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Mulheres e Migração: Algumas possibilidades de pesquisa a partir das coleções do Museu da Imigração
Os estudos de gênero, que tomaram fôlego na área das ciências humanas nas últimas décadas, também conquistaram espaços dentro do âmbito museológico a partir de 1980, quando a chamada "nova museologia" passou a debater a função social dos museus. Surge, então, uma nova forma de compreender os patrimônios culturais, as coleções e a construção das narrativas e das identidades. A partir da perspectiva da história das mulheres, é possível olhar para os objetos de pesquisa com o intuito de ouvir as vozes ignoradas de tantas delas – anseios, sonhos e subjetividades, bem como as diversas formas de repressão ou silenciamento a que tiveram que se submeter ao longo da história.
Aqueles que trabalham com história das mulheres, ou simplesmente buscam mais informações sobre o tema, estão acostumados com as dificuldades impostas logo de início: a escassez de material de análise. Por terem sido silenciadas sistematicamente no decorrer dos séculos, os vestígios deixados pelas mulheres do passado são de difícil rastreio.
O caso de uma produção escrita, por exemplo, esbarra em um problema de primeira ordem: o acesso restrito à alfabetização e às letras. A dificuldade de publicação de textos originais, tanto literários quanto de não ficção, gerou uma pulverização das palavras e ideias femininas em fontes informais, como cartas, diários, relatos de viagem e outras formas privadas de registro documental – pouco ou mal preservadas, em muitos casos. No tocante à produção artística, a dificuldade de acesso às escolas de belas artes e seus circuitos culturais e comerciais contribuiu para a porcentagem desigual de artistas mulheres nos cânones da história da arte. Aquelas que se destacavam, o faziam por sua "excepcionalidade", ou seja, por serem diferentes das demais mulheres e não pelo simples mérito de serem boas em seus ofícios.
Dentro dos acervos dos museus, possuímos uma série de material de análise, que varia de acordo com o perfil de cada instituição. Muitas vezes constituídas de acordo com uma lógica machista, as coleções de museus históricos são repletas de artefatos ligados à trajetória dos homens que as construíram e suas narrativas. No tocante à história das migrações, a ideia da figura do "migrante", desprovida de uma identidade de gênero, acabou dando destaque para as vozes masculinas e marginalizando as particularidades da experiência feminina do deslocamento.
Nesse aspecto, o Museu da Imigração se apresenta como um espaço privilegiado de discussão dessas particularidades, desde a própria formação de seu acervo, que possui inúmeros vestígios da presença feminina na história das migrações do passado e do presente, ainda que de forma difusa. Quando tratamos da trajetória das mulheres, é importante compreender que o mapeamento das lacunas também é uma importante ferramenta de análise e produção de conhecimento.
No caso da documentação da Hospedaria de Imigrantes do Brás, por exemplo, é comum observarmos nomes femininos cujos sobrenomes não foram registrados nos famosos Livros de Matrícula. Lá, estão sempre condicionados à pesquisa do nome do homem, o dito "chefe de família", de acordo com a nomenclatura dos próprios documentos. Esses arquivos nos permitem, ainda assim, traçar inúmeros caminhos de pesquisa, uma vez que muitas famílias compostas por maridos e esposas (além de filhos e filhas, quando havia) foram acolhidas da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás como parte das políticas de recepção do estado, que preferia essa configuração familiar àquela do migrante solteiro e sozinho. Em nosso Acervo Digital, é possível consultar esses registros e procurar entender qual o significado dessa configuração familiar como força de trabalho na história do estado de São Paulo, bem como mapear a quantidade de mulheres recebidas de acordo com o país de origem ou o período da história, buscando entender seus contextos e razões diversas.
