Blog
Compartilhe
Uma força que nos alerta
A Violência Doméstica contra Mulheres e Meninas Migrantes em tempos de Isolamento Social
Qualquer análise sobre a condição feminina, incluindo aquela relativa à mulher e menina migrante, precisa ser realizada a partir da interseccionalidade do gênero e da nacionalidade, juntamente com as questões de raça e classe. Num contexto de Sul Global, sobretudo América Latina e Brasil, há que se levar em conta também a estrutura social em que tais mulheres e meninas estão inseridas, geralmente de caráter patriarcal, colonial, heteronormativo e de dominação.
Nesse contexto, o isolamento social imposto por uma pandemia global pode se tornar ainda mais complexo para as mulheres, principalmente quando confinada com um companheiro agressivo.
Mesmo com as subnotificações, decorrentes do fechamento das instituições policiais e do maior temor em denunciar, tendo em vista a proximidade com o agressor, no mundo inteiro as estatísticas de violência doméstica estão aumentando nesse período, incluindo países como Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos[1].
Meninas mais novas, crianças até, também sofrem ainda mais com a crise econômica, a dificuldade para as organizações de proteção à infância trabalharem nesse período e o fechamento das escolas. As meninas ficam mais suscetíveis à exploração sexual e laboral infantil, à violência praticada no ambiente doméstico em famílias onde ainda há a cultura da "palmada" e as práticas de casamentos forçados e mutilação genital feminina, dentre inúmeras outras situações que ocorrem nos diversos países e continentes[2].
Na América Latina, onde aproximadamente 20 milhões de mulheres e meninas sofrem violência sexual e física por ano, o período marcado pela contaminação do Coronavírus sofreu imediatamente os impactos da violência contra a mulher: aumento de 50% nos registros de abuso doméstico apenas na Colômbia; de 30 vezes nas pesquisas online sobre proteção em caso de violência de gênero em El Salvador e Honduras; de 50% nas chamadas de emergência que relatam ataques a mulheres no México e 75% nos casos de feminicídio na Venezuela[3].
E no Brasil a situação não é diferente. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), realizado para o Banco Mundial, a partir de pesquisa envolvendo os Estados do Acre, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, traz dados alarmantes para esse tempo da pandemia: só em São Paulo os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% no estado de São Paulo, sendo que o total de socorros prestados na comparação entre março de 2019 e março de 2020, passou de 6.775 para 9.817, além da confirmação do aumento de 46,2% nos casos de feminicídio (de 13 para 19 casos).
A mulher migrante, por se encontrar muitas vezes no final da cadeia de acúmulo progressivo das vulnerabilidades, acaba por sofrer ainda mais diante dessa realidade. Inúmeros fatores podem reforçar e ampliar sua suscetibilidade: estar distante de seu país e de suas relações pessoais originárias; não compreender com exatidão o sistema de justiça do país de destino; ter dificuldades linguísticas e comunicacionais; viver em ambiente familiar onde prevalece a cultura machista, além de já possuir os traumas psicológicos e até físicos decorrentes do processo migratório e que podem se agravar num contexto pandêmico de isolamento social, quarentena e confinamento.
A notícia boa é que as próprias mulheres estão se organizando para lutar pela sua existência digna, pela garantia de seus direitos e pelo fim dessas estatísticas[4], para além do disque 180. Ações voltadas para as mulheres em geral estão aumentando e projetos específicos para mulheres migrantes estão surgindo. Um exemplo é o número de WhatsApp (+55 41 99919-6214) colocado à disposição das mulheres migrantes pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o objetivo de acolher, escutar e dar encaminhamentos práticos para as diversas dificuldades psíquicas e jurídicas que elas estão enfrentando, inclusive ligadas aos diversos tipos de violência de gênero.
Mas para que as ações transformadoras sejam efetivas, é preciso sensibilizar a todos, incluindo o agressor e toda a sociedade que o cerca, de que a violência contra a mulher não é só física (como nos casos de espancamento, estrangulamento ou sufocamento, tortura, jogar objetos, sacudir, apertar os braços, provocar queimaduras, machucar com objetos cortantes ou perfurantes, ou com arma de fogo). Ela pode ser psicológica, quando causa dano emocional e diminuição da autoestima; interfere de modo prejudicial o pleno desenvolvimento da mulher; busca degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.
Enquadra-se na violência psicológica os impedimentos para sair e ter convivência social, a proibição de aprender português, frequentar todos os tipos de estabelecimentos de ensino, além das tradicionais ameaças, humilhações, constrangimentos, manipulação, insulto, chantagem, isolamento, vigilância constante, perseguição constante, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, retirada da liberdade de crença, distorção e omissão de fatos e informação (para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade, comumente denominado de gaslighting).
A violência sexual também deve ser considerada em sua forma abrangente, que inclui qualquer ato que constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada mediante ameaça, coação, intimidação ou uso da força, estando incluído aí não só o estupro, mas também a exigência para a mulher fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, para se casar, engravidar, prostituir-se por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação, além das ações para limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, impedir o uso de métodos contraceptivos ou obrigar a abortar.
Por fim, há que se alertar para duas outras violências, nem sempre tão divulgadas. A violência patrimonial engloba as condutas que resultam em retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos da mulher, seus instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. Por isso, é violência sim quando o homem controla ou furta o dinheiro, destrói documentos pessoais, retém o passaporte, esconde o telefone, estraga seus objetos pessoais de propósito.
Já a violência moral está relacionada a fazer críticas inverídicas à mulher (chamar de feia, vagabunda, malvestida, etc.), acusá-la de traição, expor a sua vida íntima ou rebaixá-la questionando sua índole.
As formas de violências são inúmeras e estão presentes em todos os lugares. Mulheres e sociedade devem estar unidas para impedir que qualquer uma dessas condutas ocorra. Onde quer que estejam.
Tatyana Scheila Friedrich é doutora e professora de Direito Internacional na Universidade Federal do Paraná - UFPR. Coordena o Programa Política Migratória e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na UFPR.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] ONU. Violência contra Mulheres e Meninas é pandemia das Sombras. 08/04/2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-violencia-contra-mulheres-e-meninas-e-pandemia-das-sombras/.
[2] World Vision Reports. Disponíveis em: https://www.wvi.org/.
[3] Thompson Reuters Foundation. Rising violence against women in Latin America confirms fears of abuses in lockdowns. Disponível em: https://br.reuters.com/article/idUSKBN23G2X6.
[4] Mulheres formam rede de apoio. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/05/08/mulheres-formam-redes-de-apoio-contra-a-violencia-domestica-na-pandemia.htm.
Foto da chamada: Rad Pozniakov. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Conexão Migrante" em branco.
A ocupação "Conexão Migrante" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), para divulgação dos artigos publicados na edição 29 da revista "Conexão Migrante" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.