Blog
Compartilhe
Mobilidade Humana e Coronavírus: O espaço que eu deixei
Durante toda a última semana de março de 2020, tentamos encontrar com Patrícia um momento oportuno para realizar a entrevista que se segue. Como única exigência, o encontro virtual deveria acontecer após às 21h no horário de Lima, quando a sua bebê finalmente pega no sono. Ela falava desde Arequipa, sua cidade natal, localidade andina no sul do Peru. Importante polo comercial e industrial do país, Patrícia tem origem na cidade com a segunda maior população do Peru. Arequipa herda o nome aimara arikipa, que significa “atrás da montanha”, em referência ao vulcão Misti, que abraçaa cidade.
Apesar de falar conosco de lá, Patrícia mora desde 2013 no Brasil, quando veio para fazer um breve voluntariado em Fortaleza.
Eu cheguei em 2013. Cheguei primeiro em Fortaleza, onde morei 5 meses. Eu tinha que voltar para o Peru, mas uma semana antes, falei pra minha mãe que eu não ia mais voltar. Minha mãe ficou, “mas como você vai fazer lá? ”, no que eu disse, “eu não sei, não sei, mas eu não vou voltar, porque eu gosto muito daqui e é isso”.
Decidida a permanecer no país, Patrícia logo buscaria regularizar sua situação migratória. Esse movimento seria o que ia trazê-la para São Paulo, depois das autoridades em Fortaleza na época dificultarem seu processo de regularização.
A Polícia [Federal] de Fortaleza me tratou um pouco mal. Falou que eu não poderia fazer nenhum tipo de visto lá. Aí eu tive que ir para São Paulo e acabei ficando. Falei para os meus amigos que não ia mais voltar para Fortaleza, falei para minha família no Peru que eu não ia voltar mais para o Peru, e decidi ficar em São Paulo.
Conseguindo sua regularização, ela começa uma nova vida em São Paulo, marcada pelas dificuldades e potencialidades que a própria cidade oferecia.
No começo foi muito difícil porque eu não sabia muito bem o que fazer, do que viver... Eu tentei muitos trabalhos, qualquer trampo. Desde garçonete até vendedora de coisas, sabe? Por sorte, consegui um trabalho como professora de espanhol. Aí fiquei um pouco mais tranquila.
Eu quis aproveitar muito, eu quis tentar engolir São Paulo, mas não dava conta de tanta coisa que tinha para mim. Na minha cidade natal, não tinha nada. Chegar em São Paulo foi para mim incrível, um mundo se abriu e eu quis aproveitar tudo, tudo, tudo o que eu tinha para fazer.
Durante os quatro anos que esteve em São Paulo, diz ter tentado “engolir” a cidade, fazendo dança, cinema, circulando pelas ruas do centro, conhecendo e se conectando com diversas pessoas e atividades. Nesse período ainda, cursaria uma pós-graduação na Universidade de São Paulo, desenvolvendo pesquisas sobre a temática migratória.
Depois, em 2018, nasceu minha filha. Aí eu fui morar em São Luiz do Maranhão, porque meu companheiro passou num concurso lá. Em São Luiz, eu fiquei 6 meses, criando minha filha e... vivendo, né? Uma vida assim de família. É daí que a gente decide ir para Salvador, porque meu companheiro é de lá. Isso foi janeiro de 2019, e é onde eu moro agora.
Cada um desses trânsitos (de Arequipa, para Fortaleza, São Paulo, São Luiz e Salvador) comportam um tempo de adaptação, um tempo para conhecer o lugar e estabelecer uma relação com o entorno. Este momento de construir uma relação com o novo lugar nem sempre é rápido ou fácil, e por vezes pode chegar a ser doloroso.
A situação da pandemia explodiu na América do Sul, e na vida de Patrícia e de sua filha, no contexto de outro deslocamento. Agora, mãe e filha estavam no meio de uma viagem “breve”, de 3 meses para a sua terra natal. Novamente, a busca de documentação fazia ela se mover entre os países. Seus documentos pessoais do Peru tinham expirado e era hora de renová-los.
Eu voltei para o Peru para fazer uns documentos. Eu cheguei no Peru e fiquei quatro ou cinco dias de boa, consegui fazer uma parte dos meus documentos. Mas cinco dias depois que eu cheguei aconteceu isso tudo da pandemia, e saiu o presidente para falar que íamos entrar em quarentena. Que era uma quarentena obrigatória, um isolamento obrigatório, e que ia ter também toque de recolher.
No dia 15 de março, o governo peruano de Martín Vizcarra decretou estado de emergência, seguido de uma quarentena obrigatória. O fechamento de todas as fronteiras terrestres, marítimas e aéreas ocorreria no dia 17 de março, somente 7 dias após a chegada de Patrícia ao país. No momento da conversa, nossa entrevistada manifestava preocupação em relação ao militarismo que a pandemia pareceu ter acionado. Como ela disse, “há muitos militares nas ruas”. Por outro lado, a movimentação nas ruas do país era cada vez mais reduzida e em Arequipa não seria diferente.
