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Missão Paz: assistência, formação e incidência social versus o negativismo de direitos a migrantes e refugiados na interface da Covid-19
1 - INTRODUÇÃO
A pandemia mundial do novo coronavírus alterou agendas políticas como planejamentos governamentais; relações entre Estados; formas de mobilização e incidência política, prioridades sociais; saneamento básico e saúde pública; distribuição de renda; processos educativos; formas de vida de diversos grupos sociais, especialmente daqueles mais vulnerabilizados como moradores de periferias e cortiços sem um mínimo vital de proteção social, e, em geral, senão abandonados, distanciados do alcance do Estado, no que tange ao acesso a políticas públicas. Contudo, em geral, são os primeiros a sofrer diversas formas de violência, simbólicas e concretas, legais e ilegais, perpetradas pelo Estado ou sob sua conivência. Muitos desses grupos são compostos por mulheres, negros, indígenas, trabalhadores informais, migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados.
No Brasil, o novo coronavírus impactou primeiro grupos sociais melhor remunerados e com acesso à saúde, habitação, renda etc. (Rocha, 2020)[1]. O sistema de saúde privado não estava preparado para lidar com a Covid-19 e as primeiras contaminações e mortes logo foram registradas. Não obstante, logo esse sistema se reorganizou e pessoas pertencentes àqueles grupos sociais, embora não imunes à contaminação, puderam respirar mais aliviadas com a possibilidade de recorrer a um sistema de saúde melhor estruturado, caso dele necessitem.
Mas a pandemia escancarou, de imediato, antigas e crescentes desigualdades sociais ao se manifestar, de modo intenso e letal, em grupos sociais marginalizados, com acesso ao importante, mas precário e subfinanciado sistema público de saúde, o SUS – Sistema Único de Saúde, onde, em geral, são colocados em angustiante espera por vagas em leitos de UTI (IBGE, 2020)[2].
Ademais, a rápida escalada da Covid-19 fez aumentar o desemprego ou a suspensão de postos de trabalho em todo o mundo, e o Brasil não ficou de fora. Segundo o IBGE (2020)[3], a taxa de desemprego subiu de 11,2% em janeiro para 12,6% em abril, deixando cerca de 12,8 milhões de pessoas desempregadas. A pesquisa mostra que a pandemia do novo coronavírus contribuiu para que 4,9 milhões de pessoas perdessem seus empregos entre janeiro e abril/2020. Desse contingente, 3,7 milhões de pessoas trabalhavam informalmente em setores como construção civil, agronegócio, serviços.
Dentre os trabalhadores informais, é sabido, encontram-se imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados que, a despeito de qualificados profissionalmente, muitos entram no mercado de trabalho pela porta dos fundos, sem contratos e garantias legais. Trata-se de uma expressão da xenofobia, engendrada pela sanha capitalista de muitas empresas em obter lucro a custo de vidas, não sem a conivência do Estado já que este nega, precariza ou bloqueia o acesso dos vulnerabilizados a políticas públicas de proteção social.
A escalada do desemprego e paralização de setores produtivos aprofundaram a vulnerabilidade de quem já estava marginalizado. Milhares de trabalhadores tiveram que adequar suas despesas com aluguel, alimentação, saúde, transporte etc. ao valor de um Auxílio Governamental Emergencial de R$600,00, para homens e de R$1,200,00 para mulheres chefes de família. Este auxílio foi concedido por três meses e prorrogado por mais dois meses com manutenção dos valores pagos a homens e mulheres respectivamente (R$600,00 para homens e R$1200,00 para mulheres chefes de família).
Assim como as mulheres brasileiras ou naturalizadas brasileiras chefes de família, as mulheres migrantes ou refugiadas chefes de família, e que atendam os pré-requisitos acima listados, também têm direito aos R$1200,00 mensais.
