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Mobilidade Humana e Coronavírus: "Senti que o mundo parou, mas as contas não. Até agora não para"
Jhannyna é conhecida do Museu da Imigração há quase um ano, quando começou a participar de atividades realizadas no equipamento cultural, na sala disponibilizada às comunidades migrantes. Atendendo ao nosso pedido, nos concedeu uma entrevista no fim do mês de maio, quando já completávamos, em São Paulo, mais de um mês do início das medidas de isolamento social.
Mãe de três filhos, é natural de La Paz, Bolívia. Trabalhava com vendas, mas, ganhando pouco, desde cedo vislumbrava sair da cidade natal para trabalhar, poupar e garantir melhores condições para sua mãe, os irmãos e os filhos. Chegou a cursar os primeiros anos em Assistência Social na Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), escolha guiada por sua "vontade de sempre ajudar".
Em 2010, depois de uma curta e difícil estada pela cidade de Santa Cruz de La Sierra, chegou a São Paulo, seguindo a sugestão de um de seus irmãos, que a convenceu das oportunidades oferecidas pela megalópole. Aqui, aceitou o primeiro trabalho que lhe ofertaram, um posto em uma oficina de costura. Lhe agradava o fato de trabalhar dentro da própria casa, pois – diferentemente das vendas – a oficina garantiria maior tempo para estar junto aos seus filhos. Ao chegar no destino esperado, porém, no bairro da Zona Leste, "foi muito triste", como nos disse.
Primeiro, porque quando cheguei, cheguei a trabalhar em um lugar onde não podia sair, onde meus filhos não tinham o direito de estudar. Eles ficavam com febre, doentes, e a dona [da oficina] não deixava nem sair, [não dava] nem uma aspirina para eles. E eu via como meus filhos estavam tão livres lá na Bolívia, ficavam fechados do meu lado [no Brasil], com aquele monte de serviço. Essa coisa foi muito mais marcante para mim. Foi muito triste e pior quando percebi que tínhamos que acordar cedo, desde 7 horas entrava trabalhando até 11 horas da noite, sem ter tempo para, pelo menos, dar carinho aos meus filhos.
A locatária do espaço a intimidava, fazendo-a crer que por estar fora de seu país não gozava de direitos mínimos. Jhannyna afirma ter escutado, inclusive, que a saída de seus filhos de casa poderia resultar em prisão e na apreensão de suas crianças. Com uma voz de pesar, conta da situação vulnerável que a levou a acreditar nessas mentiras e se ver, de repente, em uma difícil posição de dependência extrema e exploração.
Eu fui à universidade na Bolívia. Ainda assim, eu caí. Eu esqueci dos direitos humanos. Foi muito triste. 2010 foi um momento que perdi. Me perdi. Foi um ano muito marcante. Aí eu percebi a diferença, daquela liberdade que eu tinha. Foi uma coisa muito ruim.
A situação só se modificaria após seis meses, com a regularização migratória. Ao ver que Jhannyna lograra buscar informação com outras pessoas e que tinha conseguido acessar o serviço do Estado, a dona da oficina "mudou o trato", suspendendo a prática ilegal de manter ela e seus filhos fechados, sem sair de casa.
A mudança mesmo, porém, demoraria ainda outros seis meses em mais uma oficina, em condições tão precárias quanto a primeira. Ao contrário da anterior, neste novo local encontrou alguém que a apoiou, um primo que decidiu ajudá-la com a abertura da sua primeira oficina. Jhannyna nos conta:
Foi um primo que falou "sabe, eu vi que você aprendeu rápido a mexer nas máquinas, que você tem o desejo das suas crianças estudarem. Você consegue abrir uma oficina". E ele falou "eu sei que você é capaz. Eu já vi que você tem um desejo muito maior. Você já estava dez anos sozinha, como pai e mãe [mãe solteira]. Pois bem, então, é hora". Graças a ele, eu decidi abrir minha oficina junto aos meus filhos e foi quando eu achei novamente minha liberdade. E meus filhos conseguiram estudar. E agora, ambos fizeram todos os estudos, até que um aqui acabou uma faculdade.

É assim que, em muitas mudanças e casas novas, foram apegando-se ao longo dos anos à Zona Leste paulistana. Quando passou a ter seus próprios produtos, chegou a frequentar a Feirinha da madrugada onde oferecia diretamente a sua mercadoria. As ruas do bairro do Brás, a 25 de março ou do Parque D. Pedro eram outros lugares que costumava ir para comprar os insumos da sua oficina, interagindo frequentemente com brasileiros. Foi nessa circulação pela cidade, motivada pelo trabalho, e na rádio que escutava em casa, segundo a entrevistada, que foi consolidando o seu português. Apesar de nunca ter frequentado um curso formal, Jhannyna é fluente na língua, que diz ter aprendido rápido, fazendo questão de responder a toda entrevista no idioma.
Quando perguntamos como a COVID-19 tem impactado a sua vida e a da família, sem titubear, vai direto ao ponto:
Ficamos mais de um mês parados, sem conseguir sair, sem conseguir fazer nada. Foi muito triste. Senti que o mundo parou, mas as contas não. Até agora não para. E também foi um tanto assustador porque não sabemos o que ia acontecer. Agora, pelo menos, sabemos que a pandemia é ruim. E, aos poucos, nós conseguimos tentar segurar as esperanças, nos reunir em 2, 3 ou até 5 oficinas para falar, para conversar. Temos muitas ideias juntos, tentar ajudar aqueles que não conseguem uma solução ou que estão passando pior. Foi ruim, mas foi bom para nos abrir os olhos e tirar aquilo que estava dormindo, aquela garra para continuar lutando.
A Rede de Empreendedores Imigrantes Sempre Adelante é resultado de um ano de trabalho de pessoas como Jhannyna que se reuniram semanalmente no Museu da Imigração, em atividades de formação para empreendedores oferecidos por ONGs locais[1]. Terminados esses encontros, que tratavam de assuntos como direitos trabalhistas, segurança no trabalho e contabilidade básica, alguns participantes decidiram continuar por conta própria as reuniões, buscando aprofundar ainda mais a formação para os empreendedores, trabalhando na organização da categoria. Entrando na situação pandêmica, a rede seria logo acionada para passar a produzir máscaras como alternativa à paralisação do setor têxtil.

