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Brasileiros na Hospedaria: Relatos orais - a voz dos que migraram
Apresentamos hoje o penúltimo texto da série "Brasileiros na Hospedaria", trazendo alguns relatos coletados a partir de entrevistas realizadas com diversos migrantes nacionais. Tais depoimentos compõem projetos de História Oral desenvolvidos pelo Museu da Imigração e suas transcrições podem ser acessadas em um banco de dados online. São mais de 500 entrevistas com diferentes imigrantes, nacionais e internacionais, que nos oferecem um rico testemunho de suas vivências e experiências no processo de deslocamento.
Estamos, há muitas semanas, experimentando contar a história de milhares de trabalhadores nacionais que chegaram a São Paulo, por meio de documentos, fontes históricas e literatura historiográfica. No entanto, pareceu-nos necessário incluir, aqui, a trajetória vivida e contada por eles próprios. Entendemos que a história das migrações é, sobretudo, a história de indivíduos – e seus testemunhos pessoais oferecem um valioso vislumbre daquilo que foi vivido, mostrando traços da complexidade desses processos e a possibilidade de cada um escrever a própria história.
Antes de entrarmos nas transcrições em si, você poderá ler uma pequena descrição dos entrevistados nacionais que constam em nossa coleção:
- Raimundo da Cunha Leite nasceu em Rancharia, distrito de Juazeiro, Bahia, no ano de 1923, vindo para São Paulo em 1939. Lembra-se da ocasião em que Lampião e seu bando se hospedaram em sua casa por uma tarde. Formou-se em advocacia aos 48 anos. Foi prefeito por São Caetano em 1976 e teve participação ativa na Sociedade Beneficente Brasil Unido em 02/07/1950, que ajudava migrantes nordestinos recém-chegados a São Paulo.
- Antônia Rosendo de Araújo nasceu em Barreiros, Pernambuco, em 1935. Migrou para São Paulo em 1954. Completou os estudos em São Paulo, começou a trabalhar como servente em um hospital, estudou enfermagem e aposentou-se nessa profissão.
- Lauro José Teixeira nasceu em Livramento, Bahia, em 1925 e chegou em São Paulo em 1958. Passou pela Hospedaria de Imigrantes, sendo encaminhado para trabalhar em uma usina no interior do Estado.
- Ana Rita de Souza nasceu em Bela Flor, Bahia, em 1906 e migrou em 1914. Seu pai era delegado e a mãe dona de casa. Casada aos 17 anos com um filho de fazendeiros de café, teve cinco filhos e, após a morte do marido na Revolução de 1932, foi trabalhar como empregada doméstica em São Paulo.
- Iracema Souza nasceu na cidade de Bezerros, estado de Pernambuco, em 07 de julho de 1943. Em seu relato, fala sobre sua infância e a mudança para a capital pernambucana para trabalhar em uma casa de família aos oito anos de idade.
- Hortelina de Lima Paiva nasceu em Mari, Paraíba, no ano de 1932. Seu pai trabalhava na agricultura, como meeiro, e sua mãe era dona de casa. A família migrou para São Paulo em 1951. A viagem foi feita de caminhão até o rio São Francisco, depois de vapor e, por último, de trem até chegar em São Paulo.
Sobre as notícias que chegavam, em diferentes estados do Brasil, a respeito de São Paulo, vimos em outros textos que se criava um imaginário de fácil mudança de vida. As notícias circulavam entre familiares e amigos de pessoas que haviam migrado e convidavam aqueles que permaneciam nos locais de origem a viajar:
Raimundo: Se ouvia que [São Paulo] era a verdadeira Canaã. Aqui chegando tudo se tinha e tudo se conquistava. Eram essas notícias que lá chegava. (...) Passava de boca em boca. E aquilo foi fazendo com que o nordestino, cansado exatamente dos sofrimentos periódicos, da seca, de todas aquelas dificuldades e cansado, principalmente, do domínio dos chamados coronéis, é lógico que se motivavam a vir buscar a grande Canaã que era São Paulo.