A política emergencial implementada pelo governo brasileiro, além de frágil na proposta de assegurar um mínimo social vital, apresenta sérios obstáculos burocráticos que, se não negam, bloqueiam o acesso de imigrantes a direitos humanos elementares, como a uma renda mínima, e descaracterizam a política emergencial como uma ação humanitária. Pois esta, em tese, estenderia benefícios, incondicionalmente, a pessoas e grupos sociais cujas vidas e dignidade estejam ameaçadas. Exemplo de ação humanitária, é o caso de Portugal, cujo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras publicou uma Portaria reconhecendo o status jurídico legal de imigrantes e solicitantes de refúgio, reconhecendo direitos iguais entre essas pessoas e cidadãos português, como uma forma de desburocratizar e facilitar-lhes o acesso aos serviços de saúde e renda básica emergencial.
No caso do Brasil, o que se percebe é um esforço de negativismo a direitos como o de solicitação a refúgio. A exemplo de países europeus, dos EUA, México, Canadá, e seus vizinhos latinos, o Brasil fechou o trânsito de passageiros, em suas fronteiras, deixando livre o transporte de cargas e mercadorias; instituiu multas e sansões como deportação imediata de imigrantes e inabilidade de solicitações de refúgio, o que contraria acordos e tratados internacionais assinados pelo país como o que garante o acolhimento e análise do seu pedido independentemente do tipo de documento que a pessoa esteja portando no ato da solicitação. Além disso, essas medidas sinalizam a intensificação da militarização das ações anti-imigração.
Diante do negativismo de direitos estimulados ou promovidos pelo Estado, muitos imigrantes repetem e intensificam ações que já faziam antes. Isto é, recorrem a instituições e organizações sociais que lhes prestam serviços e assistência. Essas, desde há muito tempo, têm atuado como uma espécie de porto seguro onde os náufragos das políticas públicas ou negados como gente correm em busca de auxílio que lhes permita comprar remédios, um botijão de gás, pagar aluguel, comer e manter a chama da esperança por melhores condições de vida e dignidade humana.
A Missão Paz, coordenada por religiosos scalabrinianos em São Paulo, tem sido uma das instituições de referência à prestação de serviços a migrantes e refugiados, com ações de apoio à documentação, acolhida integral, promoção de debates públicos e incidência política orientados pela promoção e defesa incondicional dos direitos da pessoa humana.
No contexto da pandemia do coronavírus, a Missão Paz, com o apoio de seus parceiros, tem reafirmado a sua importância como referência no atendimento a grupos sociais negados ou à margem de ações afirmativas de direitos por parte do Estado, bem como tem se colocado no debate público e na incidência política para reclamar as devidas competências de instituições governamentais no que tange à promoção de políticas públicas, proteção social e garantias de direitos humanos.
2 - DA CONSTATAÇÃO DE DIMINUIÇÃO DE FLUXOS MIGRATÓRIOS À AÇÕES AFIRMATIVAS JUNTO A IMIGRANTES
No contexto da pandemia do novo coronavírus, a Missão Paz tem constatado uma clara diminuição da chegada de migrantes e solicitantes de refúgio, inclusive dos que usavam o Brasil como rota para alcançar outro destino, e uma intensificação do retorno (no caso de migrantes) para os países vizinhos, de maneira especial para Bolívia e Paraguai, gerando várias dificuldades por causa das fronteiras fechadas, barreiras sanitárias e quarentenas. A situação em Foz de Iguaçu foi um exemplo disso, mas poderíamos também citar Brasileia, no Acre, e Corumbá, no Mato Grosso do Sul.
As ações de fechamento da fronteira articuladas aos riscos de multas e deportações sumárias; as crises sanitária e econômica fazem do Brasil um país não desejável para os solicitantes de refúgio ou imigrantes. Embora as informações sobre entradas e saídas de imigrantes e solicitações de refúgio ainda não estejam devidamente consolidadas, aquela percepção é reforçada pelos dados do CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados ao indicar que houve uma diminuição nos pedidos de refúgio no Brasil, comparando-se os respectivos períodos de março a maio de 2019, sem pandemia, e março a maio de 2020, já em plena pandemia do coronavírus e com medidas de restrições sanitárias, fechamento de fronteiras, crise econômica, militarização e burocratização de ações governamentais voltadas ao atendimento a migrantes. De março a maio de 2019, o CONARE registrou 17.711 pedidos de refúgio no Brasil, já de março-maio 2020 foram registrados 6.608 pedidos de refúgio no Brasil, o que significa uma diminuição de 63% nas solicitações de refúgio.