Eu queria fazer e vi que liberaram fazer de pano. Então, poderíamos fazer entre nós. Porque eles [os compradores varejistas] estavam querendo comprar a um real com material e tudo. Não dá, não tem ganho. Então, nós queríamos fazer alguma coisa tipo parceria e aí [um dos membros da rede] falou "eu tenho um conhecido, um doutor no hospital, então, podemos levar, tentar fazer aquele de TNT". Então, todo mundo pensou [que era o] melhor para produzir e vender. E assim não depender [de] mais de ninguém. E foi assim que decidimos, tomamos essa oportunidade.
Diante da possibilidade de um pedido em grande escala e com as contas das casas consumindo o pouco que poderiam ter para investir, decidiram em grupo lançar mão de um empréstimo. Com a produção em fase avançada, souberam da má noticia.
Quando estávamos produzindo, já soubemos que não deu porque outras pessoas se adiantaram, já fizeram, e até de menor valor. Ficamos parados com nossas máscaras. Eu estou tentando vender porque nossa meta era vender aquilo e como não tínhamos dinheiro para pagar as oficinas, [temos que] fazer nós mesmos e [ir] vendendo. Fazer mais e, dessa vez, dar a outras oficinas que estão sem trabalho. E assim, pouco a pouco ir dando trabalho e também conseguindo pagar [receber] o justo.
Na parte da manhã do mesmo dia de nossa entrevista, Jhannyna havia ido à entrada do metrô para oferecer pessoalmente as máscaras, vendidas também pela Internet[2].
A única coisa que eu quero é isso, vender. E devolver o dinheiro emprestado que temos investido ali. Agora somos pelo menos duas [pessoas] que, com certeza, vamos continuar essa luta. Pra continuar fazendo uma e outra coisa para alcançar os outros. Para tentar ajudar os outros também.
É sob a perspectiva do trabalho que Jhannyna compartilhou conosco sua trajetória frente à situação pandêmica atual. Sua narrativa traz mais uma vez à tona o fato já conhecido de que "ficar em casa", se protegendo e protegendo os seus nesta pandemia, é um direito que, sem o devido apoio das autoridades estatais, se torna um privilégio. É pelo trabalho e para garantir o sustento de sua família que nossa entrevistada teve que sair neste momento às ruas para oferecer suas máscaras. Por outro lado, contraditoriamente, no passado, foi justamente em situação de vulnerabilidade extrema que se viu imobilizada em uma oficina de costura. Sua relativa imobilidade daquele momento, portanto, surgiu de inúmeros elementos que entrecruzados se potencializaram.

No entanto, a narrativa é carregada também de buscas por oportunidades que se abrem. A partir do movimento e de contatos entre pessoas e instituições, Jhannyna foi consolidando seus meios de subsistência e constituiu sua própria oficina da qual se orgulha. Na situação pandêmica, porém, o seu aparato de produção se viu mais uma vez imobilizado.
Não parar, porém, parece uma necessidade. Ao ser perguntada sobre seu papel na rede de empreendedores, nos responde:
A verdade é que eu não me creio líder, mas acho que tenho a necessidade de falar e de tocar em aqueles que tem muita coisa a oferecer. Então, tento, tento acordar aquilo que eles ainda nem percebem que têm. Então, falo, falamos, nos reunimos, fazemos. E, às vezes, nem todo mundo se arrisca, tem medo. Eu tento indicar a eles que temos que tentar. Às vezes eu sei que um ganha, e se não ganha, com o que estamos propondo, o esperado, pelo menos [ganha] a experiência. Mas ficar sem tentar acho que não tem sentido. É isso que tento fazer e sempre foi assim.
E gosto de que todo mundo se descubra, que tire aquilo que tem de dentro pra fazer porque todo mundo tem a vontade de fazer. Ás vezes confundimos. Uma [pessoa] fala: “Não. Tenho que pensar em mim, [na] minha família (...)”, mas é mentira. Essa pessoa fala porque talvez foi educada assim, orientada assim. Mas na verdade, quando ela vai ficar feliz [por] completo é quando também vai dar para outro.
Referências
[1] A série de oficinas do curso Tecendo Sonhos foi resultado de uma parceria entre a ONG Aliança Empreendedora e a ONG Presença de América Latina.
[2] As máscaras podem ser adquiridas tanto pelo WhatsApp, assim como pela página da oficina na internet. Os contatos para tal seguirão no final da postagem.
Serviço
Máscaras protetoras feitas em TNT (prolipropileno) com 40 gramas. Comprando esse produto, você fortalece – nesta pandemia – uma rede de produtores imigrantes que resolveram se organizar por preços justos!
Contatos: (11) 95876-9349 Nina | (11) 95156-0267 Beto | (11) 95979-8398 Jaqueline
Para mais informações, acesse a página da Oficina de costura Linhas Divinas no Facebook.
Foto da chamada: Matheus Farias via Unsplash