Antônia: De São Paulo se ouvia o seguinte, que era a terra onde ganhávamos dinheiro, que tudo era fácil, então o nordestino por falta de trabalho lá, sua ansiedade era vir a São Paulo para trabalhar, ter uma vida melhor. E assim, naqueles anos, ou seja, naquela época que nós ouvíamos falar de São Paulo, eu achei que tudo era verdade, que de fato São Paulo é um lugar abençoado por Deus, um lugar que tinha um campo de trabalho imenso.
Sobre os preparativos para a viagem:
Raimundo: Primeiro a aquisição das passagens no embarque num vaporzinho que se fazia em Juazeiro. Naquele tempo não existia o chamado “pau de arara”, não existia outro transporte clandestino senão o vaporzinho do Rio São Francisco. Foram aqueles vapores que vieram do velho Mississipi, trazidos dos Estados Unidos, lógico que importados de lá, desmontados e montados lá em Juazeiro. Era o único meio de transporte, ou senão via costeira, pelo mar. Mas aí não era para o migrante e sim para quem podia, que tinha condição de pagar a passagem. Então para o migrante nordestino, o seu único meio de transporte era o vapor no Rio São Francisco. Ou seja, saia de Juazeiro até Pirapora numa extensão de 1221 km. Viagens que quando o rio estava seco demorava de 10 a 12, até 18 dias, como foi o nosso caso. A nossa viagem de Juazeiro a Pirapora foram 18 noites e 18 dias, sem contar mais 3 dias de trem de Pirapora até São Paulo.
Um dos principais trajetos se dava pelo rio São Francisco, saindo de Juazeiro até Pirapora, em Minas Gerais, onde pegava-se o pau de arara ou trem até São Paulo, descendo na estação Roosevelt.
Raimundo: Então quando foi em junho de 1939, nós pegamos o trem em Jurema, hoje Juremão, distante 36 km de Juazeiro e fomos até Juazeiro. Ocorreu um fato comigo e com os meus três primos, filhos do tio Doda que vinham no mesmo grupo. Porque ocorre o seguinte, interessante ver como é que eram as coisas naqueles tempos no Nordeste. Eu nasci em 1923 e o meu registro de nascimento data de 3 de julho de 1939, ou seja, um dia antes de eu embarcar para cá. Então o registro é feito em razão da necessidade de se viajar, que também era o único documento que se tinha para a maioria dos nordestinos. Naquele tempo, quando vinha para cá era esse [documento], não tinha outro. E com isso o escrivão era um velho fazendeiro de uma família tradicional, família Evangelista, lá de Juremão, que tinha uma fazenda chamada Olho D’água, ele que fazia o registro no livro. Ocorre que nessa época ele estava na fazenda, eu e mais três primos, o Raimundo, o Clemente e o Domingos filho do tio Doda, o mais velho. O trem na Jurema passava por volta das 2 horas da tarde e chegava por volta das 4 horas (...) E assim foi, por volta das 4 horas o trem chegou a Carnaíba, nos unimos ao grupo e por volta das 7, 6 horas nós chegávamos em Juazeiro. Nos abrigamos em casa de parentes, que ali moravam e, quando foi no dia seguinte, isso em 4 de julho de 1939, melhor dizendo, 5 de julho de 1939, por volta das 17 horas nós embarcávamos no vapor Otávio Carneiro que seria o nosso meio de transporte de Juazeiro a Pirapora, para fazer uma viagem que foi, como eu conto no livro, uma verdadeira epopeia.
Lauro José: Eu vim de trem. Saí de Livramento, Bahia, dia 1 de agosto, levei 18 dias na estrada, um dia andava um pouco, um dia parava, ficava três, quatro, depois vinha até chegar. Uma roupa que nem essa aqui. Eu vesti uma roupa lá que nem essa aqui, cheguei só buraco na roupa, tudo queimado de brasa de ferro (risos). Levamos 18 dias.
Iracema Souza: Ah nós viemos em um ônibus terrível, horrível. Imagina há 52 anos, a gente veio em um ônibus pobre, simples. Para a gente vir pra cá não tinha muito dinheiro então a minha mãe pegou e cozinhou, assou um frango e enfiou no meio da farinha! A gente veio comendo! Todas aquelas comidas típicas de lá, o que dava pra gente carregar sem estragar a gente trouxe, veio comendo. Demorou acho que uns três dias e meio de ônibus. Imagina, dia e noite viajando, não foi fácil. Quando chegou no Rio, eu não me lembro bem se era a serra de Petrópolis, nós passamos por um... como se fosse um viaduto, que o ônibus ameaçou de voltar. E era uma descida. Até hoje eu lembro disso. Falei “meu Deus do céu, a gente só morre quando chega a hora, né?” Sabe quando o ônibus vai assim depois ele vem assim... olha não sei como aquele motorista fez para conseguir dominar aquele ônibus. Foi terrível a viagem!