Trata-se de um efeito claro das ações negativistas de direitos e da percepção dos próprios migrantes e solicitantes de refúgio em face da pandemia da Covid-19. No caso dos solicitantes de refúgio cabe ressaltar que, na maior parte das vezes, o risco de morte é tão grande que as pessoas costumam sair dos seus países de origem ou de trânsito sem nenhum documento ou com documentos incompletos; em muitas situações, para garantir o seu direito à vida, precisam partir apenas com a roupa que veste seus corpos.
Durante a pandemia o governo brasileiro foi publicando inúmeras Portarias Interministeriais, reafirmando a restrição de entrada em território brasileiro. Obviamente a restrição da viagem e imposição de barreiras sanitárias são necessárias, mas neste contexto, tendem a ser utilizadas como uma ferramenta para posturas nacionalistas e políticas anti-migratórias. De fato, o Brasil é muito flexível, permitindo a chegada de brasileiros e imigrantes com autorização de residência definitiva que estivessem fora do país, sem estipular controles mínimos de testagem e quarentena obrigatória, como recomendado pela Organização Mundial de Saúde. E, do outro lado, as Portarias Interministeriais impedem o acesso ao instituto de refúgio, afirmando que a pessoa que chega nas fronteiras brasileiras estão inabilitadas para o refúgio - conceito jurídico inexistente no direito migratório. Aflora claramente a contradição de duas posturas completamente diferentes diante de chegada de pessoas que não estavam em território brasileiro: nacionais e residentes permanentes tem acesso sem restrições sanitárias, enquanto solicitantes de refúgio estão simplesmente impedidos. Do outro lado, Acnur e OMS editaram documentos muito importantes enfatizando que, tecnicamente, é possível proteger o instituto do refúgio, garantindo a solicitação de refúgio, sem ameaçar a saúde das comunidades autóctones com a disseminação do vírus da Covid-19.
Ainda de acordo com o CONARE, de janeiro a junho/2020, os principais solicitantes de refúgio no Brasil foram:
Cabe destacar a presença significativa de venezuelanos e haitianos entre os principais solicitantes de refúgio, cujos respectivos países estão mergulhados em profunda crise política e humanitária. Assim, vieram de países também duramente atingidos pela pandemia do novo coronavírus.
Uma segunda constatação da Missão Paz, a partir das experiências e relatos de imigrantes que a procuram no contexto do novo coronavírus, foi o aumento da situação de precariedade e vulnerabilidade dos migrantes. A pandemia expôs as desigualdades e situações de exclusão social. Revelou o que a falsa normalidade escondia, ou seja, que parte da humanidade não conta, ou parafraseando as palavras do Papa Francisco “uma parte da humanidade é descartável”. Durante esta conjuntura, afloraram, entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, imigrantes e refugiados: autônomos e microempreendedores que ficaram sem renda, trabalhadores informais sem meios para sobreviver, outros ainda com trabalho formal mas com salário reduzido, oficinas de costura sem trabalho, exploração laboral na produção de máscaras de proteção, imigrantes sem documentos reconhecidos como válidos pelo governo ou com documentos contendo erros de informação, caso, principalmente, do CPF – Cadastro de Pessoa Física, que acabam impedindo as pessoas de conseguirem o auxílio emergencial do Governo Federal, no valor de R$ 600,00 para homens e de R$1.200,00 para mulheres como já observamos anteriormente.
