminados da sociedade, tais como as populações migrantes, solicitantes de refúgio e refugiadas.
A partir de 2020, as respostas públicas perante a pandemia, como o fechamento das fronteiras ou o aumento sem precedentes da militarização e dos controles migratórios, limitaram os deslocamentos, provocando um amplo processo de imobilidade forçada. Desta forma, não só diversos projetos migratórios foram interrompidos, como houve, em vários casos, uma suspensão — mesmo que parcial e temporal —, de garantias estabelecidas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, como o direito ao refúgio. Além disso, aumentaram exponencialmente as deportações e muitas pessoas foram obrigadas a migrar ou a permanecer em territórios de trânsito em condições de irregularidade, multiplicando assim a sua vulnerabilidade e os perigos aos quais estão expostas[1].
Para as pessoas migrantes, solicitantes de refúgio e refugiadas que residem entre nós, a perda de emprego, o aumento da precarização e exploração no trabalho, a falta de recursos para pagar o aluguel, e mesmo para se alimentar, foram também alguns dos efeitos da pandemia. Por falta de recursos e de condições para sobreviver, diversos migrantes acabaram retornando aos seus países de origem.
Outras dificuldades enfrentadas por esta população foram os problemas de acesso à documentação, a impossibilidade — em muitos países — de receber atendimento médico ou de ter acesso aos programas sociais e a falta de recursos para o envio de remessas, afetando, com isso, o sustento das suas famílias ou dependentes nos lugares de origem. Cabe também mencionar os problemas de isolamento social e a saúde mental, as dificuldades de acesso à educação e, assim como no resto da população, o aumento dos níveis de violência intrafamiliar e de gênero.
Por outro lado, o uso de expressões xenófobas e estigmatizantes, como "vírus chinês", provocaram um forte aumento de casos de discriminação e de violência contra populações asiáticas, inclusive contra migrantes e seus descendentes radicados no Ocidente. De forma progressiva, o aumento dos níveis de discriminação e xenofobia se estendeu a todos os migrantes e refugiados. A partir da desinformação ou do discurso político xenófobo das autoridades locais, estas populações foram utilizadas como "bodes expiatórios" dos problemas sanitários, econômicos ou sociais dos países. Como destaca o Barómetro da Xenofobia[2], este é, por exemplo, o caso da população venezuelana considerada como um "problema" ou mesmo como uma "praga", em países como Colômbia e Peru. De forma irracional, esta população é vista como responsável por uma série de situações que vão da falta de vagas nos hospitais ao aumento do número de divórcios.
Apesar disso, na América Latina, a pandemia também tem se caracterizado pela atuação de diversas redes de solidariedade e por um significativo ativismo das organizações de migrantes e aliados em torno do acesso à saúde pública, do reconhecimento de direitos ou de garantias de proteção jurídica e financeira, assim como da luta contra a discriminação e a xenofobia. Alguns exemplos são os protestos registrados no começo da pandemia dentro de diversas Estações Migratórias no México, onde as pessoas exigiam a sua liberação devido ao risco de infecção pela COVID-19, ou a apresentação de uma petição ao Tribunal Constitucional do Chile a respeito da Lei de Migração por parte de organizações de migrantes e aliados. Tal petição denunciava o caráter discriminador da lei e a violação de direitos fundamentais que alguns dos seus artigos promove.
Os exemplos formam parte de uma longa tradição de ativismo e lutas migrantes na nossa região. Na América Central, por exemplo, podemos destacar as caravanas migrantes, que, além de seus objetivos práticos, constituem um ato político diante das condições de vida adversas enfrentadas pelos cidadãos desta sub-região[3]. Na América do Sul, diversos dos avanços em termos de livre mobilidade e reconhecimento de direitos alcançados na primeira década dos anos 2000, são também resultado do ativismo e das lutas coletivas de migrantes[4]. Além disso, podemos mencionar a organização de greves e protestos em prol de documentação, direitos e contra a discriminação e a xenofobia. Estas ações constituem expressões da agência migrante, analisada de forma pioneira por autores como Abdelmalek Sayad[5] e estudada de forma crescente por analistas que utilizam enfoques como o da autonomia das migrações[6].
A experiência brasileira
Assim como no resto da América Latina, no contexto da COVID-19, no Brasil, se registraram também diversas formas de ativismo e luta migrante. Embora as demandas sejam heterogêneas e incluam lutas contra a exploração no trabalho, antidiscriminação e anti-xenofobia; protestos e ações contra a deportação; a reivindicação do direito ao retorno e, no caso de comunidades como a boliviana, também mobilizações para manter direitos políticos como o direito ao voto no país de origem; gostaria de destacar dois processos nos quais a agência migrante foi especialmente visível: as lutas em favor da saúde e da visibilidade dos efeitos da pandemia e as lutas em favor da regularização.
