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Dia do Refugiado, migrações, fronteiras e pandemia
No dia 20 de junho se celebrou o Dia Internacional do Refugiado, data determinada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2000, pela celebração dos 50 anos da Convenção de 1951, referente ao Estatuto do Refugiado. Em realidade, esse dia nunca teve tanto sentido, lamentavelmente, como agora. Dois dias antes, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) publicou seu informe anual (Tendências Globais) do qual se extrai uma realidade lamentável: ao final de 2019, o mundo contava com 79,5 milhões de pessoas refugiadas ou em busca de refúgio. Um número sem precedentes e que aumentou quase 9 milhões em apenas um ano. Como bem aponta o ACNUR, esse aumento é resultado de dois fatores principais: novas crises e rotas migratórias – particularmente República Democrática do Congo, a região do Sahel, Iêmen e Síria – e um melhor conhecimento da situação dos venezuelanos fora de seu país.
Ademais, a crise mundial causada pelo COVID-19 faz com que o cenário para as pessoas migrantes e para os solicitantes de proteção internacional não seja nada promissor em curto ou em médio prazo, seja pela recessão mundial causada pela pandemia ou pelo fechamento das fronteiras e aumento do controle de mobilidade de pessoas em praticamente todo o mundo.
Fato é que a pandemia escancarou as desigualdades sociais e que, apesar de assolar todo o mundo, suas consequências são mais sentidas pelas populações vulneráveis. Nesse contexto, é imperativo pensar nas milhares de pessoas vivendo em condições desumanas enquanto buscam segurança. Sua proteção deveria ser mais urgente que nunca, mas o que existe são indícios de que apenas se vulnerarão mais direitos.
Como tem sido amplamente divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), lavar as mãos com água e sabão é o método mais eficaz para impedir que o Coronavírus continue se espalhando. Além disso, o isolamento social é altamente recomendável e tem se mostrado extremamente eficaz para evitar o colapso dos sistemas de saúde. Ocorre que muitos sequer têm onde viver, outros estão em campos supostamente temporários superlotados onde é impossível cumprir medidas de isolamento social ou de higiene básica.
Esse é o caso, por exemplo, dos refugiados da etnia Rohingya, uma minoria mulçumana e apátrida perseguida há anos, que se encontram nos assentamentos de Kutupalong, em Cox's Bazar, Bangladesh, onde vive, segundo a ONG internacional Save the Children, quase um milhão de pessoas, em uma situação na qual mesmo antes da ameaça do Coronavírus o saneamento sempre foi uma questão. Ou dos milhares de refugiados que se encontram na ilha de Lesbos, na Grécia, onde há apenas uma torneira de água para cada 1.300 pessoas e condições nas quais o vírus pode se espalhar rapidamente. A crise também pode ser catastrófica em lugares atingidos por conflitos, como Síria, Sudão do Sul e Iêmen, países que já enfrentam problemas como a desnutrição e cólera, falta de água potável e instalações de saúde.
Mas essas não são as únicas dificuldades que os migrantes e refugiados enfrentam. Além das precárias condições sanitárias e de vivenda, são acrescentadas as restrições de mobilidade que muitos milhões de refugiados e de migrantes do mundo estão enfrentando e a falta de auxílio estatal.
Importante salientar que são pessoas que, muitas, vezes já viviam situações de invisibilidade e vulnerabilidade, agravadas com a chegada da pandemia. No caso de países europeus, nos referimos a pessoas sistematicamente submetidas a um sistema neocolonial e racista que as força a trabalhar em funções consideradas precárias e em condições de exploração laboral. Nos referimos às leis de imigração europeias, a "Ley de Extranjeria" (Ley Orgánica 4/2000, sobre los derechos y libertades de los estrangeros en España y su integración social) no caso específico da Espanha, onde é comum escutar que "sem documentos não há trabalho e sem trabalho não há documentos".
A verdade é que a pandemia trouxe à tona a vergonha que é o sistema de imigração espanhol e suas leis, que nada mais servem para ceifar direitos e excluir pessoas do acesso aos mais fundamentais destes. Sem visto de trabalho ou familiares europeus, para regularizar sua situação administrativa na Espanha uma pessoa precisa estar ao menos três anos de maneira irregular. Estar indocumentado no país supõe muitas coisas, entre as quais a proibição de trabalho regular, a falta de acesso à saúde e educação, não inclusão nos serviços sociais, dificuldade ou impossibilidade de alugar um apartamento, proibição de viajar para seu país de origem, possibilidade e ameaças de deportação, entre outros. São verdadeiros fantasmas da cidade, com a vida pública e a interação social limitadas e ameaçadas pelo temor de que um dia a polícia os pare em suas tradicionais "redadas racistas" e expulse ao seu país de origem. Além disso, a necessidade de sobrevivência e a impossibilidade de conseguir um trabalho formal força milhares de pessoas a ocuparem funções que raramente são ocupadas por nacionais, como os trabalhos no campo, trabalho ambulante, trabalho doméstico ou sexual.
