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Quem entra no Brasil? - Entrevista com Oriana Isabel Jara
Uma mulher falando. Foi assim que Oriana Isabel Jara pediu para ser retratada no dia 15 de dezembro de 2015, em uma entrevista realizada pela equipe do Museu da Imigração para o projeto de pesquisa em História Oral "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina no estado de São Paulo". Expoente em diferentes espaços e momentos das mobilizações de migrantes internacionais em São Paulo, Oriana queria ser parte. Mais que ter sua trajetória marcada por algum tipo de excepcionalidade individual, buscava compor com as demais mulheres migrantes uma transformação. Delas próprias e de seus arredores.
A série de publicações "Quem entra no Brasil?" propõe questionar a imagem de que a entrada e a permanência de migrantes internacionais no país é dada de forma uniforme e harmoniosa. A xenofobia existe por aqui, o racismo opera entre nós e as relações de gênero geram diferentes tipos opressão. É com a atuação de pessoas como Oriana, parceira de longa data do Museu, que aprendemos não só a identificar essas dinâmicas na sociedade, mas também – ainda mais importante! – as pistas para combatê-las.
A postagem de hoje da série faz uma homenagem a essa importante referência na luta pelos Direitos Humanos em São Paulo, Oriana Jara, que, infelizmente, faleceu recentemente, no último dia 02 de dezembro. Reproduzimos a seguir, na íntegra, a entrevista em que compartilha conosco parte de sua rica história.
MUSEU: Hoje é dia 15 de dezembro (de 2015) e o Museu da Imigração vai realizar uma entrevista com Oriana Jara para o projeto de História Oral do Museu da Imigração "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina no estado de São Paulo" e estão presentes Tatiana Waldman, Henrique Trindade, Maria Angélica Beghini Morales e nós vamos começar agora. Bom dia.
ORIANA: Bom dia.
MUSEU: Oriana, você pode falar para a gente o seu nome completo?
ORIANA: Bom, é Oriana Isabel Jara Carmona, mas em Chile se usa somente o nome e um sobrenome. Oriana Jara.
MUSEU: E qual que é a sua data de nascimento?
ORIANA: 20 de novembro de 1944.
MUSEU: Você nasceu no Chile?
ORIANA: Nasci em Valparaiso, Chile.
MUSEU: Seus pais têm origem chilena?
ORIANA: Sim, é, o pai e mãe chilenos. Avós tinham pelo lado de meu pai uma descendente de ingleses, não sei quantas gerações. E pelo lado da minha mãe, minha avó materna era alemã.
MUSEU: E você, na sua infância, você passou a sua infância no Chile ou…?
ORIANA: Sim, eu saí do Chile com 21 anos. Passei a infância e juventude. 22.
MUSEU: E quantos irmãos você tinha? Como que era a sua família?
ORIANA: Olha, meu pai e minha mãe morreram com pouca diferença quando eu tinha três anos. Eu sou filha única. Porém, fui criada por uma tia, que passou a ser minha mãe e os filhos dela meus irmãos. Então, eu tenho três irmãos, duas mulheres, um homem, depois eu, que terminei sendo a caçula. E além de ser a caçula, a predilecta de todos.
MUSEU: E você tem lembrança da sua infância no Chile?
ORIANA: Muito pouco. É uma das coisas que eu acho engraçado porque minha lembrança de infância são muito poucas. Me lembro, por exemplo, coisas assim como quando eu fiz a primeira comunhão. Lembro de minha avó materna, que morreu quando eu tinha como que 10 anos, do bairro em que morava, mas não sei se isso é lembrança porque um cerro em Valparaiso que virou famoso e patrimônio cultural. E eu morava em um desses lugares que é patrimônio cultural. Então, aparece tanto nas fotos que não sei se lembro, de verdade, ou é adquirido depois, não? Por memória coletiva.
MUSEU: E quando que você veio, você migrou para o Brasil?
ORIANA: Para o Brasil eu vou por várias migrações. A primeira vez que eu saí foi para ir na França. Estive na França, estudei lá muito jovem. 21 anos. Depois saí com 28 anos a morar lá em Europa, morei em Alemanha, Suíça, Inglaterra e fiquei um tempo. Depois voltei e foi período, voltei antes da ditatura e peguei o golpe de Estado no Chile. Fiquei um tempo a mais e sair a morar na Europa de novo e depois na América Central. E depois cheguei no ano 1980 aqui no Brasil, fui na Argentina em 1985, já com uma filha, a Manoela, e voltei em 95 ao Brasil. Então a minha chegada ao Brasil é a segunda e depois de morar em vários lugares.
MUSEU: E essa experiência de imigrar em vários lugares teve algum motivo? De morar em vários lugares?
ORIANA: Primeiro eu acho que eu sempre queria, eu sentia que eu era cidadã do mundo. Só quando eu imigrei percebi que não era. É porque estudei numa escola francesa, leSacré Coeur, e falava francês, vivi uma vida muito ligada, até pela orfandade, extremamente protegida, mas muito ligada a gente de todos os lugares. Por exemplo, quando eu era criança, na escola, era muito boa aluna. Eu cantava, era bastante destacada e sempre me davam os prêmios as autoridades que vinham de longe. Então essas visitas que chegavam de longe. Que era a superiora máxima da escola, ou embaixador da França ou alguém assim, sempre foi para mim [incompreensível] sentir-me cerca deles que de minha própria realidade. Eu era extremamente sonhadora, escrevi poemas antes dos 14 anos e me publicaram no Chile e estava muito misturada com o mundo de que no era real de uma criança. E eu também muito incentivada e protegida, acredito pelo fato de ser órfã e minha mãe e meu pai, minha mãe ter sido aluna da mesma escola, conhecida toda a minha família. Então acho que eu vivia um pouco numa, como numa redoma diferente porque tudo de, da orfandade até foi um aspecto de proteção, de colocar-me num lugar de destaque que, às vezes, nem tinha tanto, não é? Então, sempre quis ir fora e a primeira vez foi estudar. A segunda vez por uma transferência já casada com meu marido, que ele foi transferido. E a terceira foi porque ele já ficou trabalhando como funcionário internacional. Entonces, foi transferido ele com muita dificuldade de minha parte porque sentia como que eu era levada. Depois percebi que não, isso foi todo um trabalho de luta como mulher imigrante e de luta feminista, de perceber que no se fica quieta, está consentindo. Ninguém te leva, mas demorei em perceber isso, não foi assim de rápido.
MUSEU: E você está no Brasil desde 1995 até...
ORIANA: Morando sim; antes tive de passo, de 1980 a 1983, 1984.
MUSEU: E quais os motivos que trouxeram a sua família para o Brasil, agora em 1995? Por que o Brasil?