Sobre o cotidiano da viagem:
Raimundo: Era um vaporzinho, tinha lá os grandes vapores para a época e para o transporte, ou melhor dizendo, o transporte fluvial de baixo calado que era o Rio São Francisco. Tinha os vapores de luxo que eram o Benjamim Constant, o Benjamim Guimarães, Barão de Cotegipe e tinha o restante dos outros vapores que eram chamados de pequenos vapores. (...) E os vaporzinhos eram esses, através dos quais viajavam os retirantes, os migrantes. Tinha duas classes que eram o convés e a 1a. classe. A 1a. classe eram os passageiros que podiam viajar com mais luxo, mas os migrantes dormiam em rede misturados com os animais que seriam abatidos para alimentação dos passageiros, de um modo geral, porcos, cabritos, galinhas (...). E os migrantes dormiam em rede, tudo misturado, homens, mulheres, crianças, enfim, em redes ou em esteiras jogadas ali no porão, ou, melhor dizendo, ali no convés do navio. A gente passava o tempo da viagem, principalmente durante o dia, pescando, os meninos principalmente, pescando no rio e às vezes até acontecia que quando o rio estava seco, criava os chamados bancos de areia. (...) 3 dias e 3 noites [de viagem]. Embarcava-se em Pirapora até São Paulo como eu disse antes. Os migrantes faziam baldeação até a Barra do Piraí até chegar o trem de São Paulo e depois rumava para São Paulo. Depois de 3 dias e 3 noites a gente chegava aqui na estação do norte ou estação Presidente Roosevelt. E ainda quando aqui chegávamos ainda estávamos sob a custódia do serviço de migração. Porque o nordestino, nessa década de 40, obrigatoriamente tinha que ir para o interior, não podia ficar em São Paulo. Embora o nosso destino fosse São Caetano, quando de lá saímos tivemos que ir para o interior e, consequentemente, fomos para Colina, onde morava o meu tio, onde ficamos uns 3 meses mais ou menos.
Antônia: Nós viemos de caminhão, o cujo dito pau-de-arara, e esse pau-de-arara não tinha almofadinha, estofados para sentar, o assento era improvisado com madeiras comprida que era de um lado a outro lado da carroceria, então formava ali aqueles bancos. E para não ficar tão dolorido, a mamãe nos fez umas almofadas, que nós chamamos lá de travesseiro e ali até que amenizou um pouco aquela madeira dura de viajar, 8 dias... e aquele caminhão era coberto assim de uma lona, era o que nos livrava do sol e da chuva. Mas para mim foi uma viagem maravilhosa, até tem um detalhe que eu nunca esqueço... eu cantava muito, mais vinha tão alegre ao lado da mamãe, ao lado do meu noivo, eu cantava, cantava. Durante o dia já começava a cantar, aquela brisa da manhã batendo no meu rosto e eu tão alegre e também garota, não? E para mim foi uma viagem maravilhosa, muito alegre, muito... pra mim não me faltou nada.
Ana: Nós viemos de barco, viemos pelo rio São Francisco. Olha eu me lembro que foi de barco até nós chegarmos numa cidade para pegar o trem para vir para o estado de São Paulo, lembro das figuras que tinham no barco e eu tinha muito medo, era leão, cachorro grande, eu me lembro disso, me lembro do rio São Francisco, aí nós viemos até... era uma cidade que tinha... o barco vinha até essa cidade, depois nós pegamos um trem que veio para São Paulo. É Pirapora, Pirapora sim, lá nós fomos roubados e aí atrapalhou nossa viagem, porque depois precisou pedir socorro pela polícia para ajudar nós chegar até São Paulo, isso que eu me lembro.