E, com o novo mundo de pandemia e confinamento, muitas dessas pessoas se encontram dentro e fora do sistema ao mesmo tempo, em uma espécie de limbo administrativo. Têm seu deslocamento limitado pelo fechamento de fronteiras e trabalhos impossibilitados pelos estados de alarme e exceção enquanto também estão sem documentos, ajudas e proteções, já que nas medidas de ajudas sociais sancionadas pelo governo os solicitantes de asilo, refugiados e imigrantes irregulares não são contemplados. São pessoas que sofrem as sanções do Estado ocasionadas pela pandemia ao mesmo tempo que são invisíveis para ele.
É o caso, por exemplo, de centenas de brasileiros e brasileiras na Espanha atendidos por associações como a "Casa da Gente", que na maioria das vezes não cumprem os requisitos para as ajudas sociais, não têm documentação e autorização de trabalho e não conseguem retornar ao Brasil pela soma da escassa quantidade de voos semanais e alto preço destes. Funcionárias domésticas e homens e mulheres transexuais são exemplos de brasileiros de grupos vulneráveis que receberam pouca ou nenhuma atenção e ajuda estatal.
Ocorre o mesmo com os vendedores ambulantes em Barcelona, conhecidos como "manteros", pessoas em situação de exclusão social e jurídica que sobrevivem através da venda informal, convertida em delito pela última atualização do código penal espanhol, outra demonstração da perseguição de pessoas migrantes pelo Estado, que considera um negócio de pequena escala ilegal e autoriza assim abuso e violência policial contra essas pessoas. Sofrem também perseguições por parte da população e da mídia, que alegam que realizam atividades remuneradas sem a devida taxação, desconsiderando que a irregularidade administrativa não os permite sequer assumir obrigações fiscais.
Ainda assim, por todo o país os vendedores ambulantes organizaram verdadeiras redes de resistência antirracistas para sua sobrevivência, recolhendo e distribuindo mantimentos e recursos para famílias desamparadas. E, precisamente o Sindicato de Manteros de Barcelona, o mais organizado do país, passou a utilizar os espaços de sua loja de roupas, a "Top Manta", para produzir máscaras e jalecos de proteção para os profissionais da saúde e pessoas vulneráveis, em uma clara demonstração de solidariedade.
É uma política migratória tão mesquinha e sem generosidade ou respeito pelos direitos humanos que, no momento que foi aprovada a penalização da venda ambulante como delito contra a propriedade intelectual ou industrial, o que se pretendia, na realidade, era que essas pessoas não pudessem jamais se regularizar, porque assim não constariam somente faltas administrativas, insuficientes para negar um pedido de regularização, mas também antecedentes penais.
Por isso em países como a Espanha – em que há um governo que se define como progressista – há centenas de organizações que pedem uma regularização de todos os migrantes e refugiados, em movimentos organizados e encabeçados pela própria população migrante que pede que o governo cumpra a promessa de "não deixar ninguém para trás" ("no dejar nadie atrás", constantemente dito pelo Primeiro Ministro espanhol Pedro Sánchez). As campanhas "Regularización Ya" e "Regularització per Tothom" contam com o apoio de deputadas e deputados do Congresso Espanhol, onde pretendem que seja debatida uma regularização "irrestrita e sem condições" de todas pessoas em situação administrativa irregular no país. A deputada brasileira Maria Carvalho Dantas, do Grupo Republicano, é uma das responsáveis por levar as vozes dos movimentos sociais para o Congresso, impulsionando, com o apoio de outros partidos e deputados, a apresentação da proposta legal elaborada pelas campanhas.
Até o momento, a medida mais importante tomada pelo governo em relação aos imigrantes durante a pandemia é insuficiente e atinge a poucas pessoas: a concessão de uma autorização de trabalho de dois anos para os jovens ex-tutelados de 18 a 21 anos que chegaram ao país como menores e que estavam trabalhando com a recolhida de frutas e verduras nos campos, especialmente em Huelva, no sul do país.