ORIANA: Por duas razões. Primeiro esta transferência do meu marido eu já estava em outro posicionamento, já sentia que eu quando ia em outro país estava consentindo, aceitando e assumindo. Mas a segunda razão é porque eu tenho uma filha brasileira. Então, quando falavam de uma transferência, já com mais idade, achei que o Brasil era o único lugar que realmente me interessava pelos ancestrais de minha filha. Minha filha é adotada. Então suas raízes são brasileiras. Então, pensei de ir a lugar, Brasil porque lá aí vai ter a possibilidade de sentir os aromas, as cores que estão no DNA dela, não é? Então essa razão para voltar ao Brasil. Gostava do Brasil, era uma transferência, mas quando falei que sim foi fundamentalmente por dar a minha filha a oportunidade de sentir na sua pele sua origem, né?
MUSEU: Você se recorda de alguma preparação para essa migração para o Brasil? Essa segunda migração para o Brasil em 1995?
ORIANA: Olha, dentro do, voltando um pouco acerca do trabalho, dentro dos livros, das mulheres que nós fizemos acá e que estamos ainda fazendo, e que talvez sejamos parceiros, eu percebi que sim, existe mesmo que inconscientemente. Por exemplo, no caso das mulheres chilenas, a maioria era mulheres rurais que foram a estudar a Santiago porque não existia professor, você tinha só primário na época de essas mulheres. A maioria de nós tínhamos vivido ou com outras famílias, pela migração interna, ou, no meu caso, pela orfandade, ou outras pessoas que já saíram e os pais eram migrantes. Então eu acho que si, existe uma preparação, sobretudo, para ter uma migração bem-sucedida. Eu aprendi desde pequena que você pode morar com uma mãe que não é tua mãe, com irmão que não são teus irmãos e ser perfeitamente normal e feliz. Então, a migração de esse lugar foi uma coisa, é, até desejada, mas muito preparada. E Chile é um país que te incita a migrar, sobretudo antes dos meios de comunicação, estamos fechados pelo mar, a cordilheira, deserto e a Antártica. Então você tem vontade de ver o que existe desde o outro lado. Eu sempre senti que queria migrar, sempre senti que queria morar fora. E também sentia que queria fazer isso porque era cidadã do mundo. Realmente agora não acho não. Mas naquele entonces, eu achava.
MUSEU: E desde... você migrou para o Brasil na década de 1980 e depois em 1995. Quais foram as suas impressões do Brasil, as primeiras impressões do Brasil?
ORIANA: Quando... tudo depende de onde você venha. Por exemplo: quando eu cheguei a Brasil em 1980, eu morava antes na Guatemala. Já tinha um trabalho bem firme e bem independente. Eu trabalhava lá na faculdade de... Sociologia e Política foi aqui... de História e de Direito e era sub-diretora da biblioteca. E estava Guatemala por um período muito interessante que era um préstamo do fundo monetário internacional para comprar materiais, por isso me contrataram. E dava aula em quinto ano de Direito sobre instituições políticas. Eu já me havia formado e estava terminando de fazer o mestrado lá. Então vinha de um lugar que me dava muito, me deu certeza de ser capaz de abrir-me passo, falando um pouco da luta das mulheres imigrantes, de já não ir acompanhando o marido, de não ser mais um, digamos uma mala, não? Ou um pacote que transferem o marido e você vai por organizar a casa, porque eu já tinha feito essa experiência.
Então, a primeira a chegar acá era linda, Brasil eu achava maravilhoso, Guatemala não tinha absolutamente nada naquela época. Tinha o festival de cine francês onde todos os filmes estavam cortados e a gente levava comida e drinque para beber e conversar porque não conseguia ver os filmes então não tinha nada. E chegar a Brasil, a São Paulo com tudo o que São Paulo representava culturalmente era magnífico. E já estava preparada como para saber de pegar um currículo, andar com esta coisinha embaixo do braço e ir apresentar-me para trabalhar e fazer a vida. Então foi muito bom, foi uma das migraciones melhores. Porque em todas as outras ainda eu não sentia força de chegar a qualquer lugar, que ainda tenho, mesmo com 70 anos e saber que eu vou abrir minha vida, espaço e vou fazer o que eu acho que posso fazer. Não sempre tudo o que quero. Mas quando eu cheguei acá era isso, um lugar enorme, colorido, maravilhoso. Nem sequer eu sabia o grau de liberdade mental que ia adquirir aqui. Porque adquiri muita em essa primeira migração.
Cheguei, por exemplo, lembro que o primeiro que assisti na televisão à noite foi um programa entrevistando Paulo Freire, que eu adorava, já conhecia; Brasil conhecia muito pouco. E pouco depois, o Chico Buarque. Para mim o único amor de minha vida era Chico Buarque, ou seja, eu deixava marido, vida, casa, tudo se ele falasse "vem comigo" eu ia, não é? Então isso já à noite. E a terceira entrevista foi a Simone, a cantante, com música; nessa época estava o programa Malu Mulher na televisão, que foram muito marcantes mesmo para os brasileiros. E a Simone falando de sua condição de sexual, que para mim era uma abertura assim, de ficar com os olhos arregalados, porque eu não tinha escutado nem na Europa porque na Europa, por exemplo, França que eu estive na época em Marcoussis, na Sorbonne, era tudo muito intelectual, muito de falar, e isso eu era esperta. Uma coisa era falar e sentir-se liberal e falar da revolução e liberação, mas outra coisa era sentirlo na pele e no corpo e assumir isso. Isso me deu a primeira migração para o Brasil.
MUSEU: E ouve algum estranhamento cultural, alguma coisa que te marcou no sentido de um embate, alguma coisa que era muito diferente do que você estava acostumada?
ORIANA: No Brasil?
MUSEU: Sim.
ORIANA: Não, não, não. Ao contrário talvez se tivesse chegado antes, talvez se tivesse chegado mais nova. Mas já tinha feito um percurso interno muito forte, parte importante da migração também e que outras pessoas podem ter vivido no Brasil, mas que para mim se deu na Europa, se deu de sentir-me diferente, de assumir-me latino-americana, e tudo outra história. Mas concreto em Brasil, não. Era uma coisa… o único estranhamento que agora lembro, sim, eu fui morar em Pinheiros perto da praça Pan-americana, uma casa linda que tinha destas coisas assim, mas com buraquinhos, era de pedra, não era assim de tijolo. E vi baratas, como se chama: baratas ou cucarachas? Baratas que voavam. Eu queria morir. Nunca tinha visto baratas, para mim baratas em país frio, você tem que ser enfermo de sujo, só estão em lugares, aterro sanitário ou coisas assim. E as baratas voavam por essa casa linda e maravilhosa que eu tinha. E outro são os mosquitos. Eu pensei no 80, que me picavam os mosquitos, e não havia toda essa contaminação, que ia ter que voltar, chorava pensando: "vou ter que ir embora porque tenho reação", agora menos, mas tinha reação alérgica por cada picada saiam como trinta. Então eu estava cheia de picada e falei: "vou ter que ir embora, não vou conseguir". Isso foi, mas quanto as pessoas nada, absolutamente nada.
MUSEU: A língua não foi um impedimento?
