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Como mediar o invisível? A prática educativa no vazio
Gabriela dos Santos - Supervisora de Desenvolvimento Educativo
Durante o período de um ano, o Núcleo Educativo do Museu da Imigração precisou repensar seus roteiros de visitas, pesquisas e percursos educativos. Nesse período ocorreu o processo de requalificação da exposição de longa duração, “Migrar: experiências, memórias e identidades”, inaugurada em 2014. A reforma, segundo as equipes técnicas de pesquisa e curadoria, visava atualizar a exposição que, com dez anos de existência, carecia de revisão de dados, legendas e outros pontos que foram reformulados para a nova exposição de longa duração, agora intitulada “Migrar: Histórias Compartilhadas Sobre Nós”. O objetivo deste novo projeto é ampliar vozes, narrativas e contextos, a fim de contemplar a diversidade de perspectivas sobre a temática migratória na contemporaneidade.
Em 2024, antes mesmo do fechamento para a grande reforma, e ao longo de todo o ano de 2025, algumas dúvidas se fizeram presentes no cotidiano do Núcleo Educativo, tais como: “O que de fato constitui um museu?” Seria o prédio tombado, o acervo, as exposições? Obviamente, todos esses elementos se unem para constituir um museu, mas seria possível conceber um museu sem esses elementos? Ou, ainda, como funcionaria um museu histórico e tradicional sem sua exposição de longa duração? A exposição anterior apresentava o acervo com objetos que estavam muito cristalizados no imaginário das pessoas, como as réplicas das beliches, a parede de sobrenomes, os livros de registro, entre tantos outros elementos que compunham as salas expositivas e estão sempre presentes em qualquer busca rápida sobre o Museu da Imigração. No caso dos museus históricos, é muito comum que estes se insiram no papel de "museu ilustrativo", pois se tornam, nesse sentido, um espaço de ilustração do que foi aprendido em sala de aula, visto em uma novela ou no relato de uma história familiar. Nesses casos, a visita se torna parte do processo avaliativo do tema e, em muitos casos, não se possibilita fazer reflexões maiores do que o esperado.

Por outro lado, a ausência da exposição de longa duração no período de reforma gerou muitos questionamentos a respeito de como se daria a mediação educativa em um museu onde o acervo é parte importante das visitas e, inclusive, legitimava parte das falas dos educadores — funcionando como uma prova “inquestionável” do relato apresentado. Essa dúvida se justifica visto que a expectativa de muitos visitantes acerca de museus históricos está, muitas vezes, construída em torno do acervo, na vontade de visualizar os objetos como se isso pudesse materializar muitas das histórias de família, o conteúdo do livro didático ou até mesmo aquilo que sempre foi construído pela cultura pop — no caso do Museu da Imigração, tudo que constituiu o universo das migrações.
No processo de estudo e requalificação, essas questões culminaram em uma pergunta que percorreu vários espaços do prédio: “O que é o patrimônio do migrar?” Em alguns casos, objetos comuns a museus de imigração foram colocados ao lado dessa pergunta, como malas, sapatos, passaportes — itens individuais que servem para ilustrar um percurso coletivo. No entanto, quando não se dispõe mais desses recursos, o educador se vê obrigado a buscar diversas estratégias que permitam ao público construir esses símbolos de outras formas. É aqui que entra uma das tarefas mais complexas da mediação educativa, mas crucial para o processo de autonomia do visitante: incentivar o público a acessar suas memórias pessoais ou coletivas, exercitando sua imaginação para pensar acerca daquilo que não está visível.
Nesse exercício, a posição do educador é dupla: mediar com a capacidade comunicativa de extrair reflexões e, também, promover trocas entre os públicos. Assim, a mediação educativa requer do educador muito mais que traduzir contextos ou questionar o universo ao redor do educando; exige a elaboração de estratégias de mediação em contextos adversos. Neste caso, o desafio foi mediar apenas o prédio da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, a partir do próprio patrimônio predial, explorando alguns outros espaços, como o jardim, a estação ferroviária e a sala onde está localizada a maquete do edifício, até a chegada de novas exposições temporárias.
As exposições temporárias tiveram um papel mais que fundamental nesse contexto, muitas vezes sendo capazes de amortecer as frustrações do público, mas em outros momentos geraram mais debates acerca da ausência da exposição de longa duração, essa situação de questionamento constante se estendeu a todas as equipes de atendimento que lidam diretamente com o público, incluindo a bilheteria, a orientação, o educativo e o Centro de Pesquisa e Referência da instituição. É nesse cenário que convidamos o público a algumas reflexões sobre os museus, especialmente os históricos, tais como:“Qual a importância de se atualizar um museu?” e “De que formas podemos continuar trabalhando o passado e o presente no contexto das migrações?”. Sempre é bom relembrar que o Museu da Imigração tem como discussão central um fenômeno humano: o ato de se deslocar, que, por sua vez, continuará a acontecer enquanto existirem pessoas. Portanto, como manter as informações acerca desse fenômeno em constante atualização? Pensando que esses dados mudam diariamente, que territórios são alterados, fronteiras se movem, dominação e subjugação de determinadas comunidades continuam acontecendo, bem como movimentos de independência e de separação. O mapa-múndi segue em constante movimento.

