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Mobilidade Humana e Coronavírus: Novos fluxos migratórios estão prestes a acontecer... E não estamos preparados para eles
Durante os últimos meses, temos visto uma série de reflexões, análises e notícias que nos confrontam com os múltiplos e interconectados impactos produzidos ao redor do mundo como resultado da proliferação do COVID-19. O impacto acelerado e a grande escala desta doença geraram cenários para os quais nenhum país estava preparado, desafiando não apenas os sistemas de saúde, em nível global e local, mas também o sistema econômico, social e político. As consequências sistêmicas deste evento vêm causando milhares de mortes em todo o globo, recrudescendo as consequências de um sistema econômico liberal, que já se mostrava em declive[1].
Os esforços da Organização Mundial as Saúde (OMS) por orientar as medidas de combate ao avanço do vírus não tiveram os resultados esperados[2]. O início da expansão do COVID 19, que começou na China, foi testando a capacidade de resposta dos diferentes países[3]. As regiões da Ásia e Europa, onde a curva de ascensão do vírus vem diminuindo, mesmo possuindo economias estáveis e sistemas de sociais mais fortes, viram seus hospitais lotados e sem capacidade de resposta ao rápido avanço do vírus[4]. Na região da América do Norte, atual epicentro da pandemia com mais de 70.000 mortes, os EUA enfrentam um cenário de receio sobre a capacidade de resposta do seu sistema de saúde frente ao anúncio de reinício das atividades econômicas feito pela gestão Trump[5].
Entretanto, o cenário mundial torna-se mais preocupante quando observamos o avanço do Coronavírus em economias emergentes como as da África[6], Oriente Médio[7] e o resto da América[8]. De fato, não é possível comparar o cenário dos países que superaram a primeira onda de contágio até o momento com o que pode vir a acontecer com a expansão do vírus a estas regiões do globo. O mundo ainda não viu o potencial máximo de devastação que pode chegar a ter este vírus. O fator crucial para este cenário preocupante é o grau de vulnerabilidade social e econômica na qual milhões de pessoas se encontram nestes países e a instabilidade política e a precariedade dos seus sistemas de saúde.
Na América Latina, diferentemente dos países ditos do primeiro mundo, os níveis de desigualdade social, precariedade e informalidade constituem um enorme desafio para o combate à doença. O cumprimento do isolamento social, recomendação mais importante e efetiva para evitar o contágio, tem sido extremamente difícil. Para milhares de pessoas é simplesmente impraticável ficar em casa porque sua subsistência depende da continuidade do trabalho diário[9]. Com a economia global gravemente afetada[10] e sem fontes de trabalho direto, milhares de pessoas se veem na necessidade de sair de casa e arriscam sua saúde para poder gerar alguma renda que as permita suprir as necessidades mínimas e fundamentais nesta pandemia: alimentação e moradia. Em outros casos nem conseguem realizar qualquer tipo de atividade devido às restrições impostas pelos governos. Isto, inevitavelmente, aumenta o contágio do vírus causando o colapso dos sistemas de saúde[11].
Embora em vários países da região tenham-se aplicado medidas para reduzir este impacto e estimular o isolamento social através de auxílios econômicos emergenciais[12], em muitos casos o acesso a estes benefícios tem sido lento e difícil, em alguns casos até inacessível[13]. Este cenário é ainda pior para alguns grupos que já se encontravam fragilizados antes da pandemia. É o caso dos migrantes nacionais e internacionais, que se deslocam entre cidades, estados ou, até mesmo, países em busca de garantir a subsistência e fugir do vírus.
A falta de dinheiro para a compra de alimentos e pagamento de aluguel tem obrigado as pessoas a migrar internamente, principalmente, desde as grandes capitais e centros urbanos para o interior, apesar da pandemia. Em alguns casos, o desespero pela falta de meios de subsistência tem obrigado às pessoas a se deslocarem, inclusive em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade. Um exemplo deste processo é o acontecido no Peru. Com uma taxa de informalidade que alcança o 64% da sua economia[14], vem experimentando um fenômeno de êxodo de milhares de pessoas que se deslocam caminhando por centenas de quilômetros com a esperança de retornar e chegar às suas cidades de origem[15].