ORIANA: Não foi para nada porque, uma das primeiras coisas que eu fiz depois de instalar a casa e ainda sem móveis, que peguei os meus documentos e me fui a Faculdade de Sociologia e Política. Eu já estava acostumada, já sabia. Inclusive tinha pagado um mico grande em Guatemala, que já comecei a fazer, mas como era nas primeiras vezes e toda mulher vai entender isso, eu cheguei a falar com o diretor que era Gaitán, que tinha sido vice-presidente da República em Guatemala e que era muito conhecido. Mas, você e a vantagem que você tem de ir a outro país que você, como não conhece ninguém, também trata todo mundo igual coisa que é até bom porque as pessoas que são importantes estão tão acostumadas que tratem diferente que isso te abre porta. Eu não sabia. Me sentei e, graças a Deus, esse senhor tinha feito uma pós-graduação no Chile porque percebi que estava fazendo ridículo depois. Porque para nós mulheres era tão difícil ser aceita em um âmbito intelectual para ser contatada que você se sobrevendia, sem perceber. E em Chile ainda mais. Porque parecia, na Argentina também, eu também morei na Argentina e no Uruguai também. No cono sur você parece que tem que fazer esforço para que acreditem que você é pessoa e que vale. E mulher com maior razão se até homem faz isso. Mulher com maior razão. Eu fiz isso aí, graças a Deus, e ele muito gentilmente me contou de Chile e quando falou de Chile, não me lembro bem que que falou que eu senti a sensação de estranhamento, de ridículo, de um país muito mais humilde, América Central onde o que te fale "mande", em vez de o que você deseja, mande, ordene. E estava fazendo como um pavo real assim.
Essa foi uma coisa, e isso eu já tinha aprendido acá, então cheguei e fui com os meus documentos de uma forma bastante colorida assim, lembro de ter colocado uma roupa muito colorida, não de preto que eu usualmente uso e cheguei a Fundação de Sociologia e Política na Rua General Jardim. E levava os documentos e falei com a moça da recepção que eu queria fazer doutorado que estava defendendo a tese de mestrado, então falou, e eu não queria pagar. E nessa manhã conversei com a pessoa que não lembro o nome que era chefe dos coordenadores aí e eu fiquei matriculada, trabalhando, orientando tese de sociologia da educação aí na Fundação e na semana seguinte estava trabalhando, foi facílimo. Então não senti nenhum estranhamento. O que sim, mas mais de minha parte, cometer erros e perceber os erros igual que em Guatemala. Lembro que estava, eu trabalhava na Fundação às segundas pela tarde, de 2h até 6h, 7h e quinta à noite, estava numa sessão da noite com pessoal que vinha do interior. E nessa época a Fundação de Sociologia e Política era dirigida pelo fundador Rubbo Müller ainda, ele ainda ficava lá. E esse dia ele estava aí, e ele gostava muito de mim, realmente, era muito gentil, todo mundo era muito gentil. Também estava o tema da ditadura e você... todos os países que iam chilenos, te tratavam com muita gentileza porque sempre presumiam que você tinha vivido muitas dores que, às vezes você viveu e outras não. E lembro que estava conversando com um grupo de pessoas que vinham do Nordeste, eram da área de enfermaria, que eram orientados, orientandos que eu tinha. E o Rubbo, me lembro que estava essa outra pessoa que era o chefe falou algo, uma coisa totalmente certa e que depois percebi que criava conflito, nós imigrantes do cono sur falamos de uma forma muito categórica. Não estamos acostumados a "eu acho", "eu acredito que". Em essa época, para mim, "eu acho" me irritava, mais nesse vínculo de orientação porque se estavam apresentando o paper deles, me falavam em "eu acho", eu falava: "bom acha, acredita ou é?" E aí percebi porque ele falou para os alunos "nossos irmãos do cono sur quando falam, falam em forma categórica. Mas não se preocupem não, vocês podem falar que não é assim, discutir porque para eles é normal, é assim que fala". E aí percebi que sim, que nós tínhamos uma forma de falar que criava constrangimento aos nacionais, nesses vínculos. E dificuldades, provavelmente, em outros, não é? E que a Argentina tem um pouco a mais do que nós, sobretudo o porteño. Então não foi tanto de eu sentir; pelo contrário, quando sentia era que eu estava sendo inadequada para o que era o mundo nesse momento, mas porque todo o outro eu o vivi na Europa.
MUSEU: Alimentação, clima, nada assim estranhou?
ORIANA: A umidade. A umidade. Eu me lembro, mas em Panamá também foi pior. Que a primeira sensação quando eu chegava, voltava de Chile, você descia no avião, em São Paulo menos. Mas quando você ia para o Rio e outro essa umidade assim: "pufff", esse calor úmido. Mas, nada que perturbasse demasiado.
MUSEU: Oriana eu queria saber, você falou do mestrado, do doutorado, de orientações, eu queria saber um pouco da sua formação. Você, que graduação que você fez, você falou do mestrado.
ORIANA: Eu fiz várias coisas. A primeira coisa que eu fiz em Chile antes de sair a segunda vez, eu tinha estudado antes filosofia e teatro, mas estudava como aluna livre, tinha exames, mas não estava preocupada, eu era hippie, eu sou da época dos hippies. Então toda essa coisa de formalidade era absolutamente absurda e realmente acreditava em isso, assim como era cidadã universal do mundo e eu vivia em outra dimensão como todo hippie, e realmente vivia. Tanto que não me inteirei muito antes do que aconteceu do golpe e tudo isso porque eu estava em outra, todo mundo era muito bom e nunca acontecia nada ruim. Então, estudei filosofia e antes de sair, já quando percebi que era necessário e, também com crises que implica que você ser mulher e hippie e andar e decorar tua casa, a falar de livro, escrevia, já tinha escrito, cantava – era solista no coral da Universidade de Chile. Enfim, estava fantástico, mas de repente comecei a perceber que muitas das coisas que você pensa de liberdade e tudo passa também por ter uma certa independência, e não estar sempre dependente de família, que era muito generosa comigo, depois de parceiros ou marido posteriormente. Eu não tinha nenhum problema de ser dependente de a gente, nunca tive e continuo a não ter. Mas uma coisa é você não poder se manter e outra coisa é você ser dependente, que você me ajude, está bárbaro. Mas, sabendo que podia.
