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Qual o lugar dos migrantes negros na cidade de São Paulo?
Alex André Vargem*
As migrações africanas contemporâneas no Brasil ocupam um lugar de destaque nas últimas décadas, resultante de uma complexidade de contextos políticos, trajetórias pessoais, travessias, compondo diversas categorias migratórias: pessoas em situação de refúgio, migrantes econômicos, estudantes, correspondendo a mais de 50 mil africanos registrados no país. Em grande parte, os africanos dos países de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs) como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe que se destacam, assim como o fluxo de haitianos para o Brasil, a partir de 2010, decorrente do terremoto que devastou o Haiti e promoveu um deslocamento de mais de quase 100 mil pessoas para diversas cidades brasileiras, fato que provocou a atenção da mídia, da sociedade e dos gestores públicos em nível local e nacional.
No que tange às regionalidades, a cidade de São Paulo possui a maior população afro-brasileira do país, segundo o IBGE, e também possui a maior população migrante do Brasil de diversas nacionalidades, no qual incluem-se as africanas e haitianas, e é de se refletir: qual o lugar que este público migrante negro ocupa na metrópole? Seja do ponto de vista da territorialidade, posição e mobilidade social, seja de outras formas de venda da força de trabalho, ativismo e expressões artísticas. Considerando que São Paulo é uma cidade que possui um apagamento dos territórios negros invisibilizados, decorrentes de uma violência de um processo histórico advindos da escravização de mais de 4 milhões de africanos trazidos ao Brasil, da abolição da escravatura em 1888 e as consequências das políticas de eugenismo que visava o branqueamento da população brasileira em 100 anos, resultando no fluxo de europeus para o país.
Como exemplo, o bairro da Liberdade, que antes da migração asiática/nipônica, era um bairro negro, no qual escravizados eram açoitados em plena praça pública, cena que originou o nome do bairro quando pediam a liberdade de uma pessoa escravizada “Chaguinhas”. Inclusive, o bairro possui a Igreja dos Aflitos e o Cemitério que é um sítio arqueológico no qual eram enterrados negros e indígenas. A praça da Liberdade, outrora conhecida como Largo da Forca, foi rebatizada recentemente (2023) como Liberdade-Japão-África: uma reparação histórica que remete à importância da população negra na região.
Da mesma forma, o bairro do Bixiga/Bela Vista, conhecido como bairro italiano é um bairro que carrega forte influência negra, vide o Quilombo do Saracura, situado no local que funcionou durante décadas a tradicional Escola de Samba Vai-Vai. Entre outros espaços, vale destacar a Praça da Sé, que contou com o traço de Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido por Tebas, arquiteto autodidata negro que também construiu a Igreja do Carmo.
Se o Brasil e a cidade de São Paulo têm um passado mal resolvido com a questão racial negra e toda a sua territorialidade e memória social e coletiva ainda invisibilizada, reivindicados de forma plausível pelos movimentos negros compostos pelo/as afro-descendentes, como lidará com os migrantes negros contemporâneos que encontram no Brasil uma forma de recomeçar suas vidas, considerando que é o Brasil que possui a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria.
Como explicar para migrantes africanos de diversos países, haitianos e demais negros de outras nacionalidades os porquês de alguns serem barrados no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), uma das principais fronteiras do país, mesmo eles estando em situação de refúgio e com todas as prerrogativas jurídicas e administrativas para entrar em solo brasileiro, mantidos na sala dos inadmitidos durante dias, alguns dos quais impedidos arbitrariamente pela autoridade migratória.
No que tange a territorialidade, as raízes do apagamento negro encontram-se também no bairro do Bresser e Brás, justamente onde operou durante muito tempo a Hospedaria de Imigrantes que embora tenha recebido fluxos migratórios diversos, entre eles em sua maioria de migrantes internos, segue sendo evocada principalmente pela passagem de migrantes europeus. Hoje no bairro encontram-se migrantes negros, em grande maioria, que atuam como ambulantes e no cotidiano tentam ganhar a vida, sendo vítimas de violência da sociedade e do Estado. Como Ngange Mbaye, jovem senegalês que foi assassinado em abril de 2025 pela polícia militar enquanto sua mercadoria era apreendida. Exato um ano antes, em abril de 2024, o jovem senegalês, Talla Mbaye, foi assassinado também pelas forças de segurança estadual na região da Praça da República quando foi jogado do quinto andar de um prédio. Soma-se a este histórico o assassinato da estudante angolana, Zulmira Sousa Borges Cardoso, em maio de 2012, que confraternizava com amigos no Bairro do Brás e foi assassinada a tiros por um brasileiro que os chamou de “macacos”, atirando em Zulmira.