Mediar o invisível: como falar daquilo que não se vê? Em um processo de aprendizagem, a troca é fundamental, e a escuta é uma ferramenta cotidiana para aquele que tem como objetivo mediar. Iniciar uma visita a partir de perguntas sobre os contextos do visitante permite que o educador construa rapidamente um caminho para guiar sua fala. É o educando — o visitante, o aluno — que em muitos momentos conduz a visita. É a partir de suas falas, opiniões e questionamentos que o educador constrói o roteiro de sua mediação e entende como trazer os fatos históricos para perto daquele que o escuta.
Durante todo o período de reforma da exposição, o Educativo convidou o público para o centro do debate, principalmente o público escolar das escolas estaduais e municipais, que pela primeira vez superou os visitantes de instituições privadas. Esse convite à centralidade permitiu que os alunos enxergassem suas próprias histórias familiares como parte de um patrimônio, como parte da história de um museu, e que as histórias presentes ali são sobre muitos de nós.

Durante todo esse processo, o Museu da Imigração foi repensado pelos educadores. Houve visitas sobre o patrimônio e arquitetura, discussões sobre o direito de acessar espaços públicos. Houve outros olhares para o jardim, que se tornou ponto central de encontros, mediações, refeições, brincadeiras e reflexões. O processo de autonomia do público também foi observado atentamente, visto que, com o suporte de materiais educativos disponíveis no site, os visitantes puderam olhar para outros espaços do Museu da Imigração. A efetividade na construção e a autonomia no uso dessas publicações só é possível a partir da criação de materiais que possibilitem essa “liberdade”.
Olhar museus com outras perspectivas é o que permite a um educador criar. Houve mediações sobre árvores, olhares atentos ao patrimônio ferroviário e o convite ao retorno. O museu deixa de ser uma ferramenta ilustrativa e passa a ser um espaço de discussão e aprendizado, potencializando, inclusive, um modelo de educação libertária.
Por fim, as reflexões apresentadas aqui fazem parte do período de atendimento do Núcleo Educativo de dezembro de 2024 até dezembro de 2025. Em exato um ano, o educativo do Museu da Imigração desenvolveu projetos normalmente, seguiu atendendo o público diariamente, comprometido com o direito à memória das comunidades migrantes e com a trajetória de todos os indivíduos que realizaram processos de migração e refúgio. Compreendendo a migração como direito e buscando sempre incluir histórias que foram invisibilizadas, apresentar as lacunas, discutir as ausências e refletir acerca de quem tem direito a uma memória familiar e a encontrar vestígios de seus antepassados e até traçar trajetórias. Muitas inquietações movem o Educativo do Museu da Imigração nesse processo de apresentar e dialogar com o público acerca dos movimentos migratórios do passado e do mundo contemporâneo, bem como os internacionais e os nacionais, com o auxílio de outros autores que buscam traçar concepções sobre as diferentes práticas educativas.
Referências:
BELL HOOKS. Ensinando a Transgredir: A Educação Como Prática da Liberdade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
MUSEU DA IMIGRAÇÃO. Possibilidades educativas em museus de história: Desafios na mediação da história. Blog Museu da Imigração, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/en/blog/publicacoes-educativas/possibilidades-educativas-em-museus-de-historia-desafios-na-mediacao-da-historia. Acesso em: 4 dez. 2025.
MUSEU DA IMIGRAÇÃO. Possibilidades educativas em museus de história: Parcerias e conflitos. Blog Museu da Imigração, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/en/blog/publicacoes-educativas/possibilidades-educativas-em-museus-de-historia-parcerias-e-conflitos. Acesso em: 4 dez. 2025.