Hortelina: Nós pegamos um caminhão lá da fazenda, lá do sítio, um caminhão até no Rio São Francisco. Do Rio São Francisco nós tínhamos que atravessar o Rio São Francisco, aí nós atravessamos de barco, aqueles vaporzinhos, aqueles barcos, o Rio São Francisco, aí é que eu não me lembro qual cidadezinha que nós descemos do Rio São Francisco na época (...) Aí do Rio São Francisco nós desembarcamos, nós viemos de trem até São Paulo, aquele trem coitado, ruim mesmo.
As dificuldades enfrentadas no deslocamento:
Raimundo: Era muito difícil, porque normalmente o migrante nordestino debandava, exatamente, por ocasião da seca, tamanha era a seca, tamanha era o sofrimento, não só da seca, mas imposto pelos chamados coronéis. Eles fugiam, exatamente em razão da seca. (...) Se eventualmente viesse a chover é lógico que aquela água iria molhar a todos que ali estavam. E era uma viagem típica e interessante. Na época tinha-se duas viações, ou seja, as empresas que montaram, exploravam o transporte fluvial. Era a Viação Baiana e a Viação Mineira, duas empresas que faziam, se utilizavam desse meio de transporte de passageiro e de carga. E o Rio São Francisco por hora, ele se transformava num verdadeiro mar. Era extensão de quilômetros de largura. E em outra hora o vapor, ele se estreitava tanto que a gente tinha até possibilidade de pegar os galhos das árvores ciliares ribeirinhas, o vapor passava tão perto que a gente se divertia até pegando as árvores, ou até colhendo nas árvores frutíferas alguma coisa dessas árvores. Então era uma viagem, de certo modo gostosa, até porque devido ao tempo, aquela convivência de estranhos se transformava numa convivência de verdadeira família. Tanto é que quando desembarcavam, isso era sempre em Pirapora, alguns dos passageiros mesmos os de 1a. classe ocorriam de desembarcar em meio da viagem, nas cidades ribeirinhas do rio São Francisco. Na despedida era uma verdadeira festa. E na Pirapora quando cada um tomava o seu destino a amizade se transformava a ponto dessa alegria se transformar em choro.(...) Ocorria que em Pirapora, quando se chegava da viagem do São Francisco cada um pagava a sua passagem, senão por si mesmo, custeada por parentes que aqui estavam em São Paulo e que mandavam os meios de transportes para que os seus parentes para cá viessem. Mas chegando a Pirapora os migrantes já passavam a ser cuidados pelo serviço de migração, que, como eu disse, era quem motivava a vinda desse povo para a agricultura, que era o forte na época, em São Paulo na década de 40. E ocorre que de Pirapora para São Paulo, a passagem para o migrante era um trem chamado Mineiro que vinha do Rio de Janeiro para Minas Gerais até Pirapora. Quando chegava em Pirapora ele juntava-se a esse trem dois vagões especiais; vagões de 2a., 3a. classe que era destinado aos migrantes. Só que aí a passagem era de graça, a passagem era liberada pelo serviço de migração e o migrante passava a ser então senão propriedade, mas bem desse serviço de migração.
Antônia: Esses motoristas de caminhão eles já tinham os lugares, as paradas certas e ali tinham aqueles pequenos restaurantes, era um lugar assim que tinha mesas, tinha comida, comidas típicas do Nordeste e também ali o banheiro para tomar banho, para se trocar. Então ele dava a cada 4, 5 horas uma parada para que os viajantes, vamos dizer, tivessem essa oportunidade de tomar banho, enfim. Mas quanto à alimentação, a mamãe já havia preparado aquela alimentação: frango assado, aquele tipo de farofa, muitas frutas. Então eu, a mamãe, o meu irmão, uma cunhada que vinha junto e o meu noivo, nós nos alimentávamos com a própria comida que a mamãe preparou em casa. E assim durante oito dias nos alimentamos com a própria comida.
