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Reflexões sobre memória e identidade em contextos migratórios
Nicole Alexsandra – Analista de Pesquisa Jr.
O ponto de partida para qualquer análise sobre contextos migratórios reside no entendimento de que a memória e a história caminham indissociáveis. Nas ciências humanas, essa relação é fundamental para compreender as experiências humanas que estão por trás dos números estatísticos das migrações. Nesse quesito, a memória de quem se desloca não é apenas um registro do que ficou para trás, mas um elemento ativo e dinâmico que molda a identidade no novo território.
Na visão de Jacques Le Goff, a memória transcende a função de arquivo, posicionando-se como um elemento ativo na construção da narrativa temporal, tornando-se parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e em vias de desenvolvimento [1]. A insistência em estudar a memória reflete, portanto, uma necessidade social e política de compreender como as comunidades se relacionam com seu passado.
Além de sua função histórica fundamental, a memória é um elemento essencial na discussão acerca da identidade, sendo um de seus componentes fundadores. O ato de rememorar e, paradoxalmente, o processo de esquecer (seletivo ou imposto) moldam continuamente o senso de quem se é, estabelecendo a continuidade do eu, tanto em nível individual quanto coletivo. [2]
As memórias individuais, grupais e coletivas, são formadas na subjetividade e representadas em discursos sociais. De acordo com o sociólogo Maurice Halbwachs, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” [3], na medida em que o indivíduo está sempre inserido em um grupo social. Por conseguinte, mesmo que a princípio a memória aparente ser um fenômeno de cunho pessoal, o indivíduo jamais se lembra sozinho. Ou seja, ele está sempre irremediavelmente inserido em quadros sociais de memória (como a família, o grupo profissional ou a comunidade de origem) que fornecem as referências espaciais, temporais e afetivas necessárias para a construção, evocação e comunicação das lembranças [4].
Nesse sentido, entrevistas que visam explorar a História Oral, como as que fazem parte do Acervo do Museu da Imigração, ao resgatarem a experiência subjetiva, permitem o acesso aos chamados lugares de memória. Sejam eles materializados em monumentos e objetos, ou simbólicos, em rituais e narrativas, funcionam como suportes para a identidade do indivíduo e do grupo [5]. Sendo assim, o depoimento de uma pessoa migrante não é apenas um relato biográfico, mas uma fonte capaz de revelar as estruturas sociais, as relações de poder e os mecanismos de resistência cultural.
Considerando a relevância das narrativas orais, as entrevistas realizadas dentro dos escopos dos projetos de pesquisa do Museu contribuem para um amplo debate acerca das migrações para São Paulo. Corriqueiramente, é relatado como migrantes deparam-se com as fronteiras simbólicas da alteridade, manifestadas de forma sutil ou explícita, que marcam o indivíduo como "o outro" no novo território. Acerca disso, essa percepção de alteridade nos leva diretamente às reflexões de Edward Said, nas quais o autor nos lembra que "logo adiante da fronteira entre 'nós' e os 'outros' está o perigoso território do não-pertencer" [6]. No contexto de migrações internas, por exemplo, o migrante descobre fronteiras dentro do próprio país, construídas por relações de poder assimétricas que ditam quem tem o direito de chegar, partir e habitar aquele espaço [7].
Tal experiência reaviva o debate sobre o enraizamento, uma vez que, para Simone Weil, ter raízes “é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana” [8]. Em narrativas migrantes é possível notar como a ausência desse suporte simbólico se converte em dificuldades de acesso e permanência no novo território. Pois, mais do que uma restrição geográfica, essa dinâmica de exclusão provoca uma ruptura interna, confrontando o indivíduo com a fragilidade de seu próprio senso de pertencimento [9].
Contudo, em contextos migratórios e de deslocamento, frequentemente observamos o desenvolvimento de estratégias para resistir a esse fenômeno do não-pertencer. A construção de redes de apoio torna-se vital; nessa conjuntura, destaca-se o conceito de capital de rede, definido por John Urry como “a capacidade de gerar e sustentar relações sociais com pessoas não necessariamente próximas e que produzem benefícios emocionais, financeiros e práticos (embora isso envolva frequentemente vários objetos e tecnologias ou meios de construir redes)” [10]. Dessa forma, em um mundo de conexões físicas rompidas, o foco recai sobre a capacidade de "estar presente" mesmo longe, evitando que a distância geográfica se transforme em esquecimento social.
Ademais, expandindo essa análise, Freire-Medeiros e Lages alertam que a mobilidade não deve ser vista apenas como deslocamento, mas como um recurso distribuído de forma desigual. Os autores destacam que todo fluxo, seja de pessoas ou de informações, depende intrinsecamente de 'fixos', compreendidos como infraestruturas materiais, tecnologias e suportes institucionais para acontecer. Nesse sentido, o capital de rede não é acessível a todos da mesma maneira, pois ele revela novas hierarquias sociais. [7] À vista disso, para a pessoa migrante, a capacidade de manter vínculos à distância esbarra frequentemente em fricções políticas e econômicas, tornando a manutenção desses afetos não apenas um ato sentimental, mas uma forma de resistência dentro de um sistema de mobilidades estratificado.
Diante desse cenário, mesmo considerando as disparidades no acesso aos meios de conexão, observa-se frequentemente em contextos de deslocamentos populacionais que, como afirmado por Menezes e Cover, “não há, portanto, desagregação dos vínculos sociais ou isolamento dos indivíduos, mas antes, recomposições que podem ser constituídas tanto de grupos estruturados quanto de relações pessoais” [11]. Assim, evidencia-se que, muitas vezes, o deslocamento não encerra as relações, mas as reconfigura, mantendo em diálogo contínuo os universos de origem e de destino.
