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Se as estátuas pudessem falar: O trabalho de conservação do patrimônio da migração em São Paulo
Eloisa Galvão -- Analista de Conservação do Museu da Imigração [1]
O termo “conservação” no âmbito da preservação do patrimônio [2] pode ser compreendido como um conjunto de esforços que visa prolongar ao máximo a existência de bens materiais e imateriais [3], a partir de intervenções conscientes e controladas no ambiente externo ao objeto/ou diretamente sobre o mesmo [4]. No entanto, é importante elucidar que o desenvolvimento de práticas conservativas em museus consiste em um estudo interdisciplinar junto às chamadas ciências do patrimônio [5], que contribuem para a compreensão, gerenciamento e comunicação da História expressa através da paisagem, de edifícios e/ou objetos.
Este artigo pretende apresentar os estudos realizados sobre as duas estátuas que ornamentam o jardim do Museu da Imigração, contribuindo na difusão de informações que poderão nortear o trabalho de conservação-restauro dos itens [6], bem como outras atividades desenvolvidas por técnicos da instituição, pesquisadores e público em geral.
Localizadas desde a década de 70, na área central do jardim, junto à fonte de água, as estátuas fabricadas pela empresa franco-alemã Villeroy & Boch, integram parte do patrimônio da migração em São Paulo, a partir de dois aspectos interpretativos:
a) O tombamento do complexo histórico da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás (1887-1978) nas instâncias municipal (CONDEPHAAT, 1982) e estadual (CONPRESP, 1991) abarcando em sua totalidade a edificação, o terreno com seus jardins, bem como o arquivo histórico e a biblioteca remanescentes dos serviços oferecidos no local [7]
b) A musealização sistemática do “edifício-símbolo” [8], compreendido enquanto acervo ao longo do processo de atribuição de novos sentidos ao patrimônio da migração [9] que perpassa toda a memória institucional do atual Museu da Imigração.
Os primeiros registros acerca das estátuas datam por volta de 1900, mais de dez anos após a inauguração da nova Hospedaria de Imigrantes (1887). Como era comum às construções da época, as estátuas estavam localizadas na platibanda do edifício principal:
Ocupa um vasto prédio de tijolos com dois pavimentos e constituído por três corpos salientes, sendo dois nas extremidades e um no centro, e dois reentrantes [10].
Observando a forma das estátuas nos registros até 1935, é possível identificar à esquerda a alegoria da Agricultura [11] [12] e à direita, a alegoria das Artes e Ofícios. Curiosamente, em posição invertida se comparada a atual localização das mesmas no jardim do Museu.
A partir de 1936, com a grande reforma que altera a fachada da Hospedaria, as estátuas deixam de ocupar a parte superior do edifício e são transferidas para os canteiros laterais do jardim.
Neste momento, deixamos de ter registros da terceira estátua (não identificada), antes localizada no centro da platibanda. Não é possível saber ao certo o que teria acontecido com a mesma, o mais provável é que tenha sofrido algum dano ao ser transportada até o chão ou foi encaminhada a outro edifício pertencente ao poder público.
As estátuas da Villeroy & Boch eram produzidas em terracota, com possível revestimento de esmalte estanífero branco [13], carregando consigo a rubrica “Villeroy & Boch”, com algumas variações. Como é o exemplo, a alegoria da Agricultura pertencente ao Museu da Imigração, que possui o local de produção da peça “Merzig”.
A cidade de Merzig (Saar), na Alemanha, é conhecida como a sede do ateliê de terracota da Villeroy & Boch desde 1879, quando a empresa realizou a aquisição e modernização da antiga fábrica de faiança de Merzig. Dirigido pelo professor e escultor Alexander Schimidt, o setor de produtos esculturais chegou a abarcar mais de quarenta artistas entre 1879 e 1900 [14].
Apesar da Villeroy & Boch produzir peças únicas que não apareciam em catálogos, é possível que os adornos construtivos fossem uma exceção, uma vez que é possível encontrar figuras seriadas, iguais à alegoria da Agricultura, em pelo menos dois outros locais de memória, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Outro exemplo, é o anjo monumento funerário Kraemer, localizado no cemitério São José I, em Porto Alegre, que apresenta o número de série, da produção, bem como a data [16].
Há ainda fornecedores brasileiros que realizavam a importação destes materiais [17], como a Bins & Friederichs, em Porto Alegre e o grande depósito de ladrilhos, mosaicos, azulejos e oficina de mármore de Emanuele Cresta & C., na cidade do Rio de Janeiro [18].
A partir da perspectiva apresentada até aqui, o acervo da Villeroy & Boch no Museu da Imigração deve ser compreendido enquanto instrumento de comunicação, que se relaciona com o seu entorno e não existe sem o lugar, pois está imbricado ao espaço geográfico [19], tendo acompanhado a trajetória dos milhares de migrantes nacionais e internacionais que passaram pela Hospedaria, bem como as diversas fases de ocupação da mesma.
Para a conservação-restauro o estudo possibilita ainda aprofundar a documentação sobre os itens, abrindo a possibilidade pesquisas físico-químicas para averiguação dos compostos materiais, além de permitir uma melhor compreensão da obra como um todo, a partir de referências estéticas e imagéticas do período de produção, possibilitando a partir de diversas possibilidades narrativas a restituição de peças faltantes nas peças ou ainda a produção de réplicas.