Raimundo: Aquelas famílias que iriam embarcar para São Paulo, para embarcar da criança ao velho, o ancião tinha que ter um atestado médico fornecido por médicos da saúde, da Vigilância Sanitária ou Saúde Pública do governo de Minas, um posto de saúde implantado ali em Pirapora para fornecer esse atestado médico. Sem esse atestado médico o migrante não embarcava. Daí que eu comento isso no livro, uma piada de mal gosto, que o baiano passou até a ser conhecido, ou melhor dizendo, o mineiro passou a ser conhecido como o “baiano cansado”, ou seja, o migrante nordestino chegava até Pirapora e não conseguindo aquele atestado médico para embarcar no trem da migração, por lá ficava e acabava sofrendo as mesmas amarguras que sofria lá nos seus locais de origem. E o que conta Jorge Amado em sua obra Seara Vermelha, eu posso dizer que fui testemunha disso. Médicos de má índole, em toda profissão, em toda classe, sempre existiu os bons e os maus. O nordestino, o migrante, era vítima de explorações várias e inclusive até dessa verdadeira infâmia, ou seja, famílias inteiras que vinham o pai, o casal com seus filhos e filhas, e os médicos, verdadeiros bruxos da época, se serviam para o fornecimento desse atestado médico de meios escusos para se servirem dessas moças. Então escolhia determinadas famílias uma das moças e inventavam, por assim dizer, que chamava a moça e dizia: “Olha, o seu pai não pode embarcar porque (ou sua mãe, mas principalmente o pai que era o chefe da família,) não pode embarcar porque ele está doente do pulmão, ou sofre de esquistossomose”, que era o preconceito que existia contra o nordestino. Achavam que todo o nordestino ao se banhar em lagoa ou em rio, em riachos, em águas paradas, eram portadores do vírus, não sei qual o termo certo, é esquistossomose. E com essa desculpa ele propunha a moça que o aceitasse, ou senão ele não daria. Então era um atestado, se cometiam essas verdadeiras barbaridades. Então era essa triagem que se fazia. Para embarcar tinha que ter um atestado médico fornecido por um médico que usava disso para cometer abusos até contra famílias indefesas em suas mãos. Essa era a triagem que se fazia. Existia o preconceito de que todo o nordestino era portador da esquistossomose e que para vir para São Paulo ele deveria estar em boa saúde e até porque, se para cá vinha era para o exercício de serviços pesados e consequentemente, teria que ser forte, rígido e sobre tudo sadio. (...) Aí tem um fato também interessante. Quando desembarcavam do vaporzinho aquele povo todo, todos os migrantes eram arrebanhados e transportados para um grande barracão, no linguajar nordestino seria um grande balcão, simplesmente um enorme galpão, um grande barracão sem cama, sem cozinha, sem nada. E aquele povo passava a dormir ou sobre esteiras, porque nem rede tinha como armar, porque simplesmente um barracão, e ficava todo aquele povo espalhado lá à espera da chegada do trem. Ou seja, os que já tinham o atestado de saúde, na medida que o trem chegava em Barra do Piraí, esses dois vagões dos migrantes eram colocados num desvio e o trem de luxo, por assim dizer, seguia para o Rio de Janeiro. Aí vinha o trem mineiro e acoplava os dois vagões dos migrantes e rumava para São Paulo. Pois bem, ao desembarcar do vapor, todo aquele povo era encaminhado para esse barracão e lá ficavam à guisa de cuidados do serviço de imigração, mas que na verdade cada um tinha que se manter por si mesmo. E ocorreu que exatamente nesta época, esse grupo que viajou comigo e meu pai, quando chegamos em Pirapora tivemos a triste notícia que o serviço de imigração tinha acabado com a passagem grátis e que cada um teria que vir para São Paulo com recursos próprios, embora aos cuidados do serviço de imigração. E ocorreu que o tio Doda com os seus 8 filhos, com a família e outros passageiros que vieram conosco, tinham recursos e seguiram viagem um, ou dois dias depois. Eu e o meu pai e um outro rapaz que vinha comigo, ficamos. Nós não tínhamos o dinheiro, o dinheiro que o meu pai trazia só deu para chegar até Pirapora e não tínhamos dinheiro para embarcar para São Paulo. Então o tio Doda que embarcou ficou encarregado de chegando a São Paulo e indo para Olímpia, onde morava o seu irmão, avisar ao meu tio Manoel Cunha que foi quem motivou a nossa vinda, mandar dinheiro para que eu e meu pai viéssemos, pudéssemos embarcar para São Paulo. E nós ficamos com outras pessoas, ficamos lá naquele barracão por vários dias.
