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Vacinas, passaportes e apartheids: a política da ciência a céu aberto
Por Alexandre Branco-Pereira
Imagens de D. Akokán
Desde 23 de novembro de 2021, quando cientistas da África do Sul anunciaram a detecção de uma nova variante do SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19, dois temas tornaram-se fulcrais no debate sobre a gestão da pandemia no Brasil. O primeiro era o apartheid de vacinas, que ocorreu desde que os primeiros imunizantes, fundamentais para o controle da pandemia, passaram a estar disponíveis para países de todo o mundo ainda em 2020.
A capacidade dos países em lançar mão de tal recurso foi, por óbvio, profundamente assimétrica: enquanto países, como o Canadá, adquiriram doses para vacinar a própria população 10 vezes[1], outros, como o Haiti, iniciaram seu programa de imunização tardiamente, com poucas vacinas doadas a título de caridade por outros países, e caminham a passos lentíssimos em direção à proteção contra a Covid-19, inclusive de profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia. O Haiti vacinou apenas 0,6% de toda a sua população[2].
A lógica é simples: a distribuição desigual de vacinas pelo mundo, somada à aposta na imunização das pessoas como única medida de mitigação dos efeitos da pandemia - em detrimento, por exemplo, da testagem massiva, do rastreio da cadeia de contágio e de sua subsequente quebra, do uso de máscaras e do rechaço a aglomerações –, produz um cenário propício ao surgimento de cepas com mutações genéticas capazes de tornar o vírus potencialmente mais transmissível e a manifestação da doença, mais grave. Não é preciso dizer que sua circulação entre indivíduos vacinados torna a probabilidade de surgimento de cepas resistentes às vacinas altíssima. A descoberta da variante ômicron, que apresenta mais de 50 mutações em relação à cepa original, comprovava o argumento que a totalidade dos cientistas e administradores públicos já sabiam: diante de um cenário de circulação altíssima do vírus, o aparecimento de novas variantes, mais ou menos letais e contagiosas, é uma questão de quando, e não de se.
O segundo tema veio a reboque do primeiro. Vozes elevaram-se advogando que era preciso intensificar o controle de entrada de pessoas no país como forma de conter a circulação da nova variante no país, ainda que os controles de circulação internos foram sendo paulatinamente afrouxados desde o início do segundo semestre, e que haja indícios de que já tem ocorrido transmissão comunitária da nova cepa no Brasil. A justificativa para a flexibilização das restrições internas era o avanço da vacinação e a melhora nos indicadores da pandemia, aferidos pela queda das internações hospitalares, das mortes e dos novos casos – é fato notório, entretanto, que o número de testes aplicados no Brasil seja consideravelmente mais baixo do que a média de outros países, como Chile, Argentina, África do Sul e Estados Unidos[3].
Assim, a defesa da adoção de passaportes vacinais para permitir a entrada de pessoas no país, fossem elas brasileiras ou não, tornou-se praticamente uníssona em determinada parcela da população e da imprensa. Justificava-se a medida sob diversas alegações, como o fato de vários países terem adotado a restrição como medida de controle da pandemia, de que a exigência estimularia a adesão à vacinação, de que indivíduos vacinados teriam menos chances de serem infectados ou de transmitirem o vírus, mas, sobretudo, de que demandar a comprovação de vacinação de pessoas que desejam entrar no país desincentivaria o chamado turismo antivacina, atraindo indivíduos ideologicamente reticentes em aderir ao pacto coletivo representado pela imunização.
Como signo inconteste da correção da adoção da medida estava a oposição feita por Jair Bolsonaro e sua claque, bastiões de um medievalismo extemporâneo que apodrecem todo debate que tocam, à medida. Com argumentos rasos, ambíguos e deturpados, o presidente e membros de seu governo, como o ministro da Saúde, sequestraram uma vez mais um debate que deveria ter sido feito de maneira parcimoniosa e democrática, transformando a crítica à medida em uma expressão de negacionismo equivalente a defender o uso de cloroquina ou ivermectina no tratamento contra a Covid-19, ou até à posição de membros do movimento antivacina, que recusam a imunização, o uso de máscaras e o distanciamento social sob a égide da preservação de liberdades individuais. A decisão do ministro Luís Roberto Barroso é exemplar neste sentido, citando expressamente "autoridades negacionistas" como uma das razões que embasa a decisão favorável pela obrigatoriedade da apresentação do passaporte vacinal em pedido feito pela Rede Sustentabilidade.