No caso das migrações externas ou internacionais, o cenário pode vir a ser semelhante. Desde o início da pandemia, diferentes países fecharam suas fronteiras como medida para evitar a expansão do vírus em seus territórios[16]. Entretanto, como acontece em diversos processos migratórios, isto não tem impedido o deslocamento de pessoas, sobretudo daquelas em extrema vulnerabilidade. A falta de emprego e as dificuldades para acessar aos benefícios sociais emergenciais[17], que garantam sua alimentação e moradia, têm obrigado centenas de imigrantes a retornarem aos seus países. O caso mais dramático atualmente é dos venezuelanos, que desde diferentes países fronteiriços, aos quais chegaram fugindo da Venezuela, tem retornado ao país devido à crise deflagrada pelo COVID-19 nos países vizinhos[18]. Outro caso semelhante é o acontecido com um grupo de imigrantes que viajou por terra de São Paulo até a fronteira com o Peru. Após vários dias de viagem, 23 peruanos chegaram na fronteira e passaram por exames de saúde antes de continuar sua viagem. Quatro deles tinham Coronavírus[19]. Fluxos semelhantes têm acontecido na fronteira Brasil-Bolívia[20][21].
O aumento deste tipo de fluxos migratórios durante uma pandemia gera um cenário bastante preocupante. O fechamento de fronteiras sem políticas e protocolos que prevejam a migração segura, ordenada e regular dos imigrantes que se deslocam em situação de extrema vulnerabilidade, pode resultar em um trancamento de fronteiras que facilite a disseminação do vírus e coloque essas pessoas em risco. Uma situação como esta aconteceu na fronteira Bolívia-Chile, onde mais de 800 bolivianos foram impedidos de ingressar no seu país devido ao fechamento de fronteiras[22]. Este evento motivou o pronunciamento da Alta Comissionada para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, quem instou aos países, tanto de origem quanto de destino, à abertura de fronteiras para o retorno dos imigrantes, protegendo e garantindo o respeito aos direitos humanos[23].
Não cabe dúvida que os impactos do COVID-19 nesta região serão enormes. A paralisação da economia e a agudização de cenários de insegurança alimentar[24] devem gerar uma profunda crise econômica que afetará principalmente os mais pobres[25]. Neste horizonte, considerando o impacto sistêmico causado pelo Coronavírus, resulta lógico pensar que as estratégias de enfrentamento e superação também devam ser sistêmicas e articuladas entre os países. No entanto, até o momento, todos eles têm atuado individualmente, desenhando estratégias próprias, sem colocar em discussão uma agenda global para o enfrentamento da crise[26].
Os desafios colocados pela pandemia do Coronavírus nos demostram a urgente necessidade de nos enxergar como uma sociedade interdependente, onde a segurança e bem-estar de um depende da segurança e bem-estar dos outros. Esta importante lição deve ser aprendida por toda a humanidade e deve guiar o planejamento para a reconstrução de uma sociedade fortalecida, capaz de enfrentar novos desafios que virão. O Coronavírus não será a última doença que afetará gravemente a humanidade e nem é o único fator capaz de gerar crises sistêmicas[27]. Por isso, neste momento de grande incerteza sobre nosso futuro e olhando para nossa fragilidade como espécie, as palavras que guiem nossos rumos devem ser cooperação, solidariedade e empatia.
Zenaida Lauda-Rodriguez, doutora em Ciências pela USP, advogada pela Universidade Nacional do Altiplano – Peru. Membro da RESAMA – Rede Sudamericana para as Migrações Ambientais e do PROMIGRA – Projeto de Promoção do Direitos de Migrantes.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[4] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52553731
[10] https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-13/como-sera-a-economia-apos-o-coronavirus.html
[14] Defensoría del Pueblo. Estado de Emergencia Sanitaria: El problema de la informalidad laboral en una economía confinada. Disponível em: <https://www.defensoria.gob.pe/wp-content/uploads/2020/04/Serie-de-Informes-Especiales-N%C2%B0-02-2020-DP-Problema-de-la-informalidad-laboral-en-una-economia-confinada.pdf>
[15] https://www.pagina12.com.ar/261724-crece-en-peru-el-exodo-del-hambre
[27] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/covid-19-pandemia-pode-convergir-com-crise-climatica_n1222362
Foto da chamada: (crédito) Jim Black via Pixabay