Hortelina: Minha filha, é uma loucura, é um sofrimento, porque ali ninguém tomava banho, ninguém se alimentava direito na época, o dinheiro era pouco, é um sofrimento, a viagem de lá pra cá. (...) O trem estava cheio, estava lotado, é que nem mais ou menos hoje, hoje com os ônibus que vem de lá, é mais ou menos isso, o trem vinha lotado, mas tudo assim gente pobre, gente que não tinha aquela alimentação adequada pra gente.
A chegada na Hospedaria e os processos de acolhimento e assistência:
Raimundo: Desembarcamos na estação do norte, o guarda de trem juntou aquele grupo de imigrantes, ali naquela rua Dr. Almeida Lima, ele à frente e nós atrás, malas nas costas e rumamos a Visconde de Parnaíba, até aqui chegar. Isso acredito que julho ou agosto. Entre julho e agosto de 1939, já que nós saímos lá de Juazeiro em julho, começo de julho de 1939. (...) Aqui chegando, o nordestino, o migrante também era submetido a um outro sistema de triagem, antes de ser encaminhado ao interior de São Paulo. Se não era escolhido ou determinado pelo próprio serviço de imigração que escolhia a pedido dos próprios fazendeiros da época, cabia ao migrante a sua escolha desde que tivesse um parente morando no interior. Foi o caso do meu tio Sinhozinho que morava em Colina para onde o meu pai foi, onde ficamos lá uns 3, 4 meses. Aqui também nós éramos submetidos há um sistema de triagem, porque ainda, por assim dizer, existia senão aquele ranço, mas aquele preconceito, aquela crença de que o nordestino na verdade era um doente em razão da sua vida lá e teria que ser submetido a novos exames. Nós éramos, como eu falo no livro, submetidos até certo ponto vexatórios, para sermos dados como aptos para ser encaminhados para o interior. E se eventualmente algum doente existisse, lógico que o próprio serviço de migração se encarregava de encaminhá-lo para um hospital ou Santa Casa, que na época era o que existia, para o devido tratamento. Só depois de dado como apto ao serviço, ao trabalho, em via de regra, pesado, é que era encaminhado ao interior. E eu me recordo, é uma imagem que eu tenho, que aqui chegando, nós dormíamos num salão enorme, um grande salão que dava o fundo para a estrada de ferro que margeava ali o alojamento, aquele pavilhão. E eu me lembro que nós dormíamos, os homens e meninos num grande salão, e senhoras e meninas em um outro. Grande beliche, com cama dupla e eu me lembro que a gente acordava sempre bem cedo pelo barulho do trem passando ou manobrando. Eu me lembro dessa imagem como se fosse hoje. Eu sentado ali no beliche e ficava ali abismado ou até encantado com aquele movimento de trem e os apitos da máquina para lá e para cá, ou fazendo manobra, ou simplesmente passando no seu curso de viagem. Após isso éramos chamados para o café da manhã que, por sinal, era farto e até certo ponto rico. (...) Serviam bolacha, pão, pão com manteiga, bolacha de vários tipos e o almoço também e o jantar também. Até certo ponto, além de farto, principalmente levando-se em conta que para nós nordestinos, em via de regra éramos pessoas que haviam passado por várias e grandes dificuldades, até certo ponto, aquilo era muito satisfatório. (...) O que eu me lembro bem e que aliás foi a primeira vez que foi onde comi e gostei, foi exatamente na minha viagem de trem, foi o macarrão. Na viagem de trem de Minas para cá eu comi um macarrão, meu pai comprou. Durante a viagem, como o serviço de migração não supria mais as necessidades dos viajantes, cada um tinha que se virar. Então tinha o garçom, que, acredito talvez de acordo com os próprios cozinheiros, saia naquelas classes, nos dois vagões, vendendo pratos. Talvez o que sobrou na cozinha, não digo o que sobrou da mesa! Vamos ser sinceros e leais. Mas o que sobrou da cozinha, do jantar dos passageiros de 1a. classe. Então ele saia vendendo. E eu me lembro que, não sei se pela fome ou até pelo tempero, eu nunca me esqueci do macarrão que eu comi naquela viagem de trem. Só me lembro de uma tia que conseguiu fazer o macarrão