Ainda de acordo com os relatos das pessoas que vêm buscar auxílio na Missão Paz, dentre as vulnerabilidades, reflexos da pandemia e situação econômica, podemos destacar ao menos cinco:
- Econômica/carência de alimentos e recursos elementares;
- Vulnerabilidade psicológica: frustração e pressão/tensão por ter sido demitido ou não ter trabalho, percepção de piora nas condições de vida (desemprego, dificuldade de pagar o aluguel imobiliário), baixa autoestima, insegurança existencial, medos;
- Vulnerabilidade em relação às ações de prevenção à Covid-19;
- Impossibilidade de viver o distanciamento social, já que muitos vivem aglomerados em pequenos imóveis de apenas um quarto, cozinha e banheiro ou cortiços e regiões degradadas do centro e da periferia;
- Dificuldade de regularização ou adequação da documentação necessária à solicitação do auxílio emergencial.
Diante dessas múltiplas situações de negativa de direitos e vulnerabilidade a Missão Paz e seus parceiros executaram ações concretas de assistência, debate público e incidência política, a fim de atender, ao menos em parte, necessidades de imigrantes, refugiados e mesmo de pessoas autóctones que buscaram auxílio, seja para conseguir alimentos, pagar aluguel, conseguir remédios, informações sobre regularização de documentos, auxílio psicológico etc.
2.1 Necessidade de ações assistenciais
A Missão Paz organizou a distribuição diária de vários itens, como cestas básicas, pacotes de fraldas, embalagens de leite em pó, kits de higiene pessoal, caixas de higiene ambiental, enxovais, cobertores, máscaras. Em alguns casos foi contemplado uma ajuda para pagamento de aluguel, aquisição de botijões de gás e bilhete para transporte coletivo. Esta ação foi organizada da seguinte forma: uma assistente social ficou como referência para a triagem, enviando, diariamente, uma lista de 40 pessoas que, no período da tarde, compareciam à Missão Paz retirar os itens de que precisavam. Em dois meses – de 15 de abril a 15 de junho – foram beneficiadas mais de 2.100 famílias, de diferentes países, como Angola, Bangladesh, Bolívia, Brasil, Burkina Faso, Colômbia, Cuba, Filipinas, Guiné Bissau, Haiti, Marrocos, Nigéria, Paraguai, Peru, República Democrática do Congo, Síria, Tailândia e Venezuela. Além desta ação, duas assistentes sociais ajudaram centenas de imigrantes a se cadastrarem para ter acesso à ajuda emergencial oferecida pelo Governo. Algumas tinham dificuldades em lidar com tecnologia outras, linguísticas.
Perante a vulnerabilidade psicológica, foram disponibilizados canais para atender as pessoas de maneira remota, ajudando a lidar com as tenções e dificuldades.
Diante da dificuldade ou desconhecimento linguístico, foram modificadas as metodologias das aulas de português. Cada professor voluntário foi realizando aulas, via aplicativo, com três estudantes.
Outras ações foram desenvolvidas na perspectiva jurídica, esclarecendo que a Polícia Federal estendeu os prazos de validade dos documentos e que as multas não teriam sido aplicadas sobre os documentos vencidos.
2.2 Necessidade de ações de Advocacy e incidência política
A atuação da Missão Paz, na área de advocacy e incidência política durante o contexto da pandemia do Covid-19, foi impactada, a princípio, com a restrição de viagens e imposição de quarentena. Com isso, o trabalho que era realizado essencialmente de maneira presencial, teve que ser adaptado e passou a ser realizado de maneira virtual. Todas as ações foram desenvolvidas pela assessoria de advocacy da instituição e contou com apoio técnico da assessoria jurídica.
O início da quarentena na Missão Paz coincidiu com uma agenda pré-programada para o terceiro encontro do sub-GT de Migração e Refúgio da Rede Advocacy Colaborativo (RAC)[4], que aconteceria em Brasília em março de 2020, com apoio da Fundação Avina e do Instituto Migração e Direitos Humanos (IMDH). O objetivo do encontro era avaliar ações conjuntas no ano anterior e planejar estratégias a partir de uma lista de prioridades desenvolvida coletivamente para o ano de 2020. Porém, devido às ações de distanciamento social, preventivas ao coronavírus, o encontro ocorreu virtualmente e as prioridades foram revistas em função de demandas que já se impunham perante a nova realidade.
Um dos temas que demandou reação imediata, através da elaboração de uma nota técnica, diz respeito aos dispositivos do governo federal para o fechamento das fronteiras do país como medida de contenção da disseminação do novo coronavírus.