Então a segunda vez estudei biblioteconomia, biblioteconomia acá até porque sabia porque tinha esse prazo para sair; paralelamente comecei a fazer cursos em psicologia lá, mas veio o golpe e fiquei como bibliotecária e toda essa parte de psicologia ficou uma signatura pendente, porque eu queria ser psicóloga, mas não dava o tempo. Por isso falei: "vou com diploma e estudo depois". Aí averiguei que com diploma de quatro anos te permitia fazer pós-graduação. E assim foi. Saí, quando voltei antes do golpe, voltei de tratar de entrar em psicologia e realmente tinha feito em quatro anos, mas veio o golpe. Se acabaram todas, vocês já sabem, em Chile fecharam tudo o que era Ciências Sociais por muitos anos, muitos, muitos anos. Inclusive se borró todo que era meus documentos. Fiquei com esses documentos não sei onde, queimaram, não afiguraram. Então, comecei a fazer em tempo que fiquei em Chile em ILADES – Instituto Latino-americano de Doutrina Estudos Sociais, que dependia da Universidade Lovaina que era, estava aberto porque estava no arcebispado; comecei a fazer Sociologia. Mas uma Sociologia bastante especial porque me aceitaram em sociologia e era de pós-graduação. Então, se bem eu fiz sociologia e terminei, terminei com um diploma de Lovaina e com uma licenciatura que não era licenciatura, era pós-graduação. Então tenho graduação em sociologia, mas nunca fiz licenciatura. E depois em Guatemala, sim, fiz máster em Sociologia da Educação e acá estava fazendo doutorado que não defendi tese, assim que não sou doutoranda nem doutorada. Tenho máster. E em Argentina estudei depois psicologia social em escola Pichon Rivière.
MUSEU: E a sua atuação profissional: você atuou em que áreas durante toda essa sua trajetória?
ORIANA: Diferente, por exemplo, no tempo que eu morei no Chile que era bibliotecária, trabalhei no centro de documentação e informação por um curto tempo porque eu estava saindo para a Europa. Era de paso. Quando morei na Europa, não trabalhei. Estudei e inclusive em um dos períodos fiquei muito deprimida, foi um processo de transformação forte. Aí me baje de le hippismo e passei a ter certa consciência social e política. Não tinha nenhuma. Quando me inteirei, isso foi em Suíça, me inteirei do que tinha acontecido no Chile, eu não conseguia acreditar que as pessoas pudessem fazer isso a outras pessoas, independentemente que pensavam diferente, não estavam e continuam a não estar em minha cabeça a possibilidade de pensar que isso acontece. Mas naquela época não acreditava que tinha acontecido e comecei a ler, ler, ler lá porque lá em Chile não existia. E comecei a encontrar material que estava nas bibliotecas e aí me começaram a me invitar. Me invitaram a uma palestra a conversar com grupos em la Universidade de Genebra por um contato, digamos de paso com o pessoal de anistia. E si, aí percebi que mesmo quando você não está comprometida em política, não tem persecução direta e vive um sistema de ditadura, você não percebe como está dominada pelo medo porque quando me perguntaram, por exemplo, me lembro quando me perguntou uma mulher, a Maria [incompreensível], se eu era a favor ou contra o governo de Pinochet. Eu fiquei paralisada pelo medo e suava inteira, não? E não era perseguida por ninguém, não tinha nenhuma possibilidade de perseguir. Depois sim, mas naquela época não. Aí percebi que mesmo quando mesmo você está hippie, rezando, meditando na quinta dimensão, esse medo entra na tua carne, na tua pele e isso modificou fortemente minha vida.
Junto também com a idade, em termos de mulher, em termos de assumir e ter profissão, e ter uma vida independente e à parte, e na Europa foi muito complicado porque você chega e perde até o nome, coisa que chilena não perde nunca. Não sei se vocês estiveram lá, eu cheguei casada e me falavam Frau Doktor Maculet. Maculet é meu marido. Doktor era a ele. Frau, senhora. Doktor Maculet. Então foi muito forte. Para mim ser Oriana Jara era muito importante. Tinha nome, tinha publicado, tinha um certo, digamos, "fama", prestígio em ser do círculo que não tinha nem sequer Oriana, Jara, nada. Frau Doktor. E alguns falavam Frau Doktor Alfredo Maculet, usava o nome completo dele. Esse foi um golpe no fígado absolutamente forte e terrível. Assim como outras coisas, por exemplo que outras pessoas podem viver aqui ou não, acho que é diferente porque somos mais parecidos. Por exemplo, eu era muito magrela e baixinha e me miravam como… assim… e alemão, que onde mais morei são altas, mulheres são fortacha e eu assim, e me miravam como objeto engraçado, bonitinho. Quando íamos a dançar, a bailar todo mundo estava mirando. Aí comecei a perceber uma série de coisas, discriminação, desrespeito. As pessoas desde borrar teu nome como mulher e como falar o nome do marido, que pode passar, pode ser outro amanhã, você perde tudo. A forma de mirada de por exemplo, numa aula em que estava estudando alemão em Frankfurt que perguntaram uma coisa bem conhecida, a relação de um músico. Eu sabia e respondi, todo mundo sabia. E a mulher me perguntou: "Você estudou na Europa?". Eu falei "não, eu estudei no Chile". "Mas a sua família é europeia?". "Não, é chilena". Porque se você sabia o nome do músico, a relação de Liszt, a mulher de Liszt, você já era de lá, como miravam quando você estava nos grupos de imigrantes se você tinha uma cultura geral mais ou menos boa. E nesse caso eu tinha porque me eduquei numa escola francesa então eu sabia tudo de França e de Europa e não sabia nada de América Latina. Então foi uma mudança que eu tive que outras pessoas podem viver em uma migração acá, ou em outro lugar eu vivi nessa época lá. Então não é que sempre seja migrar tão fácil quando eu cheguei acá. O que acontece é que o duro eu tinha vivido lá.
MUSEU: E você falou um pouco do seu marido agora, você já tinha tocado, mencionado a sua filha, você pode nos trazer um pouco como é a sua família, enfim, você é casada hoje, o seu marido é chileno, brasileiro.
ORIANA: Sou casada há muitos anos, ele é nascido em Chile, mas não tem uma cabeça mentalmente latino-americana, muito pelo contrário. Nesse sentido, por exemplo, se eu não fazia coisas e não me assumia como ser humano independente era por falta de empenho, de esforço meu, mas nunca por dificuldade que ele colocasse. Desde sempre, por exemplo, eu era tremendamente hippie, espiritual e ele economista e reacionário. Eu militei depois, continuei na esquerda e ele é agnóstico e eu era religiosa. Então nunca foi dificuldade que eu fosse como eu sou, nem pretender que o outro fosse diferente. Então até agora segue igual. Agora em Brasil a gente decidiu a adotar, foi decisão pessoal e nossa primeira filha Manoela, a recebemos aqui com enorme alegria, inclusive eu já, desde minha parte, eu não posso falar da parte dele, depois de já ter feito, estudado, ter feito tudo o que eu precisava fazer e aquilo que não fiz é porque não tive nem coragem ou condições de fazer. Então foi uma coisa que eu acho maravilhoso quando você é mãe porque tem vontade de ser mãe e não para suprir nada na tua vida, nem solidão nem nada, porque já tinha morado sozinha. Em alguns períodos, meu marido viajou fora e eu fiquei fazendo o que estava fazendo, morando, seja na Argentina ou na Guatemala ou no Chile porque estava fazendo pós-graduação, ele era transferido e eu não ia largar tudo.
