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Museus e Direitos humanos: reflexões a partir do workshop internacional “Espaços de memória e cultura: cidades, direitos humanos e futuros sustentáveis”
Há mais de 70 anos surgia a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nesse documento se refletia a intenção de impor limites às violações de direitos, impostas durante as guerras do início do século XX. A partir desse marco, alguns museus europeus passaram também a documentar e expor o “sofrimento humano”[1] gerado por essas guerras, com o fim de constituir memórias que refreassem um próximo ciclo de investida contra a dignidade humana. O vínculo entre museus e direitos humanos, então, na forma como o concebemos hoje, remonta a esse momento específico do século passado. Nos anos 1990, os direitos humanos voltariam a ser intensamente debatidos, num contexto de reconhecimento das diferenças culturais e de questionamento da universalidade dos valores veiculados pela declaração de 48. Esse debate se refletiria nos espaços museológicos, principalmente na incorporação do multiculturalismo enquanto princípio.[2]
Mas, se há mais de 70 anos se discute os direitos humanos em espaços museológicos, por que retomar mais uma vez esse debate? O que há de novo? Essas e outras questões estiveram em pauta durante o V Workshop Internacional Espaços de Memória e Cultura: Cidades, Direitos Humanos e Futuros Sustentáveis, realizado entre os dias 1 a 6 de julho de 2019, uma parceria entre o Museu da Pessoa e o SESC. O Museu da Imigração esteve presente e traz neste texto algumas reflexões decorrentes do encontro.
Desde a declaração de 1948, a linguagem universalista dos direitos humanos traz um espectro bastante abrangente de questões. Essa abrangência, por um lado, oferece ferramentas para o combate das mais diversas violações de direitos. Por outro, coloca a necessidade de se adequar aos contextos locais e se atualizar constantemente. Em momentos de transformações intensas como a que vivemos atualmente, essas atualizações se mostram ainda mais urgentes. As tecnologias digitais, por exemplo, trouxeram novas formas de interação humana, gerando novos desafios desconhecidos anteriormente. Na ainda mal compreendida “polarização” das redes sociais, assuntos que envolvem direitos são utilizados para organizar polos em disputa. Lidando muitas vezes com temas que envolvem a dignidade humana – como o direito a migrar, no caso do Museu da Imigração – essas dinâmicas requerem uma reavaliação do papel que as instituições têm nesse ambiente comunicacional, e a busca pelas melhores estratégias de abordagem.
Por estarem imersos nessas dinâmicas comunicacionais e políticas, os Museus nunca poderão ser espaços neutros. Expostos às distintas visões de mundo, às demandas dos mais variados setores da sociedade, sempre estarão agindo nesse ambiente, propondo modos de entender o mundo e de nele agir. Nesse movimento, essas instituições, conscientes ou não, atuam na maior visibilidade de algumas formas de memória, em detrimento de outras. É nesse sentido que trabalhar pela perspectiva dos direitos humanos envolve atentar-se às memórias silenciadas e trazer para a discussão também os “traumas” nacionais mal resolvidos. Para isso, os Museus têm à disposição diversas estratégias como: incluir determinados temas nas suas práticas curatoriais, assumir políticas internas reconhecendo exclusões históricas (racial, de gênero, nacionalidade), convidar defensores de direitos humanos para realizar atividades e fomentar atividades artísticas. Na tradição ocidental, foi reservado à arte o papel de explorar limites simbólicos e as tensões silenciadas cotidianamente. Junto a artistas e demais agentes culturais, os Museus se capacitam cada vez mais a explorar esses limites.
“Museus são bons em cuidar de objetos e de pessoas”.[3] A frase surgiu em uma das palestras do Workshop em questão. Ela expressava o fato de que, enquanto instituições que lidam com o patrimônio, Museus são lugares onde podemos ter a expectativa de ter preservadas nossas memórias coletivas. Essas memórias ajudam a constituir nossos seres, nosso passado, presente e futuro. Por outro lado, a partir de inúmeras práticas e estratégias, Museus também podem funcionar como um lugar para aberturas, um lugar seguro para a promoção de debates sobre “traumas” nacionais e reativação de memórias sistematicamente silenciadas. O incêndio do Museu Nacional[4] é um exemplo da conjuntura atual, em que perdemos nossa memória, tendo pilares da nossa história queimada.
Em uma conjuntura como essa, onde museus queimam, é ainda mais que urgente uma perspectiva de direitos humanos sobre museus. É a partir dela que talvez possamos abrir novas discussões sobre o que queremos constituir como memória, como e para quem.
[1] O termo foi cunhado por Terence Duffy em um artigo para a UNESCO. Para mais informações ver em Duffy, T. (2001) ‘Museums of ‘human suffering’ and the struggle for human rights’, Museums International 53 (1)10-16
[2] Ver por ex. a 19ª Resolução da Assembleia Geral do ICOM.
[3] A frase surgiu de uma referência a obra Panda to Panda (2015) do artista plástico Ai Weiwei e o jornalista Jacob Appelbaum. Nessa obra, os artistas enxertaram dezenas de pandas com memórias micro sd, que continham informações secretas do governo norte americano, vazadas por Edward Snowden.
[4] No dia 02 de setembro de 2018, um incêndio no Museu Nacional queimou o edifício de valor histórico da instituição e avançou sobre a sua coleção de mais de 20 milhões de itens. Todavia não se sabe ao certo quanto desse acervo foi queimado (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/04/o-que-se-sabe-sobre-o-incendio-no-museu-nacional-no-rio.ghtml).