Mesmo compreendendo a necessidade de restrições de entrada e saída, avaliamos que as medidas adotadas através de Portarias Interministeriais, como a de número 125 de 19 de março de 2020, mostraram-se violadoras de garantias mínimas de direitos humanos. Passados alguns meses, e após várias renovações de Portarias, sem a devida consideração das diferentes manifestações contrárias a esses dispositivos, enviamos novo ofício aos ministérios competentes solicitando providencias no sentido de garantir os direitos previstos na Lei de Migração 13.145/17; a Lei 9.474/97) de refúgio no Brasil; o Estatuto internacional do refugiado de 1951 e Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados.
Outra ação multilateral foi a elaboração de um ofício enviado às lideranças partidárias do Congresso Nacional pedindo pela suspensão da tramitação de projetos de lei, existentes ou novos, que, embora tratassem de direitos e interesses das comunidades imigrantes e refugiadas, não guardassem relação direta com a questão do Covid-19. Além disso, solicitamos que, em caso de haver a tramitação de projetos de lei de urgência, seja garantida a possibilidade de prévia consulta às organizações da sociedade civil especializadas no tema. O que nos motivou à essa iniciativa foi a apresentação de um Projeto de Lei (PL nº 1056/2020) que visa criar campos de refugiados nas fronteiras brasileiras, deixando a cargo do Ministério de Defesa a instalação, manutenção e administração de tais campos. O referido PL possui aspectos inconstitucionais e ilegais que implicam graves ameaças aos direitos das pessoas em situação de migração e refúgio. Foi elaborada uma nota técnica enviada à Comissão Mista Permanente para Migrações Internacional e Refugiados (CMMIR), pedindo pelo arquivamento do PL.
Foram elaborados dois pedidos de informações: I – acerca dos procedimentos de segurança adotados no atual contexto para a continuidade do programa de interiorização de migrantes venezuelanos, endereçado à coordenação da “Operação Acolhida” e às agências das Nações Unidas; e II - acerca do reconhecimento da condição de refugiados de pessoas provenientes da Venezuela, em especial da decisão de extensão dos efeitos da condição de refugiados para crianças e adolescentes, endereçado ao Secretário Nacional de Justiça e ao coordenador-geral do CONARE.
Além disso, a Missão Paz foi chamada pela Liderança do Psol, na Câmara dos Deputados, para apoiar tecnicamente a elaboração de um Projeto de Lei sobre medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de COVID-19. No momento desta publicação, PL 2699/20 aguarda pelo recolhimento de assinaturas para o requerimento de urgência e que, assim, possa ser pautado e votado no plenário virtual da Câmara dos Deputados.
A Missão Paz segue acompanhando as reuniões do GT criado no âmbito do Termo de Cooperação Técnica da sala de inadmitidos do Aeroporto Internacional de Guarulhos, que tem acompanhado o grupo de colombianos que se encontram no referido aeroporto à espera de voos humanitários de repatriação para a Colômbia.
Cabe o registro de que a Missão Paz participou de reuniões do Conselho Municipal de Imigrantes e do GT de Integração Local, criado para tratar dos impactos da pandemia do coronavírus na população imigrante em São Paulo. Ademais, apoiou tecnicamente a elaboração de dois ofícios sobre o auxílio emergencial enviados à Caixa Econômica Federal e à Receita Federal e outro com o pedido de aprovação do requerimento de urgência do PL 2699/20, que foi encaminhado às lideranças parlamentares na Câmara dos Deputados.
Não ficaram à margem ações de prevenção e combate ao trabalho análogo a escravo. Nesse sentido, a Missão Paz participou de diálogos junto à Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Análogo a Escravo (COMTRAE) e à Superintendência Regional do Trabalho/SRT sobre alguns pontos preocupantes da Portaria nº 87, de 23 de março de 2020, que dispõe sobre a concessão e os procedimentos de autorização de residência à pessoa que tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória. Neste sentido, a Missão Paz segue em conversas, na COMTRAE, para elaboração de uma estratégia que pressione o Ministério da Justiça e Segurança Pública a fazer ajustes necessários para que os direitos das vítimas de trabalho análogo a escravo ou tráfico de pessoas não sejam prejudicados.