Então temos, depois Ignácio que ele sim nasceu no Chile e que, também decidimos… e até pelo seguinte, Manoela ela deve ter, não sei exatamente a sua origem, mas ela tem uma mistura que sim sea de latina, peruana e dentro de seu ADN tem alguma ancestral afrodescendente, brasileiro ou estrangeiro. E quando vimos eu pensei que como discriminatório são os chilenos e como a família de Alfredo é inglês, irlandês, olho azul e tipo, sabe o quê? Se eu tenho um filho e aparece com olho azul capaz que toda a família vai a discriminar a minha neguinha, de jeito nenhum, adotar o outro também. Então, foi uma decisão muito bem, sem nenhum problema. E entre nós sempre teve estabelecido isso, que esse tipo de decisões passava mais pelo feminino e não é que outro não opinara, mas quem decidia era eu, a educação dos filhos e toda essa coisa que tem a ver com essa coisa de útero, de cuidar é mais comigo do que com ele. Então, ele falou "está bem". Não sei nem se falou.
MUSEU: E com a sua filha, com o seu filho, com o seu marido, vocês se comunicam como em espanhol, em português?
ORIANA: Em Espanhol, sempre em espanhol. Entre eles falam inglês, em casa se fala paralelo, paralelo três línguas. Eu falo francês e meu marido também fala francês, mas nunca se fala. Mas entre nós falamos espanhol, eu faço questão. Inclusive quando começam a falar em inglês, vai falando inglês eu fico, não brava, firme. Falar em espanhol. Porque eu acho, não é uma coisa para que pratiquem a língua. Acho um desrespeito que me falem em outra língua se estamos num vínculo familiar, a língua materna minha é espanhol. E se fala português com as pessoas próximas em casa, amigos. E ele fala, Ignacio está casado com brasileira fala em português em casa. Manoela fala menos português que ele. E entre eles, pai e filhos, inglês. Então se fala, é de louco. Estamos na mesa e estão falando eles dois, pai com filho, falando em inglês, eu sei inglês, mas se me falam em inglês eu falo espanhol. Já nem preciso, era quando eram crianças.
MUSEU: E você traz alguma coisa da cultura chilena como receitas, festas, costumes na sua vida cotidiana em família ou na educação que você deu para os seus filhos?
ORIANA: Olha, aí tenho um pecado enorme. Primeiro lembre-se que quando eu era criança eu sentia que era europeia ou cidadã do mundo. Dois: a família que me criou, essa mãe minha era casada com francês, que essa é a razão que eu fui à escola francesa, que eu fui a Paris. Era casada com um francês. Quando eu cheguei na escola, essas irmãs minhas, que também filhas de francês, a mim me falavam as freiras e na escola la petite Oriana. E você tão pequena que acha, e eu achava que era francesa também por… eles eram filhos de francês, eu também. Sempre, até agora com 70 anos sou um pouco despistada, não ligo muito para as coisas formais. Então de chileno eu não me eduquei tanto como chilena, na minha casa se comia comida chilena, mas se preparava muitas coisas, assim, mais internacionais, que não tem, se cozinhava coisas muito bem, muito bonitas embora nós éramos muito pobres. Então sempre vivia uma vida um tanto desligada de tudo porque a condição econômica não tinha a ver com a escola, muito menos por falar francês na mesa, chilenos. Então eu acho que eu era rara para todo mundo. Mas com a grande maravilha de minha parte que ser rara não percebia e que, aliás, ter vivido meus filhos também o mesmo, acho que não me importava muito, eu não tenho lembrança de traumas por isso, tenho outros. Mas isso de ser raro e diferente, acho que eu achava magnífico. Tanto que nós criamos aqui em Brasil um movimento que se chamava "ser diferente é legal" pela celebração da diversidade. Porque para mim não há que desrespeitar, há que celebrar.
MUSEU: E o seu círculo social, dentre essas várias migrações que você fez, era sempre mais... você convivia mais com chilenos ou com outros, como que era esse seu círculo e como é hoje aqui no Brasil?
ORIANA: Não, não convivia com chilenos. Em Chile naturalmente sim, porque nessa época em Chile tinha muito pouco estrangeiros e os estrangeiros eram colonização igual que vocês, anterior, 1800... nem sequer pelo blanqueamiento pois os levaram todos para o sul, assim que não blanquearan nada. Ficaram todos afastados em guetos, nos caso do Chile. É a mesma história que acá. Os chilenos, mas fora não, normalmente não. A primeira vez que eu morei acá, nos 80, também não, porque estava na Faculdade de Sociologia e Política, relações pelo trabalho do Alfredo, eram brasileiros também. Muito, muito pouco contato com chilenos e com latino-americanos, pouquíssimo. Foi depois que isso se fez mais forte. E de começar a trabalhar com a comunidade chilena e com migrações foi a raiz que vinha a anistia em 1998. E em el 1997 o cônsul chileno me pediu se eu podia assumir uma organização assistencial de chilenos para juntar dinheiro porque tinha possibilidade de fazer algumas coisas. E no começo eu não queria para nada e depois eu falei que sim e daí eu entrei em concreto.
E o primeiro que fizemos foi juntar dinheiro, fazer no Memorial de América Latina um leilão de obras de arte, me comuniquei - sou escultora também - me comuniquei com artistas, em essa época eu estava fazendo, mais que escrever e publicar, eu estava fazendo trabalhos de escultura e exposição. Então, artistas me doavam obras, leiloamos e juntamos dinheiro e conseguimos pagar toda essa anistia de todos os chilenos que se apresentaram e que não tinham, e sobrou. Juntamos 45 mil dólares, graças ao apoio dos artistas. Então, entrei por isso. Por uma coisa bem mais concreta do que juntarme com chilenos. Juntar dinheiro, fazer evento para poder pagar aqueles que não tinham dinheiro porque a multa, lembro que no momento, era algo que 500 reais. Eram… Através da pastoral, se pagava 180 por cada uma das pessoas e muitas pessoas tinham três, quatro filhos, não iam conseguir. E se fez e conseguimos. Infelizmente, não pensamos na rádio, porque ficaram alguns chilenos muitos pobres que moravam na periferia, bem na periferia. Por exemplo, eu sei de caso que em Cotia tinha uma família de chilenos, uma ou duas, bem pobres que moravam num acampamento de ciganos. E eles não se interaram, que no consulado, esse grupo de assistência social estava trabalhando com... estava dando dinheiro para pagar a anistia. Aí comecei a primeira vez que eu entro a vincular-me com nacionais. Nos outros lugares não, até porque acho e sigo pensando o mesmo. Que você de sua comunidade, essa coisa um pouco de gueto que nós fazemos agora por lutas específicas, é uma necessidade, não é o ideal. Eu não acho que seja bom que a comunidade e nos unamos e que temos chilenos e com chilenos e latino-americanos com latino-americanos. Empobrece muito. É uma necessidade para poder empoderar as pessoas porque senão não chegariam. Mas não é o ideal. E nos outros países que não existia esse tema de imigração, existia também discriminação que você tem com muitas pessoas. O alemão tem uma coisa, o francês tem outra, e existe. O chileno também tem. Mas eu preferia viver em contato com as pessoas do país. Que por exemplo, ainda é. Não sei se isso é defeito ou qualidade.