Para compreender essa complexidade, a migração deve ser encarada como um fato social total, onde a memória atua como força ativa de construção identitária [12]. Ainda que permeada por essas fricções, a vivência migrante impõe uma multiterritorialidade: o sujeito passa a habitar, simbólica e afetivamente, mais de um território ao mesmo tempo [13]. Nesse contexto, o deslocamento deixa de ser uma linha reta para se tornar um conjunto de elos dispersos entre a origem, os locais de trânsito e o destino. O processo funciona como uma teia que enlaça os sujeitos, refutando a ideia de um fenômeno puramente individual [11]. Assim, até mesmo deslocamentos aparentemente temporários, como o retorno à terra natal para festas de fim de ano, deixam de ser mero turismo para se revelarem estratégias de manutenção dessas redes de mobilidade e migração [14].
Torna-se evidente, assim, que as narrativas orais revelam uma identidade migrante que não obedece a uma lógica de exclusividade com a origem ou o destino, mas ocupa um espaço intermediário entre o “lá” e o “cá” [15]. Nesse contexto, ao transitar entre a dor do desenraizamento e a potência das novas conexões, o sujeito reconfigura o próprio espaço urbano e social. Ouvir essas histórias, portanto, é reconhecer que a memória migrante é uma força fundadora e viva, imprescindível para a compreensão das dinâmicas do Brasil contemporâneo.
Como extensão prática dessa reflexão, convidamos o leitor a visitar a nova exposição de longa duração do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, Migrar: Histórias Compartilhadas Sobre Nós. Fruto de uma construção plural iniciada em 2022, a mostra reflete um olhar renovado da instituição, pautado pelo diálogo direto com migrantes, refugiados, pesquisadores, visitantes e instituições relacionadas à temática migratória. Em seus onze módulos, a exposição materializa os debates sobre fronteiras, diásporas e deslocamentos internos, utilizando a tecnologia para transformar a visita em uma experiência mais imersiva. Para além da exposição do acervo museológico da instituição, o espaço também se propõe a ser um ponto de encontro dinâmico, vocação exemplificada pelo Observatório MI, que mantém o conteúdo em constante atualização e sintonia com os fluxos contemporâneos. [16]
Além disso, aos interessados, as entrevistas de História Oral produzidas pela equipe de Pesquisa do Museu da Imigração do Estado de São Paulo estão transcritas e disponíveis no site. A coleção, iniciada em 1993, reúne um vasto acervo de depoimentos que materializam essas trajetórias e pode ser consultada na íntegra, clicando aqui.
Referências bibliográficas
[1] LE GOFF, Jacques. Memória. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 2008. p. 469.
[2] AMORIM, Maria Aparecida Blaz Vasques. História, memória, identidade e história oral. Jus Humanum – Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 6, jan./jun. 2012. p. 109. Disponível em: <https://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/jus_humanum/article/view/75>. Acesso em 30 dez. 2025.
[3] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2013. p. 30.
[4] OLIVEIRA, Janderson Carneiro de; BERTONI, Luci Mara. Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais: confluências teórico-conceituais. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, v. 12, n. 2, p. 244-262, 2019. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202019000200005&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1983-8220. https://doi.org/10.36298/gerais2019120205. Acesso em 30 dez. 2025.
[5] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. p. 22. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 30 dez. 2025.
[6] SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [2000]. p. 49.
[7] FREIRE-MEDEIROS, Bianca; LAGES, Mauricio Piatti. A virada das mobilidades: fluxos, fixos e fricções. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 123, p. 121-142, dez. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/11193. Acesso em: 28 dez. 2025.
[8] WEIL, Simone. O enraizamento. In: BOSI, Ecléa (org.). A condição operária e outros estudos sobre a opressão. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 411-412.
[9] SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Edusp, 1998.
[10] URRY, John. Mobilities. Cambridge: Polity Press, 2007. Apud FREIRE-MEDEIROS, Bianca; LAGES, Mauricio Piatti. A virada das mobilidades: fluxos, fixos e fricções. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 123, p. 121-142, dez. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/11193. Acesso em: 29 dez. 2025.
[11] MENEZES, Marilda; COVER, Maciel. A noção de redes sociais aplicada a pesquisas em espaços de trabalhadores migrantes. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 20, n. 2, p. 95-113, 2017. DOI: 10.5216/sec.v20i2.53067. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/53067. Acesso em: 26 dez. 2025.
[12] AMORIM, Maria Aparecida Blaz Vasques. História, memória, identidade e história oral. Jus Humanum – Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 6, jan./jun. 2012; CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
[13] HAESBAERT, Rogério. Migração e desterritorialização. In: PÓVOA NETO, H.; FERREIRA, A. P. (orgs.). Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 35-46. p. 43.
[14] A VIRADA DAS MOBILIDADES. Profª. Drª. Bianca Freire-Medeiros (PPGS/USP). [S. l.: s. n.], 30 mar. 2022. 1 vídeo (85 min). Publicado pelo canal PPGS-UFAL. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H0q4wlt4d58. Acesso em: 01 dez. 2025.
[15] CARDOSO, João Batista. Hibridismo Cultural na América Latina. Itinerários, Araraquara, n. 27, p. 79-90, 2008. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/1127. Acesso em: 30 dez. 2025.
[16] MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Visite o Museu. O museu funciona de terça a sábado, das 9h às 18h, e domingo, das 10h às 18h (fechamento da bilheteria às 17h). Nos feriados, será seguido o horário do dia de semana em questão. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/visite-o-museu.