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Hospedaria em Quarentena: O aparelho Clayton
Desde o início da série Hospedaria em Quarentena, analisamos a presença da Hospedaria do Brás no contexto das diversas epidemias que afetaram a cidade de São Paulo. Relatamos sua atuação em tomar medidas profiláticas e de mais segurança para a chegada de migrantes e seu papel como local de apoio e resguardo durante surtos infecciosos. Falamos também sobre a cidade de São Paulo ter passado por um rápido processo de urbanização e crescimento industrial na primeira metade do século XX. Essas informações foram extensamente explanadas nos demais textos. Contudo, é preciso dizer que, nessas primeiras décadas, houve também grande avanço da medicina, especialmente da microbiologia. O avanço das áreas de infectologia colocou uma nova luz sobre as questões sanitárias; a descoberta dos vetores como causa, dos meios de transmissão das doenças e suas formas de contágio foram um grande passo.
Segundo a autora Fernanda Rabelo, que se debruçou sobre o tema, o processo migratório já era visto com uma carga de desconfiança a despeito das novas compreensões acerca do contágio de doenças. Uma das principais práticas de profilaxia era a quarentena:
"No início do XX, identificamos a emergência do ideário da microbiologia e dos vetores no serviço sanitário dos portos. A quarentena, que já vinha sendo criticada como antiquada e ineficaz, é limitada a alguns casos, e novos métodos e tecnologias da higiene passam a ser aplicados na defesa sanitária dos portos."[1]
Desde a década de 1890, com as epidemias no litoral e interior de São Paulo, e a crescente expansão dos meios de transporte, diversas tentativas de modernizar as medidas profiláticas buscavam ser tomadas. Um exemplo foi a moderna instalação de estufas nas estações ferroviárias para a desinfecção de roupas e bagagens dos passageiros e pulverizadores de objetos. A partir de 1896, três novos desinfetórios foram instalados em Santos, Campinas e Rio Claro[2]. O sistema, ao ser implementado, resultou na modernização da própria Hospedaria de Imigrantes do Brás, principal local de passagem dos imigrantes no caminho de Santos para o interior paulista. Em 31 de agosto de 1899, inaugurou-se na Hospedaria esse novo sistema de desinfecção de bagagens pois, por estar no encontro das principais ferrovias do Estado e receber grande quantidade de pessoas – especialmente estrangeiros – precisava possuir um sistema de controle eficaz para conter epidemias. Poucos meses depois, em outubro do mesmo ano, por conta de um surto de peste bubônica ocorrido em Santos, decretou-se que todos os passageiros e seus pertences vindos dessa cidade com destino à capital deveriam passar por banhos e pela estufa de desinfecção na Hospedaria. Assim, ela representava novamente um papel preponderante neste sistema de controle da saúde da cidade de São Paulo e do interior.

No entanto, o processo migratório não era a única razão para tomar medidas mais rígidas nos portos. Falamos de uma época de intensa circulação de mercadorias. A quarentena e a restrição da entrada daquele volume de artigos representariam perdas econômicas e grave entrave comercial pelos custos que surgiam com o resguardo dos navios. Novas práticas de inspeção davam origem a novos saberes sobre prevenção de doenças, realizadas pelo Serviço Sanitário da Inspetoria Geral de Saúde dos Portos.
Um desses novos métodos era a vigilância médica através das chamadas Cartas de Saúde. Tratava-se de uma espécie de visto de entrada do navio, caso não tivessem sido registrados casos de doenças durante o percurso. Assim, ele poderia efetuar suas transações no porto. Essas novas regras foram explicitadas pelo Regulamento do Serviço Sanitário de 1904.