Na Praça da República, importante lugar que concentra empreendedores africanos, no mês de maio de 2012, numa tarde de dia de semana, uma mega operação policial deteve 575 africanos e haitianos de forma arbitrária, e os conduziram em ônibus para averiguação da sua situação documental na autoridade migratória, pois alegava-se que eles “apresentavam indícios de irregularidades quanto à situação jurídica de entrada ou permanência em solo brasileiro” [1]. Como a maioria encontrava-se em situação regular, foram soltos no dia seguinte.
Como provocação, os fatos supracitados nos fazem refletir se o processo de eugenia/branqueamento continua em curso? Com novas roupagens institucionais, situações e o drama do vivido. Os imigrantes negros são uma ameaça ao paraíso racial brasileiro?
As migrações negras, africanas, haitianas, afro-latinas, etc, necessitam de um reconhecimento não apenas simbólico da sociedade e do Poder Público referente à sua contribuição histórica, considerando os marcadores sociais da diferença e toda a heterogeneidade de pessoas que participam ativamente da economia, no ativismo e na formulação de políticas públicas, nos processos democráticos, no empreendedorismo, empresariado, de ensinar pedagogicamente o que é África para uma população brasileira que pouco sabe das diversas camadas de complexidade que a compõem. necessário superar a visão de que são sujeitos subalternizados, exotizados, superar a imagem de vítimas passivas à espera de ajuda.
O mito do Brasil acolhedor e o mito da democracia racial, ideologias construídas como forma de romantizar processos de violência contra corpos racializados e migrantizados, necessitam de outros paradigmas críticos da realidade, ainda que numa sociedade marcada por cicatrizes que não se fecharam advindas dos mais de 350 anos de escravidão, cuja população afro-brasileira e agora, a migração negra contemporâea, enfrentam as consequências das adversidades cotidianas na metrópole paulista que se auto afirma cosmopolita.
Foto de capa: Protesto contra a morte do trabalhador senegalês Ngagne Mbaye (Alex Vargem, São Paulo, Abril de 2025)
Referências Bibliográficas
[1] “Imigrantes negros que chegam ao Brasil deparam-se com 'racismo à brasileira', diz sociólogo”. In Revista IHU. 20 de outubro de 2015. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos. Disponível através do link: https://ihu.unisinos.br/noticias/547996-imigrantes-negros-que-chegam-ao-brasil-deparam-se-com-racismo-a-brasileira-diz-sociologo
MALOMALO, B.; VARGEM, A. A. . A imigração africana contemporânea para o Brasil: entre a violência e o desrespeito aos direitos humanos. Diáspora africana e migração na era da globalização: experiência de refúgio, estudo, trabalho. 1ed. Curitiba: CRV, 2015, v. 1, p. 107-123.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, São Paulo; Editora 34; Rio de Janeiro; UCAM, 2012.
VARGEM, Ester Fátima. Imigrantes Africanos no Brasil Contemporâneo: Fluxos e Refluxos da Diáspora. São Paulo. Dissertação de Mestrado em História Social. 2014. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
* Alex André Vargem
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com formação sobre o Direito Internacional dos Refugiados pelo International Institute of Humanitarian Law (IIHL) na Itália. É membro da Comissão de Direitos Humanos, Migrantes e Combate à Xenofobia do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE). É parecerista do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Foi Diretor de Promoção dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e membro do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) em Brasília. Fez parte da Comissão Assessora da Cátedra para Refugiados - Sérgio Vieira de Mello da Unicamp (2019-2021). Entre 2012 e 2016, foi membro da Assembleia Geral da Platform for International Cooperation on Undocumented Migrants em Bruxelas, Bélgica. Foi consultor em migração da Conectas Direitos Humanos (2016-2017). Foi pesquisador do Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB) (2008 -2015). Trabalhou no Instituto Paulo Freire (2010-2014). Há mais de 20 anos atua com migrantes e refugiados africanos e haitianos em São Paulo.
A série “Quem tem medo das cores de São Paulo? - Sobre a xenofobia racializada contra migrantes no contexto paulistano” é uma iniciativa do Museu da Imigração para divulgação de reflexões sobre a discriminação xenofóbica racial. Nosso ponto de partida é de que essa forma de violência impacta muitas das vivências migrantes não-brancas na cidade de São Paulo, nos dias de hoje e num passado recente.
Os textos publicados na série temática não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.