Referências e notas
[1] O processo de pesquisa não é algo desenvolvido sozinho, por isso, gostaria de agradecer todos os conhecimentos compartilhados a acerca dos acervos por parte da arquivista, Gabriela Gentil e da documentalista, Luciane Santesso. Bem como dar crédito ao trabalho de tradução de publicações em alemão realizado pela bibliotecária Mayara Ferreira Aranha.
[2] Para as ciências do patrimônio, a preservação consiste em uma política que estabelece os procedimentos e critérios de aquisição do patrimônio material e imaterial, bem como todas as demais operações dentro do circuito de musealização: a entrada, o inventário, a catalogação, o acondicionamento, a conservação seja ela preventiva e/ou curativa e, se necessário, restauro do bem cultural em questão.
[3] O aspecto imaterial é parte integrante do patrimônio cultural, estando ligado à um suporte material único e insubstituível que carrega consigo um referencial simbólico construído socialmente e espacialmente. São estas duas instâncias que fazem um bem cultural ser reconhecido como patrimônio, contribuindo assim, para sua preservação.
[4] Froner, Yacy-Ara, 1966 – Preservação de bens patrimoniais: conceitos e critérios / Yacy-Ara Froner, Luiz Antônio Cruz Souza – Belo Horizonte: LACICOR – EBA – UFMG, 2008, p.3 – (Tópicos de conservação preventiva; 3).
[5] As Ciências do Patrimônio consistem em um campo de trabalho que abarca as ciências humanas, naturais e aplicadas, com o objetivo de ampliar a compreensão e valorização do Patrimônio Cultural, através do uso ou do desenvolvimento científico.
[6] O trabalho de conservação desenvolvido pelo Museu da Imigração visa identificar, avaliar e detectar agentes de risco, a fim de evitar perda material e/ou informacional, bem como a necessidade de intervenções restaurativas que deverão ser realizadas quando estritamente necessárias. Para tanto, compreende o trabalho de pesquisa e documentação museológica como norteadores e parte importante das ações de conservação-restauro, pois precedem toda e qualquer ação sobre o bem.
[7] Durante a pandemia de COVID-19, a dinâmica do bairro e a paisagem sofreram alterações com a construção de condomínios residenciais. A arquitetura não se relaciona com a estrutura e nem com a história da região, portanto, vê-se a descaracterização do entorno de um patrimônio tombado. O Coordenador de Infraestrutura, César Pimenta, esclareceu que o tombamento não se restringe apenas ao imóvel em si, mas abarca as vias adjacentes ao Museu até a rua Piratininga, no Brás - cujas atividades existentes, relações cotidianas e os espaços de sociabilidade tangenciam a Hospedaria de Imigrantes entre 1886 e 1978.
[8] EXPOMUS; MUSEU DA IMIGRAÇÃO. Plano Museológico do Museu da Imigração. São Paulo, revisado, 2021, p.12.
[9] PAIVA, Odair da Cruz. Museus e memória da imigração: embates entre o passado e o presente. In: PAIVA, Odair da Cruz; LEAL, Elisabete. (Org.). Patrimônio e História. Londrina: Unifil, 2014, p. 163.
[10] PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900. 2. Ed. São Paulo, Governo do Estado, 1979, p.91-92.
[11] FONTAINE, Arthur. Der englische Coade-Stein - die Villeroy & Boch "Terrakotta": Mit Exkursen zu Martin Klauser nach Weimar und Friedrich Schinkel nach Berlin. Norderstedt: BoD - Books on Demand, 2019.
[12] A mesma figura aparece representada na publicação (FONTAINE, 2019, p.180 e 187), denominada como “Ackerbau” (Agricultura), cuja criação está associada ao Prof. Friederich Rentsch, da cidade de Dresden, Alemanha.
[13] O esmalte estanífero consiste em um líquido vidrado composto por chumbo, estanho e uma determinada quantidade de areia e sal – podendo conter outros produtos. Comumente utilizado em peças de terracota e faiança, com o intuito de criar uma cobertura branca não porosa, antes da aplicação de decorações.
[14] FONTAINE, Arthur. Der englische Coade-Stein - die Villeroy & Boch "Terrakotta": Mit Exkursen zu Martin Klauser nach Weimar und Friedrich Schinkel nach Berlin. Norderstedt: BoD - Books on Demand, 2019, p.187.
[15] Disponível em: https://www.villeroyboch-tr.com/history. Acesso em: 13 de dezembro de 2023.
[16] CARVALHO, Luiza Fabiana Neitzke de. História e arte funerária dos cemitérios São José I e II em Porto Alegre (1888-2014), 2015, p.357-358.
[17] Segundo a Villeroy & Boch, as primeiras remessas de produtos exportados para a América do Norte e América do Sul ocorre pela primeira vez em 1850.
[18] FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). BNDIGITAL: Jornal do Commercio (RJ) -1880 a 1889. Rio de Janeiro. Edição 00085. Ano 1888. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_07&pesq=Villeroy%20e%20Boch&pasta=ano%20188&hf=memoria.bn.br&pagfis=19982. Acesso em: 7 de dezembro de 2023.
[19] CARVALHO, Léa Therezinha Alves de. O Espírito do Lugar: Articulações entre patrimônios na paisagem edificada do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, p.43.