Essas mudanças e adaptações incluíam o uso do aparelho Clayton, pensando justamente nesse contexto de avanço dos estudos bacteriológicos. A intenção era também contribuir para a esfera dos negócios, substituindo o isolamento dos navios pela eliminação das matérias contaminadas por meio da desinfecção. A Diretoria do Serviço Sanitário o encomendou da Europa. Para os estudiosos do tema Luis Reznik e Juliana Carolina Costa, o aparelho de gás de Clayton surgiu como a nova estrela da profilaxia moderna, passando a ser utilizado na desinfecção de navios, mercadorias e bagagens, com a promessa de liquidar qualquer tipo de vetor (rato, pulga, mosquito) e micróbios.[3] Ele foi inaugurado em outubro de 1903, depois de uma surpreendente epidemia de peste bubônica, sendo instalado em todos os navios que partiam da capital com destino aos demais portos brasileiros. Posteriormente, se tornou obrigatório em embarcações que viajassem por um período de mais de 48 horas, por conta do já citado acordo de Regulamento de Serviço Sanitário de 1904.[4] O aparelho funcionava emitindo um gás, chamado de gás de Clayton, composto de gás sulforoso seco. Os navios também deveriam portar junto dele câmaras de formol. Foram feitos testes na França, demonstrando a eficácia desses gases contra diversas espécies de animais portadores de moléstias, tornando ambientes e objetos desinfectados.
O aparelho de Clayton era novidade no Brasil e na Europa, utilizado pela primeira vez no Brasil (na cidade do Rio de Janeiro) e na França no mesmo ano: 1903. O aparelho permitia que a desinfecção fosse feita ainda em alto mar, sem a necessidade dos navios provenientes do Rio de Janeiro se dirigirem até a Ilha Grande para realizar procedimentos sanitários, como era protocolo até então. Bastava utilizá-lo nos porões dos navios e, após algumas horas ou dias, observar os animais mortos antes da descarga no momento do desembarque. Segundo Rabelo, os testes concluíram que o gás foi perfeitamente eficaz na desinfecção:
"(...) o uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelho de Clayton, nas condições em que foi empregado (grau de concentração de 8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste. Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas etc., sem alterar sensivelmente as mercadorias mais delicadas, como peles, couros, cereais, açúcar, carnes, frutas, tampouco causando o menor estrago nos objetos de metal."[5]

Júlio Cesar Schweickardt, que também realizou um estudo sobre as medidas profiláticas nas cidades de Manaus e Belém do Pará no começo do século XX, explica sobre os gases:
"Os produtos utilizados nas desinfecções são os seguintes: “Enxofre, em bastão ou velas, formol, sublimado corrosivo (solução a 1%), ácido fênico (solução 5%), sulfato de cobre, cloreto de cal, cloreto de zinco, permanganato de potássio, alcatrão, leite de cal, petróleo e pós de pireto.” Os aparelhos e carros da seção de desinfecção eram os seguintes: “uma estufa locomóvel de Geneste Herscher”, cinco pulverizadores do mesmo fabricante, último modelo, “dois autoclaves Honot”, “dois pulverizadores Guasco para a desinfecção pelo formol”, um “formalizador Hélios, funcionando com formol e pastilhas paraformicas”, estufas para material infectado, “dez formalizadores, modelo pequeno para pastilhas de formol”, dois carros para transporte de doentes, um “aparelho Clayton, última palavra em desinfecção de embarcações”. O pessoal da seção de desinfecção era composto por três desinfetadores, um condutor de carros e um ajudante, sendo chefiado pelo médico Basílio Raymundo Seixas (Nery, 1906a, p. 140). Nas Instruções para o serviço de profilaxia específica da febre amarela no Rio de Janeiro, em maio de 1903, os prédios suspeitos sofriam queimas de enxofre e pireto, e vaporização de formol durante uma hora para a extinção do mosquito infectado." (Artigo 21. In: Franco, 1976, p.164)[6]
Para Rabelo, a aplicação dessas novas medidas se tornou embargo apenas para os mais pobres, pois enquanto a primeira e segunda classe tinham que passar pelos procedimentos profiláticos que as autoridades sanitárias achassem necessário, a primeira classe tinha direito de circular livremente, utilizando-se de passaportes sanitários.