No primeiro caso, as demandas se concentraram sobretudo em visibilizar o impacto da pandemia sobre a população migrante, exigindo políticas de saúde pública para atender às necessidades específicas deste grupo. Em maio de 2020, mais de 20 organizações, coletivos e associações de migrantes que trabalham com migração e direitos humanos, como a Missão Paz, o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante - CDHIC, o Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas - Fontié ki kwaze, o Centro de Referência para Refugiados - Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, a Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas, entre outros, prepararam uma carta aberta ao Ministério da Saúde solicitando a inclusão do registro de nacionalidade nos formulários e sistemas da entidade.
Segundo estas organizações e a Rede de Atenção à Saúde de Imigrantes e Refugiados, a ausência dessas informações nos registros do Ministério da Saúde invisibilizou os efeitos da pandemia e impediu a avaliação dos efeitos de outros problemas de saúde na população migrante e refugiada, dificultando o desenvolvimento de políticas públicas. Outras ações desenvolvidas, com o objetivo de visibilizar os impactos da pandemia neste coletivo, foram a criação de uma petição pública na plataforma Change.org, a promoção de debates virtuais, campanhas online e ações de advocacy para aumentar a conscientização da população e das autoridades públicas sobre o assunto.
Como resultado destas ações, em junho de 2020, foi criado o Projeto de Lei PL 2726/2020, elaborado pelo Deputado Alexandre Padilha, do Partido dos Trabalhadores (PT) do Estado de São Paulo. O PL inicialmente exigia a inclusão de um marcador étnico-racial nos dados oficiais de contaminação e mortalidade da COVID-19, mas, devido à pressão de coletivos de migrantes e organizações da sociedade civil, a nacionalidade também foi incluída.
Mais recentemente, em junho e julho de 2021, foi também organizada a etapa regional da Primeira Plenária Nacional sobre Saúde e Migração que teve como tema "Saúde e Migração em Tempos de Covid-19"[7]. A segunda etapa, de caráter nacional, aconteceu entre os dias 09 e 13 de agosto. A Plenária constitui o primeiro grande espaço de escuta e debate entre migrantes, profissionais de saúde, pesquisadores e demais interessados para abordar a saúde das populações migrantes e refugiadas no Brasil. O evento está estruturado a partir de oito eixos temáticos: Gênero e raça; Trabalho e renda; Inserção, cultura e regularização migratória; SUS, seguridade social, acesso à saúde e interculturalidade; Saúde mental; Educação; Gestão biopolítica da pandemia e Moradia. A iniciativa constitui um espaço de vital importância para entender o estado de saúde das populações migrantes e refugiadas no Brasil e visa produzir insumos para subsidiar a construção de políticas públicas fundamentadas nas principais demandas destas populações.
Outro foco central das lutas dos migrantes no contexto da Covid-19 tem sido o ativismo em favor da regularização, o direito humano à migração e a defesa do princípio de que nenhum ser humano é ilegal. Assim como no caso das lutas entorno da saúde, no Brasil, estas ações começaram em maio de 2020, quando as organizações de migrantes lançaram a campanha #RegularizaçãoJá. Esta campanha foi inspirada nas demandas de regularização de emergência criadas em Portugal e, mais tarde, também em países como a Espanha e a Itália. No Brasil, a campanha foi promovida por organizações como a Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por diversos coletivos de migrantes e refugiados, como o Projeto Canicas, Cio da Terra, entre outros. Entre as ações realizadas pela iniciativa, destacam campanhas de mobilização coletiva para dar visibilidade à hashtag #RegularizaçãoJá, promoção de debates, elaboração de petições online e ações de advocacy em favor da regularização.

Um dos principais resultados desta campanha foi a adoção do Projeto de Lei PL 2699/2020, que "institui medidas de emergência para regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19 e toma outras medidas". O PL foi assinado pela deputada Fernanda Melchionna, líder do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Câmara dos Deputados, e apresentado pelo grupo parlamentar PSOL. A proposta se baseia no princípio da regularização migratória para fins humanitários, previsto na atual Lei de Migração. Também estabelece medidas para garantir à população migrante o acesso efetivo ao SUS e outros programas de assistência, como a Renda Básica de Emergência e o Bolsa Família.