Por fim, a partir conversas bilaterais com o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) e o Serviço Franciscanos de Solidariedade (Sefras) sobre os desafios no acolhimento de imigrantes no município de São Paulo e acesso à Renda Emergencial, surgiu uma articulação em que se somaram a Caritas Arquidiocesana de São Paulo e o CDHIC – Centro de Direitos Humanos e Cultura para Imigrantes, em vista da elaboração de uma nota técnica sobre proteção, direitos e uma estratégia de incidência junto ao poder público municipal. Essa articulação multilateral tem se desdobrado na adaptação de uma nota técnica para um texto base a ser utilizado por parceiros como Conectas Direitos Humanos e Franciscan International (rede internacional dos Franciscanos) nos diálogos com a Relatoria da ONU para Migrações e na 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra.
2.3 Articulações interinstitucionais e com coletivos de refugiados (sinal de protagonismo)
Com o agravamento da situação surgiram ações de grupos de imigrantes a fim de ajudar os conacionais em situação de maior vulnerabilidade. Foi o caso do coletivo de mulheres filipinas e de tailandesas. Entre os coletivos de mulheres latinas destacamos as bolivianas que têm buscado e encontrando estratégias de sobrevivência.
Outro destaque foram os paraguaios que, em dialogo e cooperação com o seu consulado em São Paulo, conseguiram atender a muitos de seus patrícios em dificuldade. Além deles, dois grupos de haitianos tentaram alcançar seus compatriotas em dificuldade.
A UBS – Unidade Básica de Saúde Sé, não conseguindo suprir as várias demandas, solicitou apoio à Missão Paz para destinar cestas básicas a famílias nacionais e internacionais do Glicério, o que possibilitou a segurança alimentar de várias famílias desprovidas de recursos próprios para a aquisição de alimentos.
2.4 Solidariedade sem fronteiras étnicas, raciais ou nacionais
De modo paradoxal às angústias, restrições, precariedades e medos, a pandemia também revelou ações de solidariedade que caracterizam o ser humano e que, a despeito de, quase sempre, não aparecerem nas manchetes, são realizadas de maneira horizontal e capilarizada mais recorrente entre pessoas e mais raras a partir de grandes empresas. Alguns casos podem ilustrar melhor o que procuramos expor.
Um homem chegou de carro no estacionamento da Missão Paz e descarregou várias caixas com produtos de higiene e limpeza; explicou que o irmão dele, imigrante que mora no Canadá, ao ler uma matéria sobre as situações dos imigrantes em São Paulo, e da atuação da Missão Paz, lembrou as dificuldades que passou como imigrante e destinou R$550,00 para
ajudar através da instituição. Em um sábado, perto do meio dia, outro homem chegou com o carro cheio de alimentos não perecíveis. Contou que os pais tinham emigrado da Itália para o Brasil no final dos anos 1950 e, por ter experimentado na pele, junto com a família, a condição de imigrante, decidiram ajudar os novos imigrantes.
Daria para continuar, com mais exemplos, mas concluímos com este bem emblemático: Uma mulher brasileira chegou junto com uma mulher boliviana que tinha o nome marcado para receber uma cesta básica. A boliviana explicou que convidou a brasileira, operária na mesma oficina de costura que ela, para vir juntas, pois confiava que sua amiga brasileira, também em situação de vulnerabilidade, conseguiria a ajuda. Cada uma delas recebeu uma cesta básica. A solidariedade de uma imigrante preocupada com uma colega não imigrante expressa, na prática, a força de capilaridade e o caráter humanitário, independente de nacionalidade, etnia/raça, religiosidade ou estatuto jurídico, das ações de protagonismo e ajuda mútua entre as pessoas no contexto de crises políticas, econômicas, humanitárias e de pandemias com a da Covid-19.
