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Afinal, o que é o brasileiro? - Territórios e identidades: estudo de caso do bairro da Liberdade - São Paulo, SP
Nos artigos anteriores, discutimos os processos de deslocamentos de grupos pela cidade de São Paulo e a formação da nação brasileira, tratada, principalmente, nos dois últimos artigos produzidos pela equipe de pesquisa do MI.
Ao nos perguntarmos "Afinal, o que é o brasileiro?", nos deparamos com a questão da ocupação dos territórios e das identidades dos grupos que por ali passaram e se constituíram. Desde a Proclamação da Independência, em 1822, criou-se a necessidade "oficial" de construir quem seriam "os brasileiros". Nos patrimônios e monumentos espalhados pelas cidades, personalidades e grupos são enfatizados e têm as suas memórias lembradas, dando nome às ruas, vilas, bairros, rodovias, viadutos e municípios. Nesse artigo, refletiremos sobre espaços e identidades de grupos migrantes por meio do estudo de caso do bairro da Liberdade na cidade de São Paulo.
Nas produções científicas sobre urbanização e migração, a temática da transformação dos espaços urbanos ocupa posição de destaque. Para o historiador Odair da Cruz Paiva, os territórios da migração "são totalidades complexas que se constroem sobrepondo-se e ocultando outros sujeitos, outras sociabilidades, outros territórios"[1]. Tendo isso em vista, podemos considerar que a região central da cidade de São Paulo – conhecida, atualmente, como bairro da Liberdade – sofreu grandes alterações na ocupação do território na passagem do século XIX para o século XX. Entre os grandes eventos que influenciaram esse processo, podemos mencionar o fim do Império, a abolição da escravidão e a grande quantidade de migrantes internacionais que chegaram nesses anos.
Durante o período, marcado por uma série de políticas de controle e exclusão urbanas, conhecidas como "higienização", focadas nas populações negras e pobres das cidades, e políticas de atração e subsídio de estrangeiros – sobretudo europeus –, as populações negras foram sendo empurradas para as periferias, que compreendiam, naquele momento, as regiões do bairro do Bexiga e sul da Sé[2].
Por definição, os "bairros" são parte de um princípio organizacional e administrativo que se compreende em uma estrutura urbana. Esses territórios possuem diferenciação econômica, hábitos sociais e ações individuais que se apresentam como resultante das contradições e das práticas que são desenvolvidas naquele espaço[3]. O bairro da Liberdade foi ocupado por migrantes japoneses, apenas, na década de 1910. Antes da presença massiva desse grupo, populações negras recém-libertas, outros grupos de brasileiros e, até mesmo, migrantes italianos (algumas décadas antes), já tinham sido parte fundamental e constituinte das dinâmicas culturais e de sociabilidade daquele território. O debate sobre os apagamentos e as invisibilidades, principalmente do passado escravocrata do bairro, tem sido pauta de discussões e reivindicações de movimentos sociais (principalmente dos movimentos negros) nas últimas décadas. Essas questões nos colocam a pensar: "Afinal, o que está sendo reivindicado naquele território?".

A urbanista Ana Cláudia Barone afirma que múltiplas camadas históricas e significados ambivalentes estão em voga na luta pela ressignificação da memória coletiva do bairro da Liberdade. Para explicar o debate, a autora constrói uma espécie de "linha do tempo", regredindo ao período colonial do Brasil para contextualizar a ocupação do território, primeiramente, por grupos indígenas e, depois, marcada pela presença de aldeamentos jesuíticos. Já no Império, a região central de São Paulo era marcada pela presença de "pelourinhos", instituições de poder da Coroa, cuja finalidade era de açoitar a pessoa escravizada como prática de punição "exemplar", uma "lição pública"[4]. Essa região, hoje, pertence à praça central do bairro da Liberdade, importante entreposto comercial de produtos orientais.
Ana Cláudia afirma, ainda, que "o Pelourinho, o quartel, a Casa de Câmara e a Prisão, a Igreja dos Remédios, a forca e o cemitério dos pobres foram demolidos para dar lugar à moderna cidade republicana"[5].
A museóloga Bruna Miyazaki argumenta que o imaginário coletivo do bairro da Liberdade foi estruturado como pretexto de desenvolvimento econômico da região. Segundo a autora, além do apagamento do passado negro da localidade, há a associação direta do termo "ORIENTAL" como sinônimo de "JAPONÊS", ainda que a presença massiva, nos dias de hoje, seja de migrantes coreanos e chineses. Também é interessante pensar que esses migrantes e comerciantes, ainda que não advindos do Japão, continuam comercializando produtos japoneses, junto aos de outros países, que são o grande atrativo de pessoas e turistas para a região[6].
Em 24 de julho de 2018, entrou em vigor o decreto Nº 63.604 que alterou o nome da estação de metrô para "Japão - Liberdade". Segundo a museóloga, "o uso da palavra Japão trouxe uma visão generalizante que diverge da real configuração do bairro da Liberdade, que é plural em todas as formas de expressão cultural, ainda que não sejam vendidas pelo turismo cultural".[7]
Com as reivindicações das múltiplas memórias do bairro da Liberdade pelos movimentos sociais há décadas, em janeiro de 2020, foi sancionada a lei municipal para inauguração do "Memorial da Capela dos Aflitos"[8], área que abrigava um antigo cemitério de escravizados da região.

O caso do bairro da Liberdade é um importante exemplo das memórias, sociabilidades e identidades em disputa nos territórios. O apagamento do passado escravocrata e a exaltação do migrante internacional como "desejado" para a construção do Brasil pós-Independência é evidenciada pelas disputas em espaços urbanos, principalmente em cidades cosmopolitas, como é o caso da cidade de São Paulo.
Assim, no artigo de hoje, procuramos refletir sobre as pluralidades dos espaços públicos e os diferentes usos e apropriações ao longo do tempo. Para complementar o debate, a equipe de pesquisa do MI recomenda ao público o curta-metragem "Liberdade" (2018), disponível gratuitamente na internet. Com direção de Vinícius Silva e Pedro Nishi, o filme é uma produção do Coletivo Centro Cultural da Guiné.
Referências
[1] DA CRUZ PAIVA, Odair. Territórios da migração na cidade de São Paulo: afirmação, negação e ocultamentos. RiMe. Rivista dell'Istituto di Storia dell'Europa Mediterranea (ISSN 2035-794X), p. 687-704, 2011.
[2] DA CRUZ PAIVA, Odair. Territórios da migração na cidade de São Paulo: afirmação, negação e ocultamentos. RiMe. Rivista dell'Istituto di Storia dell'Europa Mediterranea (ISSN 2035-794X), p. 687-704, 2011, p.698.
[3] SOUZA, Marco. Imagem urbana e identidade cultural: expressões midiáticas na comunicação bilíngüe do Bairro da Liberdade. ABEJ Papers, São Paulo, p. 1-13, 2008.
[4] GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. Dicionário da escravidão e liberdade, v. 50, p. 144-148, 2018.
[5] BARONE, ANA CLÁUDIA CASTILHO. Liberdade e Punição: O que se reivindica na disputa pela identidade racial no bairro da Liberdade?. p,90.
[6] SOUZA, Bruna Miyazaki de. Memórias da liberdade: uma análise das transformações no bairro da Liberdade, em São Paulo a partir da renomeação da estação de metrô para "Japão-Liberdade". 2020.
[7] SOUZA, Bruna Miyazaki de. Memórias da liberdade: uma análise das transformações no bairro da Liberdade, em São Paulo a partir da renomeação da estação de metrô para "Japão-Liberdade". 2020, p.35.