Em junho de 2020, como resultado do diálogo entre os coletivos e organizações de migrantes e refugiados que trabalham com migração e direitos humanos na América Latina, foi também lançada a campanha internacional #RegularizaciónYa. A iniciativa incluiu várias ações de mobilização online na Argentina, Bolívia, Brasil, Peru e Chile, bem como iniciativas de conscientização e advocacy a favor da regularização. Além dos diversos movimentos e organizações que atuam na área de migrações na Argentina, Chile Bolívia e Peru, no Brasil, a campanha contou com a participação da Equipe de Base Warmis - Convergência das Culturas, a organização Presença da América Latina - PAL, o Coletivo Magdas Migram, entre outros.
Pedagogia migrante e alternativas para a construção de outros mundos possíveis
Embora o cenário atual se caracterize por um processo global de securitização e criminalização da migração, as lutas migrantes aqui analisadas mostram que, longe de serem apenas trabalhadores, refugiados ou pessoas em busca de proteção internacional, as pessoas migrantes não permanecem passivas diante das injustiças que motivam o seu deslocamento ou das restrições e controle que condicionam as suas vidas, mas sonham, imaginam e tentam construir um mundo melhor para si mesmos, as suas famílias e as sociedades às quais estão vinculadas.
De forma permanente, mesmo em contextos tão adversos, como o provocado pela pandemia da COVID-19, eles e elas se rebelam, resistem e buscam constantemente reconhecimento e direitos, assim como novas e melhores oportunidades de vida. As suas lutas constituem uma pedagogia migrante sobre ética e cidadania que nos convida a questionar as exclusões que caracterizam as nossas sociedades, a repensar nossas formas de organização social e a construir alternativas de convivência.
María Villarreal é doutora em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid e professora permanente do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UNIRIO. Também é co-coordenadora do Grupo de Relações Internacionais e Sul Global (GRISUL)-UNIRIO e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM) e do Projeto (I)mobilidade nas Américas.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] Ao longo do texto, quando não especificado, as informações relativas à situação das pessoas migrantes e refugiadas nos diversos países das Américas, estão baseadas no Projeto (I)mobilidade nas Américas. https://www.inmovilidadamericas.org/. Acesso em 20/06/2021.
[2] O Barómetro da Xenofobia é uma plataforma que analisa conversas no Twitter em relação à população migrante e refugiada de países como Colômbia e Peru. Os relatórios do projeto estão disponíveis no seguinte link: http://barometrodexenofobia.org/publicaciones/. Acesso em 20/06/2021.
[3] VILLARREAL, Maria; ECHART, Enara; CARBALLO, Marta. La agencia migrante en el sistema migratorio de América Latina y el Caribe. In MUÑOZ, Elkin; LÓPEZ, Alexandra; RUÍZ, Miriam. Estados, relaciones de poder y movilidades. Bogotá: Tecnológico de Antioquia, UNIJURIS, UNIMONTES, 2021 (no prelo).
[4] DOMENECH, Eduardo; BOITO, María. "Luchas migrantes en Sudamérica": reflexiones críticas de la mirada de la autonomía de las migraciones. En Cordero, B; Mezzadra, S; Varela, A. (coord.). América Latina en Movimiento. Migraciones, límites a la modernidad y sus desbordamientos, Madrid/México: UACM, Traficantes de Sueños, Tinta Limón, 2019, p. 159-190.
[5] VILLARREAL, María; RIBEIRO, Gisele. Abdelmalek Sayad e o pioneirismo do pensamento pós-colonial nos estudos migratórios. In: DIAS, Gustavo; BÓGUS, Lúcia; PEREIRA, José Carlos Alves; BAPTISTA, Dulce (orgs.). A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad. São Paulo: Educ, 2020. p. 37-62.
[6] PAPADOPOULOS, Dimitris, & MARTIGNONI, Martina. Genealogies of autonomous mobility. In E. F. Isin, & P. Nyers (Eds.), Routledge Handbook of global citizenship studies, 38-48. London: Taylor & Francis (Routledge), 2014.
[7] A Plenária foi organizada pelos seguintes atores: Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante – CDHIC; Central Única dos Trabalhadores – CUT; Grito dos Excluídos Continental; Red Sin Fronteras; Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados; PROMIGRAS-Unifesp; ABA - Associação Brasileira de Antropologia; Cátedra Sérgio Vieira de Mello – UFPR; Instituto Edésio Passos; Del’Ágora; NAMIR – UFBA e IADA – África. Mais informações em: https://www.plenariasaudemigracao.com/. Acesso em 25/07/2021.
Crédito foto da chamada: Matteo Paganelli via Unsplash. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "I (MOBILIDADE) NAS AMÉRICAS" em branco.
A ocupação "(I) Mobilidade nas Américas" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o projeto de pesquisa regional "(In) Mobilidade nas Américas e COVID-19" para divulgação de artigos inéditos, escritos especialmente para esse espaço. O site do projeto de pesquisa, com todos os textos e materiais multimídia, pode ser consultado neste link. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.