Antes de mais nada, é preciso entender as falhas da medida. Primeiro, não é negacionismo rechaçar a ideia de que a vacina concede salvo-conduto no quesito transmissibilidade e contágio: vacinas não impedem completamente o contágio ou a transmissão, e, sem medidas auxiliares de prevenção, como o uso de máscaras, evitar aglomerações e estruturação de um sistema de vigilância epidemiológica cujo pilar deve ser a testagem intensiva da população, o vírus continuará circulando e acumulando mutações que, eventualmente, serão capazes de escapar à vacina. Este é um dado científico, não uma conjectura negacionista. As vacinas foram, sim, capazes de reduzir a gravidade da pandemia, com redução importante nas hospitalizações e mortes, mas ao tomarmos a decisão política, não científica, de "conviver com o vírus", tomamos também a decisão de apenas adiar o inevitável: mais cedo ou mais tarde, elas se tornarão obsoletas precisamente por serem a única medida de prevenção adotada.
Um outro dado incontornável deste debate é que comprovantes de vacinação são muito facilmente falsificáveis, com casos abundantes[4] de verdadeiros negacionistas da vacinação[5] adquirindo certificados falsos por centenas ou milhares de dólares e euros[6]. Não há um padrão global de passaporte, e questões concernentes à intercambialidade de vacinas não aprovadas no Brasil não são unificadas entre estados, municípios e União. Como exemplo, somente em 08/12, quase um ano após o início da campanha de vacinação, a prefeitura de São Paulo, cidade que se autointitula "capital mundial da vacina", inseriu em seu instrutivo para equipes de saúde[7] os protocolos a serem adotados para vacinação de segunda dose de indivíduos que iniciaram seus ciclos vacinais em países com imunizantes não aprovados pela ANVISA, como é o caso da Sputnik V, adotada por países como Angola, Argentina, Bolívia, Paraguai e Venezuela, países de origem de grande parte dos migrantes residentes no Brasil. Até então, imigrantes que haviam tomado a primeira dose do imunizante russo em seus países de origem estavam reportando dificuldades em completar o esquema vacinal[8] por falta de orientação às Unidades Básicas de Saúde da capital.
Finalmente, é imprescindível recordar que tratar todas as pessoas que adentram o país como turistas é convenientemente esquecer que milhares dessas pessoas são migrantes internacionais oriundos de países com sérias dificuldades de acessar a vacinação, e que teriam uma chance de fazê-lo caso pudessem tentar viver no Brasil. Tomemos o exemplo dos haitianos mais uma vez. O Haiti passou a maior parte do ano de 2021 como a única nação do hemisfério ocidental do planeta sem qualquer dose de vacina em seu território. O país iniciou seu programa de vacinação apenas em julho após uma doação de 500 mil doses[9] do imunizante fabricado pela Moderna pelos Estados Unidos, suficientes para vacinar 250 mil pessoas – o país tem uma população de 11,4 milhões de habitantes. Até 11/12, o país havia aplicado 185 mil primeiras doses, e 67 mil segundas doses[10] em sua população.
Os haitianos são, hoje, o segundo maior grupo de migrantes internacionais no Brasil. Desde 2012, nacionais daquele país figuram todos os anos entre os principais fluxos de entrada no país[11]. Apesar da queda vertiginosa observada em razão da pandemia e das diversas restrições de entrada impostas sob a égide da política de segurança sanitária, os haitianos figuram como o segundo grupo que mais entrou no Brasil em 2020 segundo relatório do Observatório das Migrações Internacionais da Universidade de Brasília[12] (OBMigra – UnB). Os venezuelanos, que vêm de um país com 35% da população completamente vacinada, foram o grupo com maior número de registros no país. Estes também são dados científicos.