Por exemplo, ontem estive na reunião do Conselho da cidade e estava felicíssima pois juntou brasileiros. E quando nos juntamos entre nosotros temos tanta lenga-lenga, de tironeo, de um com o outro de competencia, que também entre os brasileiros deve competir entre eles, mas eu sou a única estrangeira, então me dá um diferencial que eu gosto demais.
MUSEU: E você falou que, então, você começou essa sua aproximação com uma comunidade imigrante...
ORIANA: Chilena específica.
MUSEU: Sim, para a anistia de 1998, mas eu queria que você trouxesse, acho que a gente conhece um pouco o seu trabalho na Presença América Latina e outras...
ORIANA: Claro, por exemplo aí, justamente da assistência social chilena percebi a seguinte coisa, e aí, e desde antes tinha certa especialização em gênero, não é? Mais acadêmica, não de trabalhar com comunidade. Aqui, quando cheguei a Brasil, que orientava teses de Sérgio Buarque, Jorge e Maria Morán, Leonardo Boff, que lo conhecia, mas muito do… Marina Colasanti, muito do movimento de mulheres porque já vinha com essa tendência lá, vinha desde Guatemala, donde el lugar da mulher guatemalteca, majoritariamente indígena, é zero, não existe, não? Igual como acontece em Bolívia, o homem fala por ela, ela fica sentada atrás, enfim. Então, já estava esta parte de processo junto com o meu próprio processo de sentir-me capaz de ir, de pedir emprego, trabalhar, negociar, já que não me pagaram o doutorado, era parte de todo um processo. Junto com isso, quando começo a ver me dou conta que, primeiro, dentro da comunidade chilena, existia pessoas como a Inês, que vocês conhecem e outras que tem ido, algumas morreram, extremamente valiosa e que eram a alma da comunidade, tinham feito muita coisa que eu não participei.
Também me lembrei de uma coisa que na adolescência me falou um médico alemão que fui pela coluna, que falou que a alma de Chile eram as mulheres. Junto com saber também que as mulheres foram a alma do golpe; ou sea, a alma nem sempre está bem direcionada. E é verdade porque ele falava, isso é verdade, que minha região, mas em toda parte, já naquela época é uma porcentagem muito alta de mulheres que criavam os filhos sozinhas. Eram quem costurava, era empregada doméstica ou lavava roupa, naquela época ainda se lavava roupa fora. Então tudo isso juntou quando comecei a fazer este evento para a anistia porque começou a chegar muita mulher a pedir anistia. Muita mulher que estava sem documento porque o marido tinha pago, e muitas vezes tinha ido embora e abandonando ela e estava ela com seus filhos, já grandes, sem documento. E naquele momento, os filhos dessas mulheres ainda não tinham direito, indocumentado, de entrar nas escolas. Embora algumas aceitavam sim, mas não davam o histórico escolar.
Então comecei a entrar em toda uma coisa diferente sem perceber porque eu sempre tenho sido um pouquinho assim. Não penso muito, vou sentindo e depois acontecem coisas. Então comecei a trabalhar e a ver que essa mulher, além de sofrer, mas a começar com elas tinham sido baluarte de grande parte da comunidade chilena. E empezamos a trabalhar em alguma coisa de trabalho de empoderamento não como talleres formais. Se não tem trabalho, aproveitando um pouco nas entrevistas quando iam entrevistando os filhos, e começar a trabalhar um pouco por isso. E aos poucos fui derivando em um trabalho mais formal, mais concreto com as mulheres. Então começou aí. Depois o ministério de relações exteriores de Chile, isto foi nessa época mais ou menos, mais perto de 2000 que de 1998, pediu, se criou DICOEX, Dirección de los Chilenos en el Exterior. É… [incompreensível] estão em el ministério de relações exteriores como toda a coisa para imigrante interno, de fora, dois funcionários, zero peso e zero interesse real de fazer alguma coisa. E aí pediram que se postularam para pesquisas, o cônsul nesse momento chamou a Verônica Ravena que era amiga minha e filha de chilenos, já educada profissionalmente acá, trabalhava em la Universidade Metodista e ela me falou de fazer juntas. Eu tinha sido orientadora de tese em sociologia de o máster dela. E aí me pediu que trabalhássemos juntas. Antes juntas, ela tinha feito um estudo que eu dei os contatos sobre a comunidade chilena, ela tem um estudo que está um pouco atrasado já, mas que nessa época era bom. E falamos de postular uma pesquisa que o governo chileno queria. E essa pesquisa era de determinada comunidade é… como [incompreensível] comunidades, é o mesmo que estarmos pedindo para os imigrantes um tipo, não era censo, mas saber a comunidade. Com a ideia de construção de políticas públicas que pudesse albergar ou receber essas pessoas no programa de retorno de Chile. Ela me comentou e a princípio eu falei: "não entremos, não entremos, não gosto" e não topei. Mas depois conversando, conversando eu falei: "Está bom, faz". Porque era ela que ia fazer. E ela falou: "mas não faço se não é com você". Eu falei "não quero". Bom, em todo eu falei "ok". Você faz a pesquisa, mas depois, dependendo do resultado, vamos trabalhar fundamentalmente com mulheres. Dependendo, a pesquisa era com homens e mulheres, os grupos, quinchamalí... os grupos. É, falei "dependendo do resultado eu não concordo que você faça uma pesquisa e realmente sigo sem concordar, que você averigue coisas das pessoas e depois você não dê nada em troca", você entrou na vida de seres humanos.
Então, eu falei "ok, você faz isso, mas depois, dependendo do resultado, organizado alguma coisa e talleres para essa pessoa porque você já sabia, de certa forma o que ia encontrar". E assim foi. Ela fez a pesquisa muito boa, representou os resultados eu nem sequer, interferi. Sou coautora, mas isso era com ela, eu li os resultados, mas como uma leitora qualquer, não interferi. Mas sim ficou que todo o trabalho de campo, trabalho de empoderamento de talleres era comigo. E aí comecei a fazer talleres de empoderamento das mulheres chilenas que resultou que todas tinham el tema solidão, de ter ficado postergada, de ter ficado apoiando fortemente, não só o marido, filho com trabalho muitas vezes e não para a profissão que tinha, sendo que muitas delas depois tinham ficado sozinhas, seja por morte ou por abandono do marido, estavam a maioria deprimida, esperando a morte, porque os filhos já estavam crescidos e casados. E começamos a fazer um trabalho que até agora elas, agora, são líderes comunitárias, dirigem projetos, uma delas está pensando em continuar com as arpilleras acá.
