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Hospedaria de Histórias: O migrante italiano amigo do papa
Por Henrique Trindade
Neste ano, retomamos a série "Hospedaria de Histórias", que contará com um texto por mês, sempre na última quinta-feira.
A iniciativa tem como objetivo discorrer sobre assuntos relacionados à história das migrações no Brasil, que se conecta com a trajetória das Hospedarias de Imigrantes de São Paulo. Por aqui, serão apresentados serviços da hospedaria, funcionários, explicações sobre as chegadas de grupos de migrantes em contextos específicos, episódios singulares e personagens. E o tema do primeiro material de retorno é, justamente, sobre personagens.
Em maio de 1887, a família Borsatto chegou no Brasil e foi matriculada na Hospedaria de Imigrantes do Bom Retiro. Estavam em várias pessoas, característica comum entre os migrantes italianos que viajavam ao Brasil no final do século XIX. O homem mais velho, designado como "chefe" da família, prática usual nos registros da Hospedaria, se chamava Guglielmo Borsatto e tinha 50 anos. Junto com ele, a esposa, seis filhos, irmão, cunhada e cinco sobrinhos.
Assim como outros milhares de migrantes que chegaram a São Paulo no mesmo período, Guglielmo e família tiveram como destino os cafezais do interior do estado paulista. Esse deslocamento pode ser pensado em termos mais genéricos, como a situação econômica na Itália e as razões pelas quais o Brasil queria atrair mão de obra abundante e europeia. A passagem deles pela Hospedaria, em meio a tantas outras, ajuda a compor estatísticas migratórias e avaliar perfis demográficos entre essa população. Mas será que é só isso? Esse é o único detalhe que um registro de matrícula pode nos contar?
Em agosto de 1914, o papa Pio X, italiano, faleceu. Obviamente, a imprensa brasileira noticiou extensamente o fato, comentou sobre as causas da morte, ponderou sobre as opções do conclave e descreveu as preparações para o funeral. No dia 23 de agosto, o jornal Correio Paulistano publicou uma nota com o título "Um amigo de infância de Pio X"[1]. Abaixo, uma transcrição do informe:
"Reside nas circunvizinhanças de Ribeirão Preto um ancião de 77 anos, que foi companheiro de infância de Pio X, na cidade natal do falecido pontífice.
A pessoa de que se trata é natural de Veneza e chama-se Guglielmo Borsato. Frequentou a aula primária com Giuseppe Sarto, aquele que, apesar de muito humilde, dirigiu os destinos da Igreja.
Guglielmo Borsato, há cerca de alguns meses, escreveu a Pio X, recordando os tempos infantis. O pontífice, segundo nos dizem daquela cidade, respondeu imediatamente.
Borsato tem trabalhado na lavoura e, quando recorda os tempos das suas relações com o finado pontífice, manifesta a mais viva comoção."
O relato é muito interessante e, a partir dele, podemos tecer alguns breves comentários. O primeiro diz respeito à veracidade da informação. Será que o camponês que passou pela Hospedaria em 1887 era mesmo amigo de infância do papa? O exercício de indagar a fonte é fundamental em uma pesquisa histórica. Nesse caso, a notícia cita que Guglielmo é natural de Veneza, mas sabemos que o papa Pio X tem como origem a província vizinha, Treviso, mais especificamente o comune de Riese.
Utilizando recursos tecnológicos e bancos de dados on-line, é possível descobrir, por exemplo, que os sobrinhos homens de Guglielmo, também foram acolhidos na Hospedaria, estão incluídos na plataforma digital do Archivio di Stato di Treviso, que possui transcrições de alguns registros de caráter militar. A documentação apresenta que eles nasceram em Riese, província de Treviso, ou seja, na mesma cidade do pontífice.
Outra questão que podemos levar em consideração é a troca de cartas entre o papa e o seu amigo de infância, Guglielmo. Nesse caso, não temos acesso ao arquivo de correspondências de Pio X, o jornal não a publicou e, também, não conhecemos algum arquivo ou parente dos Borsatto que conservou o documento. No entanto, sabemos que Pio X tinha as suas preocupações com relação à vida paroquial e devocional de migrantes italianos no Brasil. Em 1887, ano em que a família Borsatto migrou, quando era ainda bispo de Mântua, ele proferiu algumas palavras para 300 paroquianos de Castelberforte, que estavam prestes a partir para a "América"[2]:
"Eu aconselho, oh, filhinhos, a conservar a fé que no Santo Batismo recebestes, a praticar a religião e providenciar, mesmo distantes, os únicos meios que podem aliviar e tornar suportáveis as misérias da vida. Antes da partida, eu peço que vos apresenteis diante de vosso pároco, com o qual, além dos conselhos e lembranças, obtereis algumas cópias do Catecismo Diocesano, algum livrinho de devoção (...)."
E, em outra ocasião, acrescentou[3]:
"Como a meta à qual se dirigem nossos emigrantes é o Brasil, será conveniente dizer a eles que esse império é um dos mais vastos da Terra (...); para um território tão vasto e para uma colheita tão rica, são bem poucos os bispos e sacerdotes, pelo qual será uma grande sorte se os nossos pobrezinhos, longe dos centros, puderem talvez algumas vezes no ano ir à Santa Missa, receber os Sacramentos, e um em cada cem terá os confortos da fé antes de passar para a outra vida (...)."
As citações mostram, a princípio, que o futuro pontífice demonstrava certa aflição diante do cenário migratório em direção ao Brasil. Nesse sentido, é plausível imaginar que tivesse curiosidade em saber as condições de vida dos italianos em terras brasileiras. Receber uma carta de um conterrâneo e amigo de infância pode ter incutido em Pio X o desejo de enviar uma resposta e conhecer mais detalhes sobre o cotidiano de Guglielmo e família.
Enfim, esse exemplo demonstra que é possível analisar a história por diversas perspectivas. Muitas vezes observamos os registros de matrícula na Hospedaria como sendo úteis, apenas, para pensarmos em estatísticas migratórias e demografia. Esses estudos são fundamentais para a compreensão da história das migrações no Brasil. E a mesma importância recai nas pesquisas que enfatizam aspectos políticos e macroeconômicos associados à decisão do migrar. Mas a história também pode ser apreciada por outros ângulos.
As matrículas não representam só uma quantidade ou uma data de chegada. Essas pessoas tinham uma trajetória de vida nos seus países de origem e estabeleceram outros rumos nos destinos. Descobrir as relações existentes entre migrantes e aqueles que ficaram, o seu universo cultural, o cotidiano e a mentalidade nos auxilia a compreender melhor não só o que eles viveram, mas também a própria história das migrações para o Brasil. Diversificar as fontes de pesquisa e os ângulos de observação da história são ações determinantes para a construção de um novo e melhor conhecimento sobre aqueles que estiveram aqui antes de nós e ajudaram a compor o mundo em que vivemos.
Referências
[1] Jornal Correio Paulistano, 23 de agosto de 1914. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
[2] FRANZINA, Emilio. A Grande Emigração: O Êxodo dos Italianos do Vêneto para o Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. p. 408.
[3] Ibid. p. 409.