igual. Quando chegava o tempo de a gente embarcar para o interior, essa viagem se fazia, em vias de regra, ao entardecer ou anoitecer. Era costume, isso eu me lembro bem, do serviço de migração pegar um saco, esse saco de pão, saco de papel e fazer o que seria um lanche, mas que na verdade, o nordestino fazia uma farofa (...) Então era feito, por assim dizer, uma matula, e quando a gente embarcava, saia daqui com aquele lanche ou aquele alimento para se alimentar a noite ou durante a viagem. Mas outros, até como foi o meu caso e de meu pai, nós chegamos em Colina, eu acho que depois no dia seguinte por volta das oito, nove, ou dez horas da manhã. Ou seja, viajamos a noite inteira. (...) O próprio nordestino era comum, mesmo no vapor ou durante a viagem carregar uma moringa, que a gente chamava "moringa d'água" ou uma coatinha que é feita de barro. É a própria moringa que é muito usada no Norte, além do pote de barro. Nos velhos tempos, lógico! A moringa que no linguajar popular também era chamada de coatinha, para manter a água fria. A água de cacimba, água de riacho, ou mesmo a água da chuva. Então era comum o nordestino trazer aquela moringa. (...) Eu fiquei aqui [na Hospedaria] mais ou menos uns 10, 12 dias. Que eu me lembre uns 8, 10, 12 dias eu acho. Até aquele período de triagem e no aguardo de embarque para o interior. Os mais velhos naturalmente, ficavam naquele trivial no seu jogo de baralho, naquelas brincadeiras próprias dos adultos, jogo de damas, enfim. Agora as crianças faziam as suas peraltices naquele pátio. (...) A saída para rua era proibida. Existia uma fiscalização, ninguém saia. Os migrantes que aqui chegavam não podiam sair, senão acompanhados para embarcar. Éramos uns verdadeiros internos! Do adulto a criança.
Lauro José: É, então eu vim pela imigração [Hospedaria]. E eu sendo novo ainda vim com 18 famílias e sendo chefe de tudo. O cabeça da imigração estava na frente e eu atrás tocando a turma. Na escada rolante eu perdi o sapato, parou, eu empurrei ele, foi quando tirei o pé, a escada me pegou o pé e tirou o sapato, quase me pegou o pé e joguei ele lá na frente. Quase ele me deixou aleijado. O bicho parou, parou o movimento de condução na cidade, bicho besta, nunca tinha andado (risos). (...) Nós chegamos lá era cinco horas de cedo, quando foi no dia, sete horas nós viemos embora pra aqui. (...) A boia era boa, no dia que viemos embora deram pra mim um pacote deste tamanho (risos). O baiano dizia "não vou comer isso aqui não, que isso aqui é carne de gente" - "deixa de ser besta, palhaço", dizia que era carne de gente. (...) Era tudo limpo, até pra pegar as comidas tudo era de fila, pegava, vamos supor, a gente vinha ali, pegava a boia aqui e saia rodando assim. (...) O dormitório era embaixo. De cinco e seis, um ia embaixo outro em cima até chegar. De lá pegamos lá outro trem pra vir pra cá. Já de lá de São Paulo veio escalado pra parar em Oriente. Nós fomos trabalhar na Usina.
Sobre o encaminhamento:
Raimundo: Como eu disse antes, quem tinha parentes aqui tinha até direito de escolher, mas os que não tinham era o próprio serviço de migração que escolhia e obrigatoriamente dizia aquele grupo: “vocês vão para Marília, vocês vão para Bastos, vocês vão para Araraquara, para aquelas cidades mais”, onde o cultivo do café e depois do algodão era mais intenso. Ou senão onde as matas a serem derrubadas, porque na verdade, naquela época, embora se dissesse que o migrante vinha para a agricultura, era para serem colonos, como foram os italianos, como foram os europeus. Os nordestinos também iam como para serem colonos e se abrigarem nas mesmas casas de colonos, onde se abrigaram nos velhos tempos os europeus. Isso os que não tinham parentes. Mas os que eram grandes famílias, grandes grupos, era o serviço de migração que destinava "você vai para tal lugar e vai trabalhar em tal fazenda", muito mais para desmatar as grandes glebas que dariam lugar ao cultivo do café e depois do algodão, do que propriamente como agricultor.