E foi muito gratificante começar a trabalhar e formar um coletivo, a metodologia foi criada por todas nós, principalmente elas que tinham os saberes que era interessante. Foi referendada porque paralelamente o Senac e o Museu da Pessoa estava fazendo um livro para orientar comunidades locais, baseado mais no Senac. Quando vimos a metodologia era quase o mesmo que tínhamos feito na prática, entre todas nós. Isso empoderou essas mulheres, incrível. E veio o assunto de cidades educadoras que foi sede aqui em São Paulo, postulado, apesar que eram só entidades governamentais nesse momento, ficaram quintas de 550 trabalhos, foram as quintas em pontuação, a única exceção de não ser um grupo estabelecido pelo governo, pelo município, porque "cidades educadoras", e a apresentaram como exemplo de uma comunidade que se organiza para empoderar-se, para adquirir fortaleza e para ensinar aos outros sua fortaleza.
E até agora o projeto segue e eles seguem trabalhando e já levam muito anos juntandose toda quarta-feira, para fazer o que elas fazem de importante. Hicieran, por exemplo, agora a pouco e não são elas, são outras. Elas mais outras. Apresentação de uma opereta chilena, [incompreensível] porque são pessoas idosas, são dirigentes na pastoral, estabeleceram restaurante, duas deixaram o marido, então foi, realmente, uma transformação incrível que ficamos todas surpreendidas. Porque não esperávamos, desde minha parte, e acredito que depois na metade do projeto as facilitadoras também compreenderam, existe a firme certeza que se você dá um espaço, de verdade, para as pessoas se organizarem, expressarem, fazerem alguma coisa, o que vai sair te vai surpreender. Agora, como, você vai descobrindo no caminho. E elas conseguiram e outros grupos, depois o Uruguai conseguiu de outra forma, Colômbia de outra forma, Argentina de outra forma. E agora sim posso falar que é verdade, porque partiu com um ato de fé, mas agora sim posso falar que é verdade.
MUSEU: Então a Presença América Latina, ela trabalha com um olhar mais voltado a mulheres imigrantes?
ORIANA: A Presença desde mim trabalha mais de aí, mas nós somos um diretório. Entendo, sou fundadora, idealizadora da Presença e grupo que está comigo tem um olhar carinhoso em relação a minha forma de olhar o mundo, mas nem sempre comparten. Então, por exemplo, nosotros temos todo um foco de trabalho, que também gosto, de articulação de políticas públicas que você conhece, tanto a nível federal, estadual, como municipal, que isso tem a ver com articulação de políticas públicas para imigrantes em geral, focado mais no latino-americano sempre porque temos o MERCOSUL, porque temos algumas possibilidades de conseguir até mais. Mas não por exclusão porque quando você abre uma porta por aí entram todos. Então como o MERCOSUL latino-americano que são até mais empáticos para o Brasil porque somos parte, conseguimos obviamente essa porta aberta para entrar sírios, libaneses ou de qualquer outro lugar. Então, não é excludente, é estratégia política e é parte porque podemos falar do que sabemos, somos latino-americanos.
Se conseguiu muito, inclusive dentro da população, e você, Tati, sabe disso, que o brasileiro agora sente que ele é latino-americano. Quando nós começamos há anos atrás, me perguntei "brasileiro pode entrar?". Fui falar "que eu saiba não está na Europa" não é? Não tinha e te falo pessoas formadas, não… porque não temos muita militância de pessoas não formadas. Isso tem sido um fracasso nosso. Nunca chegou alguém que soubesse mobilizar pessoas de outro tipo, mas também cumpriu uma função de poder mobilizar, que foi muito útil num período. Profissionais latino-americanos formados no sentido de peso, de ter e mostrar uma certa força que é maior do a que tem Presença, mas como tem muita pessoa em torno que tem cargos e é formado, essa pessoa dá um apoio, que agora já não é mais necessário para os imigrantes, mas no momento foi. Que não fosse mirado só como o coitado, indocumentado, que está quase como morador de rua pela sociedade brasileira em geral. Então temos essa parte política, temos a parte de, optada pelo diretório de trabalho com o tema de trabalho escravo, dentro desses focos. E temos outros projetos, por exemplo, com a Aliança Empreendedora de formar donos de fábrica de costura como empreendedores. E isso, por exemplo, o vice-presidente e alguns conselheiros, entre eles o que era diretor do Senac, são muito mais a fim quando você vê Presença através dos meus olhos, é os meus. Eles não têm esse toque tão de… de lado feminino, embora gostem.
MUSEU: E, voltando até um pouco nessa questão do lado feminino, que demandas você vê mais específica de mulheres migrantes?
ORIANA: Acho que não são diferentes da de mulheres não migrantes. Inclusive acho que umas das coisas que temos que entender, e tem pessoas que entendem como a Andrea, tem algumas meninas que entendem, mas no grupo das pessoas maioritárias é que a causa da migração, assim como a de direitos humanos, é suprapartidária, supraideológica, está em cima de qualquer divisão. Infelizmente, uma das coisas que mais acredito que a mulher tem que saber e pensar isso e que não se trata de que a boliviana defende os direitos de boliviano, ou inclusive temas muito sectários, muito válidos, por exemplo, as meninas que tem trabalhado magnífico do Warmis, parto humanizado e tudo na área da saúde e está muito bem. Mas é muito mais que isso. O sea, para chegar a ter um parto humanizado tem que ser ser humano primeiro. E essa parte é uma das grandes dificuldades em Brasil, em Chile, do movimento das mulheres em geral. E você tem que aceitar e tratar de fazer mobilização, tudo que possa ser de união. Por exemplo, quando nós fizemos essa, e muitas vezes eu reclamo e não reclamo por exclusão de que ficar fora, de que não me chamem, reclamo por duas coisas: uma, por uma tendência natural de a gente não mirar, e que vocês estão fazendo com esses trabalhos, processos. Não é que, nem a Inês é a autora dos processos anteriores a que eu vivi, mas eu peguei dela e muitas das coisas que foram feitas porque ela tinha existido, assim como muitas das coisas atuais do movimento feminino e pelos sucessos e erros dos anteriores. Então também dentro das comunidades el pensar que você não descobriu a pólvora nesse momento, que tem que incluir a todas as pessoas e tem que incluir toda a tendência porque senão está condenado ao fracasso.
Então, uma das muitas vezes eu reclamo quando não convidaram a PAL. Não é porque não convidaram a PAL, não tem a mínima importância. Porque a gente tende a não compreender esto que é o feminino, que é um "útero", um espaço onde todos podem estar. Esse poder é totalmente diferente do poder masculino, então quando vejo que isto não se está compreendendo muitas vezes eu reclamo como masculina, não? Assim, reclamando, por que não está inclusão? Mas não é essa a ideia. E sim, a minha mirada é assim. E eu acho que foi, por enquanto e pela permanência como presidente e fundadora, a que tem sido mais vista, mas por isso para a Coordenadoria de Imigração, e você sabe, Presença América Latina foi o foco, junto com CAMI, do momento e a Federação Israelita para conseguir isso. Então existem outros trabalhos.