Uma semana depois que eu cheguei estava tudo muito, muito parado. Eu não consegui mais ver uma parte da minha família, das minhas irmãs, as minhas sobrinhas. Agora estou em casa com minha mãe, com minha avó, com uma tia e com minha filha.
Depois de tantos anos fora país, transitando por diferentes cidades, Patrícia encontrava a cidade de origem reconfigurada. Em meio a abrupta mudança, nos contava sobre uma readaptação à vida cotidiana na sua cidade natal, atravessada justamente pela situação pandêmica.
Eu cheguei e ainda estou me acostumando à minha mãe, ao espaço que eu deixei, à minha avó, à minha família, tudo. Mas ao mesmo tempo, eu não consigo aproveitar a cidade, então eu estou aqui em casa, presa. Não consigo também ver a outra parte da minha família, que eu queria muito ver, que são minhas irmãs, minhas sobrinhas. E eu não consigo também sair com minha filha, né. Eu queria muito levar a minha filha para passear na minha cidade, mostrar as coisas... e eu não consigo. Não sei como fazer, porque eu tenho que fazer muitos documentos...
Com os planos radicalmente interrompidos, a documentação, motivo inicial da viagem, se tornava agora um ponto de preocupação e incerteza. No momento da viagem, sua filha, nascida no Brasil, não tinha a nacionalidade peruana, o que gerava novas preocupações em relação a permanência regular naquele país.
Tenho muita incerteza. Estou um pouco preocupada porque eu não sei [como fazer com] a questão da minha filha, porque ela tem o documento do Brasil e ela consegue ficar [regularmente] em outro país no máximo três meses. [Minha filha] só tem nacionalidade brasileira. Eu não vou conseguir voltar com ela para o Brasil porque os documentos que tenho para ela são para outra data. Então, eu tenho um problema com isso, com o visto dela; e tenho um problema com os documentos para sair com um bebê do Peru. Tenho que pensar como eu vou fazer isso, como resolver isso.
Dinâmicas já angustiantes de controle migratório por documentação ganharam outro contorno no caso de Patrícia, sendo amplificados pela situação pandêmica.
Apesar disso, nem tudo foi modificado nessa quarentena. Embora nossa entrevistada nos conte que em Salvador a maternidade é conjugada na medida do possível com idas às praias, shows, e outros espaços, Patrícia vê o ritmo do seu cotidiano em Arequipa muito parecido com o que já vivenciava. A diferença, porém, era de poder contar com o que está ausente para ela em Salvador: a força do apoio de outras mulheres e de sua rede familiar.
Eu tenho sorte, porque eu tinha uma rotina bem parada por conta da maternidade. Ou seja, acordar, cuidar da minha filha, fazer o café da manhã, fazer comida. Eu já tinha uma rotina bem, sei lá, bem fixa, de mãe. Eu sinto que eu tenho mais sorte de passar isso do coronavírus aqui na minha cidade do que ficar sozinha lá em Salvador, sabe. Lá não tenho família, lá só tenho o meu companheiro. E aqui eu tenho mais ajuda, mais presença de mulheres. Tem mulheres da minha família que me ajudam, que me ajudam a criar a minha filha: minha mãe, minha vó, minha tia. Então é muito melhor ficar aqui do que estar lá.
A regularização de documentos pode impactar profundamente o deslocamento humano e essa dimensão surge a todo momento na fala de Patrícia. No caso da regularização migratória, os Estados determinam uma série de critérios e condições nem sempre simples de serem cumpridos, em dinâmicas que muitas vezes fogem das mãos dos próprios migrantes. Apesar disso, essas dinâmicas continuam incidindo nas decisões acerca de onde ir e onde permanecer, como vemos no caso da ”breve viagem” atual de Patrícia ao Peru, ou quando, a raiz de um mal tratamento recebido por autoridades, ela se viu obrigada a viajar para São Paulo.
Com a situação pandêmica, essas dinâmicas pareceram ter sido amplificadas, impactando severamente a autonomia de decisão de Patrícia sobre seus deslocamentos. Na entrevista, a sua angustia e preocupação pareciam diretamente vinculados a redução da capacidade de decidir sobre os trânsitos dela e de sua filha.
Por outro lado, a quarentena no Peru também trouxe certo alívio e tranquilidade para nossa entrevistada. Lá, ela encontraria uma rede intensa de apoio e ajuda, estando sob os olhares e as mãos de mulheres da sua família. Com todas as contradições que uma situação inédita de pandemia global pode trazer, Patrícia parece ter encontrado no momento que mais precisava o lar que tinha deixado.
Foto da chamada: Vulcão Misti.