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Mulheres e Migração: Introdução à nova série
Falar sobre mulheres não é uma novidade por aqui. Quem acompanha o conteúdo produzido pelo Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração já deve ter lido alguns textos sobre o assunto, presentes nas séries passadas. Discutimos, por exemplo, o projeto de História Oral focado na mobilização política de mulheres contemporâneas, analisamos ofícios realizados por mulheres migrantes ao longo da história e buscamos explorar suas representações em imagens do acervo digital e sua presença na antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás. A presença feminina no Museu encontra-se também nas exposições da instituição, muitas vezes como tema transversal ou eixo temático. Filhas e netas de migrantes foram parceiras fundamentais em nossas curadorias participativas. Além disso, inúmeras ações e atividades são realizadas por mulheres migrantes no MI, como cursos, atividades online, rodas de conversas e demais formas de ocupação do espaço.
Em 2021, pretendemos aprofundar nossas pesquisas na temática de gênero e, por isso, iniciamos nosso ano com uma nova série de artigos "Mulheres e Migração", como exercício de sistematização e reflexão sobre o assunto, que vem ganhando cada vez mais espaço nas instituições culturais, de pesquisa e ensino. Do ponto de vista teórico, foi nas últimas décadas do século XX que a historiografia voltou seus olhares para as mulheres a partir de um novo modelo de construção dos saberes, impulsionado pelos crescentes estudos na área das mentalidades, do cotidiano e da história privada. A historiadora Michelle Perrot chama a atenção para o fato de que a, então, denominada "história das mulheres" entende tais agentes históricos como categoria social – e, portanto, não biológica ou natural – em diálogo com toda a sociedade.[1] O conceito de gênero foi utilizado, ainda, nos anos 1970 pela historiadora Nathalie Zemon Davis para destacar o peso dos papéis sexuais e sua importância simbólica na história social. Na década seguinte, esses estudos vão se aproximando também do âmbito da história política e das relações de poder – por exemplo, nas análises de Joan Wallach Scott.[2]
É importante lembrar que as mulheres não constituem uma categoria única e homogênea[3] e que, mesmo dentro do âmbito das migrações, elas vivenciaram experiências diferentes, com perspectivas e lugares sociais diversos. Com essa série, procuraremos explorar alguns desses lugares evidenciados pelas coleções do Museu da Imigração, mas também nos atentar às suas lacunas. E quantas lacunas! Ao tentar rastrear a trajetória de mulheres ao longo da história, nos damos conta do quanto suas ações foram invisibilizadas e sua produção pouco registrada e, consequentemente, pouco preservada. Trabalhos mais recentes demarcam a importância das exigências transformadoras de personagens femininas em diferentes contextos, buscando uma reformulação de seu lugar na sociedade e desempenhando um papel fundamental em diversos aspectos da vida, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo.
Associadas muitas vezes ao ambiente privado, as mulheres foram sistematicamente omitidas dos espaços públicos. A história dos grandes homens e figuras da vida pública foi construída deixando a agência feminina sempre à margem. Ao longo dos séculos XIX e XX, alguns museus históricos acabaram reforçando essas narrativas, uma vez que seus acervos refletiam, por meio de uma história oficial, as ações de grupos privilegiados e detentores do poder. Por outro lado, o fato das mulheres já atuarem, dentro de seus lares, como "guardiãs da memória", levou a naturalização dessa relação com o ambiente doméstico e com esse viés das coleções museológicas:
Os museus, como instituições depositárias da memória (ou das memórias) dos povos, conservam múltiplos bens culturais que colocam em manifesto esse protagonismo das mulheres, acentuado pelo fato delas terem vivido confinadas ao âmbito doméstico, como transmissoras dos saberes da comunidade. No entanto, essa transmissão também possibilitou a perpetuação de papéis e modelos de atuação que contribuíram para que as sociedades patriarcais se assentassem plenamente e para que as mulheres continuassem marginalizadas dos espaços de ação pública, vivendo reclusas entre os muros da vida familiar e privada.[4]
Atualmente, cada vez mais comprometidas com a busca de representatividade, as instituições museológicas se debruçam sobre seus acervos com a incessante tarefa de descontruir e reconstruir narrativas, visando alcançar uma sociedade mais plural e buscando ouvir as vozes de grupos, até então, silenciados. Como parte desse grande projeto, o Museu da Imigração vem buscando, nos últimos anos, dialogar com os mais diversos grupos e comunidades de migrantes, com o objetivo de aproximar o passado do presente e contribuir com a construção de uma narrativa e de uma sociedade mais justa, igualitária e diversa.
Nas séries anteriores, trabalhamos temáticas relacionadas à migração interna, ao racismo, à xenofobia e, agora, é a vez de nos comprometermos com as mulheres e suas especificidades na história dos movimentos migratórios. Nos próximos textos, vamos falar sobre diversos assuntos, como os estudos de gênero nos museus, a relação entre o feminino, a oralidade e a memória, os pontos de contato das nossas coleções museológica, documental e iconográfica, domesticidade e o lugar da mulher migrante no cenário da política, da cultura e das artes. Continue nos acompanhando!
Referências bibliográficas
[1] PERROT, Michelle. Escrever a história das mulheres. In: Perrot; Duby, História das mulheres - o século XIX, op. cit.; PERROT, Michelle. Preface. In: Une histoire de femmes est-elle possible? Marseille: Rivages, 1984.
[2] PINTO, Teresa; ALVAREZ, Teresa. Introdução: História, História das mulheres, História do gênero. Produção e transmissão do conhecimento histórico, Ex Aequo, Lisboa, n.30, 2014, pp. 9-21; Cf. DAVIS, Natalie Zemon , "Women’s History" in Transition: The European Case, Feminist Studies, v.3, n.3/4, 1976; SCOTT, Joan Wallach, Gender: A Useful Category of Historical Analysis, The American Historical Review, v.91, n.5, 1986.
[3] BOCK, Gisela. História, História das Mulheres, História do Género, Penélope. Fazer e Desfazer História, n.4, pp. 158-187, 1989.
[4] CRESPO, Miguel Ángel Recio. Presentación. In: GOMEZ, Alejandro Nuevo (Dir.) Tradición y Modernidad: patrimonio en femenino. Ministerio de Educación, Cultura y Desporto de España/Ibermuseus. Madri: Secretaria General Tecnica, 2014, p.6. No original: "Los museos, en tanto que instituciones depositarias de la memoria (o las memorias) de los pueblos, conservan en su haber múltiples bienes culturales que ponen de manifiesto ese protagonismo de las mujeres, acentuado por haber vivido confinadas al ámbito de lo doméstico, como transmisoras de los saberes de la comunidad. Pero esta transmisión también ha posibilitado la perpetuación de unos roles y unos modelos de actuación que han posibilitado que las sociedades patriarcales se asentaran plenamente y que las mujeres quedaran marginadas de los ámbitos de acción de lo público para vivir recluidas entre los muros de la vida familiar y privada".