Antônia: A chegada me assustou um pouco, era o mês de maio, chuvoso, naquela época tinha muita garoa, onde eu senti até o nariz gelado. Chegamos a noite ali no Brás, já havia um certo lugar onde aqueles caminhões paravam e os viajantes, vamos dizer assim, desciam e dali cada um tomava o seu rumo. O meu rumo foi muito bom porque eu me assustei só na chegada por estar muito frio e sem agasalho, porque lá nós não usávamos agasalho, é muito calor, e eu senti um pouco de frio. Mas o meu noivo que estava ao meu lado já pegou um táxi e já foi direto até a casa dele. Ele já tinha casa aqui, residia com a mãe e com outras irmãs. E ali foi onde eu fiquei em Vila Carrão, o primeiro local de onde eu sai quando descemos do caminhão. Eu fiquei morando uns 6 meses ali na própria casa do meu noivo, depois então a mamãe teve um encontro com o meu irmão e daí alugamos outra casa e fomos morar no Carrão também, ali em Vila Carrão.
As primeiras impressões e adaptações:
Antônia: Ah o frio foi demais, foi o que eu mais estranhei pelo fato também de não ter bons agasalhos. Logo depois, é lógico, a mamãe e meu noivo me compraram agasalho e aquele frio já foi acostumando. Mas voltando sobre o que nós falamos das pessoas do interior, ou seja, do Norte, enfim a capital, eu achei muita frieza, parecia que ninguém via ninguém ao transitar na rua, ninguém se cumprimentava. Eu estranhei muito isso porque lá na cidade onde eu morava, para você ter ideia, nós nos tornávamos uma família, que quando um ia viajar ou sair daquela cidade, era uma choradeira tremenda, e choravam e passavam a noite ali. Uma noite antes da viagem, como aconteceu com a nossa viagem, os amigos, os vizinhos, se juntavam ali na casa e ali era aquela coisa “que saudade”, “já estou sentindo saudade”, “vai com Deus e que Deus abençoe”, “que vocês sejam bem sucedidos mas que não esqueçam de nós” e choravam muito, muito mesmo. E quando chega em um lugar encontra todo mundo frio, ninguém fala com ninguém então estranhei bastante mesmo. Mas depois que comecei a trabalhar, enfim, a estudar também aí arrumei novos amigos e já acostumei logo em São Paulo. E digo de coração aberto com todo o meu sentimento, eu amo essa cidade, eu amo São Paulo. Se me falassem “você quer voltar a morar lá em Pernambuco?”, eu diria que não. Porque depois eu tive a oportunidade, quando eu estava com 27 anos voltei e achei muito diferente.
Hortelina: [Estranhava] Tudo, tudo. (...) Frio, minha filha, quando chegava o frio a gente não tinha agasalho suficiente, chuva na época, chovia, era a São Paulo da garoa. E uma vez eu me lembro, eu fui comer um pastel na Vila Prudente na feira, a minha cunhada, a minha futura cunhada Carlazinha, eu escondida dela, joguei o pastel no lixo, eu achei horrível aquele pastel. E hoje eu adoro comer um pastel. Eu estranhei tudo, as comidas... só uma comida que a minha sogra fazia que todo mundo gostava, era o feijão. As filhas dela mesmo falam, nenhuma filha dela fazia um feijão temperadinho igual ao da minha sogra. Mas eu estranhei tudo, a conversa deles, meu marido arrasta um ‘r’ até hoje, ele chama “socorro”, arrasta assim um ‘r’, “interiorrr, interior”. (...) Eu só não voltei porque eu estava com o meu pai, minha mãe, meus irmãos, então segura mais a gente, mas dá vontade no outro dia voltar e ir embora pra minha terra.
Estes foram alguns relatos selecionados para exemplificar parte das questões analisadas nos textos da nossa série. Cada narrativa, sob a forma de história oral, reafirma alguns dos fatos que tentamos investigar ao logo das semanas pelos textos – ainda que exista muito mais para se entender e pensar de forma crítica sobre os deslocamentos no país.
As entrevistas completas e outros relatos de história oral, tanto de brasileiros quanto estrangeiros, podem ser encontrados em nosso acervo. Acesse!