2.5 Debates públicos
Desde o mês de abril tem sido realizados debates públicos, no âmbito dos Diálogos no CEM[5] (seminários mensais), transmitidos ao vivo pela Web Rádio Migrantes e pela página da Missão Paz no Facebook, envolvendo pesquisadores que abordam sobre diversas questões importantes como as condições de vida, estudo, trabalho, sociabilidade e acesso a direitos pelos migrantes e refugiados no contexto da Covid-19. Citamos três desses debates que alcançaram ampla visibilidade e participação de internautas.
- 42º Diálogos no CEM – 17 de abril, 15h00. Tema: Migração internacional de mulheres e o mercado global de cuidados: um estudo sobre filipinas em São Paulo. Palestrante: Ester Gouvêia M. Ribeiro, Mestre em sociologia pela Unicamp; doutoranda em Sociologia pela USP; membro do Observatório das Migrações, São Paulo;
- 43º Diálogos no CEM - 22-05-2020 - 15h00. Tema: Direitos Humanos, Migração e Educação: desafios no contexto da Covid-19. Palestrantes: Margarita Victoria Gomez, pesquisadora do CERU/NUPRI/USP; Christina Magalhães, professora na Missão Paz e no Instituto Sedes Sapientiae;
- 44º Diálogos no CEM – 19 de junho – 2020 – 15h00. Tema: Trabalhadores migrantes rurais: negados, porém, essenciais no contexto da Covid-19. Palestrante: Maria Aparecida de Moraes Silva – UFSCAr/Grupo TRAMA.
Outros debates, assim como os citados, tiveram o objetivo de sensibilizar grupos sociais e gestores públicos para intervenções humanitárias que salvaguardem a solidariedade, o protagonismo, os direitos e a dignidade humana dos grupos sociais mais atingidos pela pandemia do coronavírus.
2.6 Espaço religioso
As transmissões das celebrações religiosas via Facebook e web rádio migrantes ajudaram a manter viva a espiritualidade num período tão complicado, marcado por medos, incertezas, dores e lutos. Muitas pessoas informaram nomes de familiares ou amigos internados em hospitais; outros enviavam fotos e nomes de falecidos pela Covid-19; ainda outros agradeciam por ter derrotado o vírus e alcançado a cura da doença. As missas fixas do final de semana tiveram mais participações, sendo realizadas às 19:00h, de cada sábado, em espanhol, às 10:00h, de cada domingo, em português e às 11:30h, também de domingo, em italiano. Outras missas em inglês e francês foram celebradas, em outros momentos, para atender aos imigrantes e refugiados falantes nativos dessas respectivas línguas.
3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns países como o Brasil, Estados Unidos da América, Inglaterra, Chile que executavam políticas neoliberais com agendas de privatização, reformas trabalhistas, revisão de valores democráticos etc. relutaram mas tiveram que interromper (ao menos momentaneamente) a escalada de parte dessas agendas para focalizar ações na prevenção e o combate à Covid-19. Contudo, as ações que se seguiram, especialmente aquelas voltadas aos migrantes e refugiados, com raras exceções, trataram de restringir a mobilidade de pessoas, negar ou bloquear o seu acesso a políticas públicas de proteção social ao novo coronavírus. De acordo com Charleaux (2020)[6], a ONU mapeou 1.820 leis restritivas à imigração instituídas por governos em todo o mundo, no contexto da Covid-19.
A vulnerabilidade social, já profunda para a população autóctone de baixa renda, torna-se dramática no caso de imigrantes e refugiados em semelhante situação socioeconômica, com o agravante de não dominarem a língua, não terem acesso a informações claras, apresentarem documentos considerados inválidos por conterem informações desencontradas como o CPF que, invariavelmente, apresenta erros de grafia no nome da pessoa titular, ou ainda não preencherem requisitos obrigatórios por não dispor de situação documental que os habilite à reivindicação.