É importante destacar também que o apartheid global de vacinas se reproduz em escala local[13], o que significa dizer que os cidadãos mais vulneráveis têm maior dificuldade em se vacinar mesmo em casos em que há disponibilidade de vacinas – pesquisa de Raquel Rolnik demonstra[14] como este foi o caso da vacinação no município de São Paulo, por exemplo, quando os bairros periféricos onde a maior parte das mortes por Covid-19 ocorreram foram aqueles onde a vacinação caminhou mais lentamente. Assim, a exigência de passaportes de vacina para a entrada no país afeta os mais pobres dos países mais pobres que desejam migrar, majoritariamente pretos e indígenas. A medida, portanto, não é apenas discriminatória, mas racista. Muito mais eficaz seria, por exemplo, condicionar a entrada das pessoas à imunização, nos aeroportos e em postos de vacinação distribuídos pelas fronteiras terrestres brasileiras, caso não consigam apresentar comprovante algum.

Aprovar esta medida neste momento segue a lógica de outras medidas de criação de dificuldades à entrada de migrantes, em especial os mais pobres e os racializados, e a tendência é que tais medidas extraordinárias se prolonguem no tempo, como no caso das portarias de restrição de entrada que, conjugadas à portaria 770/19, de autoria do ex-ministro Sergio Moro, possibilitaram e continuam a permitir a deportação de milhares de migrantes que tentam entrar no Brasil durante a pandemia, antes mesmo que possam ao menos solicitar regularização no país, o que é flagrantemente inconstitucional e fere os tratados internacionais sobre migração e refúgio assinados pelo Brasil.
Por fim, é preciso trazer à luz as disputas políticas internas à ciência. Desqualificar qualquer argumentação sobre a pandemia enquanto anticientífica quando esta desafia os postulados de determinados nomes de uma espécie de elite da ciência brasileira e mundial é desconsiderar as assimetrias entre as diferentes correntes que compõem o saber científico, e ignorar as controvérsias próprias da produção dos fatos científicos – algo já discutido pela epistemologia pelo menos desde a década de 1970.
É por esta razão que, em se tratando de discussões sobre a pandemia, é imprescindível ouvir mais que epidemiologistas, virologistas, biólogos e infectologistas, mas é preciso colocar à mesa também as humanidades imbuídas na reflexão sobre os impactos sociais da pandemia, levando-os efetivamente a sério, e não apenas como detalhes acessórios àquilo que, em teoria, realmente importa. A quem serve esta versão amputada do que é ciência?
Alexandre Branco-Pereira é doutorando em Antropologia Social (PPGAS-UFSCar), Pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (USFCar), do Promigras - Migração e Saúde (Unifesp) e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Coordenador da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), do Observatório Saúde e Migração (UFSCar) e da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados. Editor do Boletim do Observatório Saúde e Migração (Boletim OSM). Também coordenou a comissão organizadora da 1ª Plenária Nacional sobre Saúde e Migração. Integra o Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É autor dos livros "Mas é só você que vê?" (Editora NEA) e "Viajantes do Tempo: imigrantes-refugiadas, saúde mental, cultura e racismo na cidade de São Paulo" (Editora CRV).
Diana Isabel López, nome artístico D. Akokán, é artista visual e graduanda em Pintura pela EBA-UFRJ. Nasceu em 15 de maio de 1979 em Cali, Colômbia. Morou no seu país até os sete anos de idade quando, devido à violência e a falta de oportunidades, a sua família se viu forçada a emigrar para os EUA, onde morou até a sua mudança para o Brasil em 2006. A sua poética inclui temas de justiça social, a vida no subúrbio latino, o afeto e a espiritualidade. Durante a pandemia, trabalhou com retratos como forma de ajudar, no processo de luto.
Foto da chamada: "La Balsa". Óleo sobre tela. 60X80cm. Crédito: D. Akokán, 2021. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito CHAMADA "MOBILIDADE HUMANA E CORONAVÍRUS" em branco.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências
[2] https://ourworldindata.org/covid-vaccinations?country=OWID_WRL.
[10] https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&state=7&mid=%2Fm%2F03gyl&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419.
[14] http://www.labcidade.fau.usp.br/vacinacao-avanca-de-forma-desigual-em-sao-paulo/.
A chamada "Mobilidade Humana e Coronavírus" é uma iniciativa do Museu da Imigração para divulgação de artigos, ensaios e materiais visuais selecionados, por meio de edital aberto entre fevereiro e abril de 2022. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série homônima, seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.