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Mobilidade Humana e Coronavírus: O que o vírus fala de mim, do outro e do nosso mundo atual
Desde o início desse ano da segunda década do século vinte e um, o mundo vive com o Coronavírus (Covid-19). A Organização Mundial de Saúde (OMS) recentemente o classificou como uma pandemia. Isto quer dizer que é uma doença infecciosa amplamente disseminada, é contagioso e transmitido por meio de gotículas respiratórias. Embora seu grau de contágio seja moderado, o fato de ser uma doença de transmissão respiratória dificulta as medidas de controle. Além disso, o grau de letalidade influencia diretamente na capacidade de contágio da doença. Enquanto outros vírus mais graves logo levam a pessoa infectada a falecer, antes de disseminar a doença, uma pessoa com o Covid-19 pode não apresentar os sintomas, mas espalhá-lo. Daí as medidas necessárias de isolamento social.
Logo no início do surgimento do vírus circularam no Brasil, em redes sociais como WhatsApp, Facebook e Twitter, vídeos claramente montados alegando que devido à falta de higiene e a sua culinária à base de animais estranhos, a culpa por essa doença era dos chineses. Circulou inclusive um vídeo de pouco mais de dois minutos do programa "TGR Leonardo", da rede de televisão italiana RAI. Embora uma matéria de novembro de 2015 nos faz crer que de fato a origem do vírus não só foi na China como foi uma fabricação de cientistas chineses que criaram um supervírus de pulmão a partir de morcegos e camundongos. O vídeo é verdadeiro e em 2015 suscitou polêmica na Itália, mas os cientistas já mostraram que o vírus criado em laboratório não tem nada em comum com o Covid-19. Vemos com esse exemplo mais um claro caso de descontextualização de uma informação. Dissemina-se uma falsa informação, uma narrativa indutora de preconceito e baseada no medo. Concomitantemente pessoas de fenótipo oriental, sejam descendentes de japoneses, coreanos e mesmo chineses, no Brasil e no mundo, passam a ser hostilizadas nas ruas e a sofrer agressões verbais e até físicas por parte de desconhecidos. Passam a sofrer preconceito.
Como nos mostra Crochik[1] o preconceito apesar de ser uma reação individual baseia-se em um estereótipo que é um produto cultural. Importante destacar, portanto, que o preconceito não é inato, não se nasce preconceituoso. Ele é uma manifestação individual que surge na socialização fruto da cultura e história pessoal. Se o processo de socialização só pode ser vivido pelo indivíduo, as formas, os instrumentos e os conteúdos pertencem à cultura. Mas a fragilidade individual nega a própria capacidade de refletir e experimentar os objetos fornecidos pela cultura. Utiliza-se o mecanismo psíquico de cisão, em que o mundo divide-se em bom e mau. Projeta-se no outro aquilo que é mau e a pessoa inclui-se naquilo que é bom. Devido a impotência que a pessoa sente para lidar com os sofrimentos provenientes da realidade, defensivamente, como em uma formação reativa transforma seus sentimentos em onipotência e se julga superior ao seu objeto. Assim, o outro é visto como perigoso como uma ameaça enquanto o preconceituoso se vê como alguém com direito a defender-se e proteger-se daquele mal.
Paradoxalmente, em um mundo em que se enaltecem países considerados superpotências, poderosos economicamente e militarmente, um vírus vem nos mostrar que somos todos apenas humanos. Todas as hierarquizações pautadas em relações de dominação em que uns consideram que podem mais, sabem mais e submetem os outros, caem por terra. É preciso a força da humildade e do aprendizado a partir da fragilidade. Continuaremos criando barreiras, em que uns podem adentrar uma nação e outros não, a permitir que populações inteiras e países sejam dizimados em nome do interesse de superpotências?
A tecnologia de comunicação que nos conecta pode ainda mais nos dividir. Através de redes sociais controladas por algoritmos aqueles que muitas vezes compram esses dados decidem que informações oferecer ou negar a cada público. E as notícias fabricadas acirram preconceitos cindindo ainda mais as sociedades e o mundo. Ficamos impossibilitados de compartilhar uma narrativa sobre o presente. Estamos em uma encruzilhada. Krenak[2] nos mostra que para adiar o fim do mundo é preciso questionar essa atual visão de mundo. É hora de ouvir quem foi silenciado, perceber as imagens distorcidas e encararmos a verdade. O Covid-19 nos coloca esse desafio.
Referências bibliográficas
[1] Crochik, J. L. (2006). Preconceito, indivíduo e cultura. SP; Casa Do Psicólogo.
[2] Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. SP: Cia. das Letras.
SYLVIA DANTAS é professora do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e vice-coordenadora do grupo Diálogos Interculturais do IEA-USP. Psicóloga social, intercultural e psicanalista. Ph.D. em Psicologia Social pela Boston University.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.