O banco de dados online do Museu da Imigração conta ainda com uma grande quantidade de fotografias, que também podem ser fontes riquíssimas de análise da representação feminina nos períodos registrados. A partir dessas imagens, podemos analisar, por exemplo, a presença feminina em diferentes espaços, a maneira de se portar, vestir ou trabalhar. Os jornais e periódicos de época – digitalizados e, também, acessíveis por meio dessa plataforma – podem, por sua vez, ser fontes interessantes para compreender as formas de registro da presença feminina no mundo, explorando, por exemplo, quais tipos de notícias são relacionadas a elas e o porquê. Da mesma maneira, as cartas de chamada, na grande maioria das vezes escritas por homens (até mesmo por uma questão burocrática), também podem ser buscadas com o objetivo de compreender as formas de conexão entre o universo masculino e o feminino marcado pelas distâncias, além das formas de relação entre homens e mulheres – casais, pais e filhas, mães e filhos, entre outros – ao longo do tempo.
Por sua vez, o acervo museológico – com seus mais de 12 mil objetos – constitui um rico universo de possibilidades no tocante à história das mulheres. Composto tanto por itens herdados da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás quanto por doações de migrantes e descendentes, possui uma grande variedade tipológica, passando por mobiliário, indumentária, instrumentos de trabalho, utensílios de cozinha, itens de toilette, documentos pessoais e outros. À primeira vista, artefatos relacionados ao ambiente doméstico seriam a principal fonte para explorar a história das mulheres. No entanto, devemos tomar cuidado para não realizar análises simplistas, que associam essas pessoas somente ao universo privado de forma a entendê-las como personagens meramente passivas – tanto nestes espaços quanto em outros.
Informações sobre a atuação feminina no universo do trabalho podem ser extraídas, por exemplo, a partir da observação de algumas carteiras profissionais da nossa coleção. Já trabalhamos com elas em outros textos aqui do Blog do CPPR e realizamos uma vitrine do acervo com alguns exemplares em 2019. Duas delas pertenceram às argentinas Maria Felisa Bruno e Anunciación Bruno. Localizando seus "Registros de Estrangeiro", descobrimos que vieram juntas para o Brasil na década de 1930. Essas carteiras dão algumas pistas para compreender um pouco melhor a trajetória das irmãs: embora ambas tenham sido registradas como "doméstica" em seu "Registro de Estrangeiro", é possível observar uma alteração de suas condições profissionais ao longo do tempo.
O registro de Maria Felisa foi como "tecelã", rasurado e substituído por "camiseira". Já o primeiro cargo anotado foi de "contra-mestre camiseira", em 1947, seguido de "chefe da sec. de camisas" e, então, "costureira – digo mestre" (anotação adicionada com outra caneta). Ela passou por três empresas diferentes: Imperador dos Tecidos e Camisas Ltda, Costa & Akierrztafen Ltda e Companhia de Tecidos Antinori. Já Anunciación foi registrada na Carteira de Trabalho como "gerente" em 1953, trabalhando nesse cargo na empresa comercial Feira de Alumínio Anita Vinocur e, também, na loja de louças Manuel Antonio Fernandes. E, por fim, como balconista na Luiz Moutinho e Cia. Ltda.
A coleção de História Oral é mais um espaço privilegiado para ouvir a voz, literalmente, de tantas mulheres migrantes. Mergulhar nos diferentes espaços de atuação, nas cenas cotidianas e nas particularidades da migração feminina ainda é um trabalho que merece ser realizado, levando em conta as entrevistas coletadas junto às comunidades de migrantes e descendentes ligadas à história da Hospedaria de Imigrantes do Brás. Os projetos mais atuais buscam, por sua vez, alcançar uma maior representatividade no âmbito das migrações e dialogam diretamente com a atuação feminina na cidade de São Paulo, que vem crescendo consideravelmente nos últimos anos.
As mulheres migrantes são agentes do próprio destino. Explorar suas histórias e trajetórias não é apenas aprender sobre o passado, mas compreender melhor o presente, o mundo em que vivemos, as conquistas já alcançadas e os desafios que ainda estão por vir. Nesse sentido, pesquisar a história das mulheres é, também, uma forma de militância, e o acervo do Museu da Imigração é um campo fértil para novos desenrolares dessa tão importante e fundamental luta.