Em outros países também foram tomadas medidas a favor dos imigrantes: o Reino Unido garantiu a gratuidade do diagnóstico e tratamento de COVID-19 para todos visitantes estrangeiros, independentemente do status administrativo; Chile, Peru e Argentina autorizaram que médicos, enfermeiras e outros profissionais da saúde trabalhassem durante o enfrentamento da pandemia; em Portugal todos os imigrantes e solicitantes de asilo foram tratados como residentes permanentes até o final de junho. Na Itália também está em trâmite um pedido de regularização de trabalhadores de campo, pelo qual aproximadamente 200.000 pessoas poderiam ser beneficiadas. Outros países, como os Estados Unidos, reforçaram medidas para coibir a entrada de pessoas, suspenderam vistos de residência permanente e procederam à expulsão de milhares de pessoas que se encontravam em Centros de Detenção, espaços que se mantêm funcionando até os dias atuais, apesar do grande risco de contaminação que supõe.
Pela impossibilidade de expulsão de internos, e com muita pressão popular e de movimentos sociais, os centros de detenção de imigrantes da Espanha, os chamados CIEs (Centro de Internamiento de Extranjeros), foram fechados durante a quarentena. Recentemente se tornou pública a informação de que essas "prisões racistas", como costumam dizer os ativistas, voltarão a funcionar tão logo reabram as fronteiras espanholas. Ademais, seu plano de reabertura em Barcelona inclui a criação de um módulo de mulheres, situação que agravará as deportações forçadas e as múltiplas violências que sofre a mulher estrangeira no país.
Em declaração recente, o Ministro de Migrações espanhol, José Luis Escrivá, negou que processos de regularização pudessem acontecer na Espanha enquanto alegou que o Pacto Europeu Sobre Imigração e Asilo não permitiria regularizações generalizadas, ignorando que o mesmo texto diz que os Estados são soberanos para tratar de questões internas sobre migrações, e que a lei de imigração espanhola autoriza que se dê autorização de residência em situações excepcionais. De maneira categórica, disse que na Espanha não ocorrerá o mesmo que em Portugal e na Itália – dois países cujas medidas são limitadas e utilitaristas, mas que seriam um grande ponto de partida para a discussão e que representariam uma melhoria nas condições de vida deploráveis a que estão sujeitos muitos das mais de 600 mil pessoas em situação administrativa irregular no país.
Outra possível maneira de regularização seria através de decretos do executivo ou da aquisição da nacionalidade pela chamada "Cartas de Naturaleza". E, realmente, estamos diante de uma situação que requer a suspensão de pactos e de leis, que devem e podem ser reinterpretados em busca da máxima proteção aos direitos humanos e à vida. Mas, nas palavras de Helena Maleno, ativista e defensora dos direitos humanos na fronteira sul da Espanha: "falta valentia e solidariedade ao governo". Um governo cuja formação coincide com o retorno e ascensão da extrema direita na Espanha, que ocupa hoje 15% do Congresso.
Efetivamente, nós presenciamos a normalização e intensificação dos discursos públicos e atitudes de ódio enquanto migrantes e refugiados, excluídos de todas as leis, se convertem em pessoas de não direito, "Os Ninguéns" de Galeano. Pessoas submetidas a condições extremas de exploração, perseguição, identificações racistas, prisões e deportações. Que sofrem um verdadeiro apartheid social e jurídico.
E a mobilidade humana, a intenção e a necessidade de migrar não cedem nem mesmo frente à pandemia. Como resposta ao endurecimento da fiscalização, rotas mais duras e perigosas foram criadas. Necessitamos uma mudança radical nas políticas migratórias mundiais para que sejam priorizados os direitos e liberdades dos imigrantes e dos refugiados, assim como garantir que possam migrar de forma segura e organizada.
Qualquer medida governamental que não leve em conta a vida dessas pessoas não será capaz de colocar fim à crise social, política e econômica na qual nos encontramos.
Paulos Illes é graduado em História e Filosofia pela Faculdade Vicentina de Filosofia de Curitiba, coordenador político do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), coordenador executivo da Rede Sem Fronteiras e membro do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial de Migração (FSMM). Foi coordenador de Políticas para Migrantes na Coordenadoria de Políticas para Migrantes na Prefeitura de São Paulo. Em 2008, recebeu o Prêmio Jaime Wright de Promotores da Paz e dos Direitos Humanos.
Mariana Araujo, residente na Espanha, é presidenta do Observatório Marielle Franco e membro da associação Casa da Gente e do Conselho de Cidadania do Consulado do Brasil. Jurista com mestrado e especialização em migrações e proteção internacional, pós-graduada em sociedades africanas e mestranda em Relações Internacionais, Segurança e Desenvolvimento.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Foto da chamada: Markus Spiske via Unsplash. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Conexão Migrante" em branco.
A ocupação "Conexão Migrante" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), para divulgação dos artigos publicados na edição 29 da revista "Conexão Migrante" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.