Mas não apenas nos portos ou no serviço de imigração se deu o uso da máquina. O jornal O Criador Paulista, na edição 30 do ano de 1908, publicava:
"Para uma desinfecção rigorosa e methodica dos estabulos e dos vagons ferroviarios, para o transporte dos animaes, está sendo usado o methodo Clayton que foi reconhecido como o mais pratico nas exigencias da industria rural. Para o uso do mehodo Clayton existem apparelhos construidos de dois typos sendo um provido de motor montado sobre rosas para ser puxado por bois ou cabellos e outro é movido a mão e facilmente transportavel. Com o methoso Clayton pode-se fazer a desinfecção tanto dos ambientes em que vivem os animaes quanto nos locaes habitados pelo homem, e, essa desinfecção não é indicada somente para a destruição dos germsn pathogenicos, mas é também propria como meio prophylaptico nas molestias epidemicas e contagiosas, podendo ainda ser usada com grande aprovitamento paa a distruição de pequeos animaes e insectos como sejam ratos, moscas, baratas, pulgas, etc. O methoso Clyaton, nestas condições, torna-se preciosos elemento para prevenir as molestias contagiosas e para garantr a conservação dos nossos procustos armazenados nos celleiros e deposito das fazendas."[7]
O jornal O Correio Paulistano publicou, no dia 6 de agosto de 1911, que o método do gás Clayton estava sendo usado também nas casas:
"O Brasil aqui provou cabalmente que em questão de instituições e progressos de hygiene marcha à rente com as mais adcantadas nações (...) Fizeram correr as fitas da prophylaxia da febre amarella, do expurgo por meio de gaz sulforoso de casas infectadas da applicação do aparelho Clayton para a extinção de mosquitos nos encanamentos de aguas pluviais."[8]
A compra do aparelho foi resultado da necessidade de mudanças nas medidas profiláticas nos portos, mediante agravamento de problemas sanitários e entraves comerciais. O Brasil desejava evitar quarentenas prolongadas, buscando aperfeiçoar os serviços dos portos com mais modernidade. A Hospedaria de São Paulo foi parte central destas reformas de controle sanitário da cidade por ser o local de confluências de milhares de pessoas em direção às ferrovias e ao interior paulista. Com a utilização do aparelho, de fato, o problema do desembarque de mercadorias foi suavizado. No entanto, com relação aos passageiros, é possível que as medidas tenham reforçado uma política de controle imigratório. De todo modo, foi uma boa resposta aos problemas específicos que mencionamos aqui, por proporcionar mais segurança no combate às epidemias e facilidade na elevação comercial e econômica do país.
Referências bibliográficas
[1] REBELO, Fernanda. A travessia: imigração, saúde e profilaxia internacional, 1890-1926. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010.
[2] TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Imigração e epidemias no estado de São Paulo. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 3, n. 2, p. 265-283, Oct. 1996.
[3] REZNIK, Luís; COSTA, Juliana Carolina Oliveira. Como manter saudáveis nossos imigrantes: preceitos higienistas na constituição da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores. História, Ciência, Saúde de-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.26, n.1, p.15-32, mar. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702019000100015&lng=en&nrm=iso. access on 22 June 2020. https://doi.org/10.1590/s0104-59702019000100002.
[4] Aparelho de Clayton para desinfecção. Memória Saúde. Disponível em: https://memoriasaude.org.br/2018/09/aparelho-de-clayton-para-desinfeccao/.
[5] REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, p.765-796, Set. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702013000300765&lng=en&nrm=iso. Acesso em 22 de junho de 2020.
[6] SCHWEICKARDT, Júlio. Ciência, nação e região. As doenças tropicais e o saneamento no estado do Amazonas, 1890-1930. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.
[7] Jornal O Criador Paulista (SP). Ano 1908, edição 00030, p.621. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=186082&pesq=%22aparelho%20clayton%22.
[8] Jornal Correio Paulistano. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_06&pesq=%22aparelho%20clayton%22.
Foto da chamada: inspeção médica na Hospedaria de Imigrantes do Brás.