MUSEU: E você indicaria, você conhece outros projetos liderados por mulheres imigrantes ou refugiadas que você acha que seria interessante esse projeto de história oral contatar?
ORIANA: Acho que é interessantíssimo para todos. Não conheço, não é que não existam. Sei que estão começando. Eu tenho visto vários lugares, por exemplo, quando você entra no Face, vários grupos que estão procurando fazer tanto resgate de livros, histórias e estão muito bem. Uma das coisas que eu fazia como proposta a vocês para formar essas pessoas é porque, muitas vezes e está perfeita que seja feita, as vezes eu fico com um pouco de… não é raiva... de dificuldade, porque vejo que mais que fazer esse processo de união, o projeto vai num processo de separação para destacar o que eu faço e não num coletivo que abre para que outros façam. Então, por isso que eu insisto que lugares como este, ou como o Museu da Pessoa também poderia ser e outros, ter o privilégio de poder criar esse espaço uterino onde se continua a fazer e formar as pessoas porque todo mundo tem dentro a possibilidade de fazer isso. Só que a gente não sabe, fomos criados em estruturas piramidais, masculinas onde eu compito com o outro, onde me sinto autor, não? Quando você fala, fala em "yo, yo, yo, yo" e não a concepção de processo, não? Por exemplo, ao falar de estos livros, ao falar destes trabalhos não é nem PAL nem Oriana que fez e isso me cria dificuldades na organização porque a organização acha que destaco pouco a organização. E se trata disso. Se trata de abrir um espaço onde aconteçam coisas feitas por muitos. Então muitos de meus diretores, alguns até tem ido embora porque consideram que não coloco devidamente a organização de PAL, não? E muitas vezes também sou considerada como personalista. Eu sei que não, é um processo, você tem o seu tão bom quanto o meu, você o seu, o seu, todo mundo tem. Então quando estou fazendo e falo do que eu sei que é a minha vida, não sei a de outro. Mas não é um "yo" porque feminismo e [incompreensível] de mulheres quando entra nisso, é melhor entrar num partido político.
MUSEU: E só agora, que já está até um pouco no final, eu queria saber se você mantém, você tem família ainda, você comentou que você tem família no Chile...
ORIANA: Todos.
MUSEU: Se você tem, se você retorna muito, como que é esse seu contato com o país que você deixou, você retorna muito ao Chile, você tem contato direto com seus familiares?
ORIANA: Absolutamente, muito mais agora ainda de… com todas as possibilidades, volto muito, vou pelo menos duas a três vezes por ano. Muito mais agora que estou idosa. É porque, também, sempre você contempla a possibilidade, eu nunca pensei em volver a Chile porque sou chilena. Em absoluto. Tampouco pensei "vou ficar no Brasil ou vou morar na França". Não, vai acontecendo. Mas quando você fica major, os lugares mais tranquilos, os lugares conhecidos, você vai sentindo muito mais, e isso você vê nos livros, muito lindo o trabalho da História Oral, porque você vai vendo como as pessoas sentem mais falta das cores, dos cheiros, das árvores, não? Inclusive na arpillera que eu fiz me lembrei de Benedetti que falava "talvez essas árvores que eu acho que estão já não estão mais. Acaso já não estou eu como essas árvores?". Então você vai sentindo uma natural sensação de querer ver isso.
Por outro lado, São Paulo que é o último lugar, é um lugar difícil para viver. E viver mesmo para uma pessoa jovem. Então sim, estou pensando voltar a Chile e mais agora que com toda a trajetória porque tem todo esse espaço de trabalhar a nível de latinoamerica. Por exemplo, eu fui destacada como projeto, não? No sentido do projeto coletivo no Uruguai. Então esse projeto das mulheres está na América Latina e também em Chile. Então estou voltando porque no momento eu pensei dar-lhes uma força as imigrantes peruanas e equatorianas que existem em Santiago. O município me pediu para fazer o projeto lá. Então, estou voltando, mas depende muito do grau de necessidade da organização acá. Então, vou sim, estou… e eu acho que a gente é de todos os lugares. As mulheres chilenas fizeram um processo magnífico no livro que no momento determinado fizeram uma crise de identidade em ser uma coisa e outra. "Chicha" e "Caipirinha". E elas decidiram que são "chicha" e "caipirinha". Então eu acho que sim, que chega um ponto que você, como imigrante, ou assume que tem muitas identidades e que mora em todas as partes ou que vai ser sempre imigrante, não?
MUSEU: Bom, a gente já está chegando no final da entrevista, mas a gente sempre gosta de perguntar se deixou passar alguma coisa, se você queria deixar alguma mensagem final para deixar registrado nesse vídeo.
ORIANA: Deixar... coisa, no… a mensagem eu acho que já disse que é a parte fundamental do trabalho que é… nós partimos todos os trabalhos com um poema de uma americana que não conheço que se chama [incompreensível] e que colocamos sempre "as mulheres fortes podem dizer que não". Esse poema é muito comprido, inclusive irônico talvez nem tenha muito a ver com as mulheres mais novas, até mais a ver com a minha geração, porque fala muito dessa mulher que está no fundo da história e que está batendo a [incompreensível] mesmo, mientras o mundo passa ao redor e que já a nova geração não tem. Mas fala algo que sim está sendo usado ao final que diz que uma mulher só é uma mulher fortemente assustada, que fortes que nos fazemos umas às outras. Então essa é a parte como mensagem. Mas para que essa mensagem seja real, realmente a gente tem que procurar trabalhos, espacios, onde aprendamos a trabalhar, isto que não sabemos e também não sei, não tenho ideia, não poderia dar modelo porque acredito que não existe, onde você junta grupos e constrói coletivos, que junta, faça alguma coisa. E concretamente faça, escreva um livro, faça una arpillera. É ferramenta, isso não tem importância.
Eu vejo vocês, por exemplo, entrevista de uma, duas pessoas, não tem importância. História Oral do conjunto é o que pode fazer uma mudança, não é? Mas também que foi quando fui convidar Voices of change que o projeto teve muito, muito sucesso. Procurava explicar que isso é mais para vocês e que eu percebi no trabalho com as mulheres que quando você escuta a sua própria voz falando você já está modificando o vivido. Está modificando a visão que tinha porque a mesma visão contando, inclusive o mesmo que você tem cinco dias depois é outra. Então que é extremamente importante tomar desde esse ponto que eu sei que vocês têm. Por isso me nego a livro que as pessoas querem como história que coloquem fulana Oriana, história de vida, matou tudo. Tem que ser um coletivo, inclusive neste caso, eu sugeriria que tomassem sem nome, que fosse uma mulher falando.
MUSEU: Bom, então em nome do Museu da Imigração eu agradeço muito a sua entrevista. E é isso, muito obrigada.
ORIANA: Obrigada a vocês.