Nesse contexto, organizações e instituições sociais articuladas entre si, com grupos e associações de migrantes, bem como com a contribuição espontânea de voluntários têm reafirmado o seu papel de promotoras de ações afirmativas e construção de pontes que viabilizem, senão travessias para melhores condições de vida e transformação social, ao menos o acesso a um mínimo vital social aos deserdados de políticas públicas para que possam sobreviver, reascender suas esperanças, se reorganizar e incidir como protagonistas na luta por dignidade em mundo em plena metamorfose caracterizada por crises econômicas, políticas, humanitárias, quando não por pandemias como a Covid-19.
A Missão Paz, através de ações de assistência, apoio, formação, informação e incidência política tem se colocado como um ator social acima de preferências religiosas, posições políticas, ideológicas que busca, de maneira articulada e multilateral, a promoção da dignidade humana em uma Casa Comum (Papa Francisco, 2015)[7], sem fronteiras étnicas, raciais, de gênero, nacionais. Importa a condição humana das pessoas, especialmente quando as suas vidas são ameaçadas por ações unilaterais, tirânicas ou por fatalidades que logo se tornam políticas e sociais como a pandemia do novo coronavírus.
Trata-se de uma atuação humanitária, complexa, dinâmica, estimuladora e desafiadora a instituições sociais e políticas no sentido de pensar, planejar e implementar ações políticas e econômicas, cujo princípio ético contribua para eliminar desigualdades sociais e seja afirmativo de direitos a diversidade cultural, justiça social e da dignidade humana, de modo incondicional à etnia, raça, sexo e nacionalidade.
Paolo Parise é padre scalabriniano, diretor do Centro de Estudos Migratórios de São Paulo e um dos coordenadores da Missão Paz, entidade que atua de maneira integrada e interdisciplinar com imigrantes e refugiados. Possui doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. É professor de teologia no ITESP (Instituto Teológico São Paulo) e professor convidado de teologia das migrações no SIMI/Urbaniana de Roma.
José Carlos Alves Pereira é doutor em sociologia pelo IFCH/UNICAMP e editor da Revista Travessia do Centro de Estudos Migratórios (CEM) da Missão Paz.
Letícia Carvalho é graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/Franca, possui formação nas áreas de gestão de organização do terceiro setor, advocacy e políticas públicas pelo Programa de Educação Continuada, da Fundação Getúlio Vargas – PEC/FGV, e é assessora de advocacy da Missão Paz.
Os artigos publicados na série Mobilidade Humana e Coronavírus não traduzem necessariamente a opinião do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. A disponibilização de textos autorais faz parte do nosso comprometimento com a abertura ao debate e a construção de diálogos referentes ao fenômeno migratório na contemporaneidade.
Referências bibliográficas
[1] ROCHA, Rogério Lannes. Ficar em que casa? Radis (Revista da Fundação Oswaldo Cruz), Edição 212, maio/2020.
[2] IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTIA. Brasil – PNAD Covid-19. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=pnad+2020. Acesso em 28 de junho de 2020.
[3] IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua. PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 12,6% e taxa de subutilização é de 25,6% no trimestre encerrado em abril de 2020. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27820-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-12-6-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-25-6-no-trimestre-encerrado-em-abril-de-2020. Acesso em 21 de junho de 2020.
[4] Rede Advocacy Colaborativo (RAC), é uma aliança constituída por prazo indeterminado, que tem como objetivo principal conectar interesses coletivos e difusos da sociedade civil com o Congresso Nacional através do fortalecimento de capacidade de advocacy da sociedade civil brasileira vinculada às causas de transparência e integridade na esfera pública, desenvolvimento socioambiental, nova economia e direitos humanos.
[5] CEM – Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz.
[6] CHARLEAUX, João Paulo. Covid-19: os imigrantes na linha de frente na Europa e nos EUA. Nexo Jornal, 31 de maio de 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/31/Covid-19-os-imigrantes-na-linha-de-frente-na-Europa-e-nos-EUA. Acesso em: 25 de junho de 2020.
[7] FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Sí. Roma: Livraria do Vaticano, 2015.
Foto da chamada: Fernando Piovesan/Acervo Missão Paz. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito Ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" em branco.
A ocupação "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (NEPO – IFCH/UNICAMP), para divulgação do livro "Migrações Internacionais e a pandemia de COVID-19" (disponível neste link). Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.