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Quem entra no Brasil? - As restrições regulamentadas - o Decreto nº 3.010, de 20 de agosto de 1938
Em 20 de agosto de 1938, foi publicado o Decreto nº 3.010, assinado pelo então presidente, Getúlio Vargas, dispondo sobre a entrada de estrangeiros no território nacional[1]. Importante lembrar que em 1938 já vigorava no Brasil o período que ficou conhecido como Estado Novo, de caráter ditatorial e que, entre outras considerações, passou a tratar a imigração como um problema de ordem nacional.[2]
Esse Decreto tem uma importância especial para quem procura informações e documentos sobre antepassados estrangeiros no Brasil e, em algum momento da pesquisa, soube da existência do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE ou, muitas vezes, chamado de modelo 19). Isso porque foi por meio desse instrumento legal que o RNE foi instituído e conhecer o teor deste Decreto diz muito sobre sua criação.
Seus dois primeiros artigos já evidenciam o caráter restritivo e discriminatório vigente no período:
Art. 1º Este regulamento dispõe sobre a entrada e a permanência de estrangeiros no território nacional, sua distribuição e assimilação e o fomento do trabalho agrícola. Em sua aplicação ter-se-à em vista preservar a constituição étnica do Brasil, suas formas políticas e seus interesses econômicos e culturais.
Art. 2º O número de estrangeiros de qualquer nacionalidade admitidos anualmente no Brasil em carater permanente não poderá exceder a quota fixada neste regulamento.[3]
Assimilação, preservação da constituição étnica do Brasil, suas formas políticas e interesses culturais: eis os objetivos desse regulamento com relação aos estrangeiros fixados ou que viriam a desembarcar no Brasil. Em artigo publicado no jornal A Manhã, no dia 05 de novembro de 1943, cujo título era "Imigração e colonização ontem e hoje", Oliveira Viana[4] defendia a legislação migratória da Era Vargas pois, segundo ele, se preocupava com a "qualidade" do imigrante.[5] Além disso, segundo Viana, era necessária a promoção da integração dos imigrantes na sociedade brasileira para que deixassem de ser considerados uma ameaça à homogeneidade nacional. Para isso, as medidas sugeridas pelo autor eram:
"- O número de brasileiros natos deveria ser maior que o número de estrangeiros nos núcleos coloniais.
- A formação dos núcleos deveria ser etnicamente heterogênea, ou seja, com a presença de imigrantes de diversas nacionalidades e, claro, brasileiros. Assim sendo, a comunicação entre essas pessoas só poderia se realizar com a utilização da língua portuguesa.
- Os brasileiros deveriam ser direcionados especialmente para os núcleos em que preponderavam etnias não latinas, como as germânicas, eslavas e principalmente as asiáticas.
- Nacionalizar as escolas dos núcleos coloniais."[6]
Esse tipo de pensamento não era novidade no país. Já no início da década de 1930, com base em argumentos racistas e eugenistas, o governo brasileiro vetou a concessão de diversos vistos para negros, judeus, ciganos e japoneses.[7] Mais uma vez, para algumas autoridades brasileiras, esses grupos eram indesejáveis pois poderiam "desfigurar" ou "desnaturalizar" a população brasileira.[8] Com base em visões estereotipadas sobre essas populações, o governo brasileiro trabalhou em prol de um controle rígido de entrada, em que os diplomatas brasileiros no exterior realizavam a primeira filtragem e, no Brasil, a fiscalização estava a cargo do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores, por meio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), a polícia política brasileira.[9]
Outros artigos do Decreto que chamam a atenção se referem à preferência por agricultores, sendo que 80% da cota anual de cada nacionalidade deveria ser preenchida com trabalhadores para o campo, e à restrição à entrada de pessoas com deficiência em caráter permanente:[10]
Art. 38. Não será aposto o visto si o estrangeiro não satisfizer as exigências dos artigos anteriores; for aleijado ou mutilado, inválido, cego, surdo e mudo; for inadmissível em território nacional a juízo da autoridade consular; apresentar passaporte viciado; tiver sido anteriormente expulso do Brasil, salvo si já revogado o ato de expulsão; ou si a autoridade consular tiver conhecimento de fatos ou razoável motivo para considerá-lo indesejável.
Parágrafo único. As condições relativas a lesões orgânicas - insuficiência funcional, aleijão (deformidade) ou mutilação, invalides, cegueira, surdez, mudez - serão dispensadas si o estrangeiro vier ao Brasil em caráter temporário.
Art. 114. Serão, também, impedidos de desembarcar, ainda que com o visto consular em ordem, os estrangeiros vindos como permanentes:
I, aleijados ou mutilados, inválidos, cegos, surdos-mudos;
II, atingi os de afecção mental;
III, que presentem lesões orgânicas com insuficiência funcional, que os invalide e para o trabalho.
Parágrafo único. Os impedimentos referidos neste artigo serão opostos pela Saúde.
Art. 163. Os estrangeiros que, na vigência deste regulamento, entrarem no país em caráter temporário e nele desejarem permanecer mais de seis meses ou exercer atividade remunerada, quando a isso não estiverem autorizados, deverão requerer ao Serviço permissão nesse sentido, mediante apresentação de:
I) carteira de identidade (modelo n. 19), e folha corrida;
II) passaporte e toda a documentação consular;
III) atestado negativo de antecedentes penais do país de origem, visado pela autoridade consular brasileira respectiva, reconhecida a firma desta no Ministério das Relações Exteriores;
IV) atestado de boa conduta passado pela Delegacia de Ordem Política e Social local;
V) atestado da Saúde Pública, provando:
a) não ser aleijado ou mutilado, incapaz para o trabalho, inválido, cego, surdo, mudo;
b) não apresentar lesão orgânica que invalide para o trabalho;
c) não sofrer ou apresentar manifestações do moléstias infectocontagiosas graves, lepra, tuberculose, tracoma, elefantíases, câncer, e doenças venéreas em período contagiante;
d) não sofrer de afecção mental;
e) ter sido vacinado contra a varíola e contra quaisquer outras doenças em que, a juízo da Saúde Pública, a vacinação seja indicada.
Esses trechos deixam evidentes as características impostas pelo Brasil no que diz respeito aos estrangeiros que desejassem (re)construir suas vidas por aqui. Não havia espaço para aqueles que, na visão do Estado, não pudessem trabalhar, gerassem gastos ou não tivessem uma conduta moral considerada adequada.
Maria Luiza Tucci Carneiro assim resumiu estes entraves colocados pelo governo brasileiro em relação à entrada de estrangeiros:
Os judeus eram acusados de promoverem a guerra, os negros, de contribuírem para o atraso do Brasil e os japoneses, de serem "inassimiláveis como enxofre", por viverem enquistados dificultando a assimilação.[11]
No próximo artigo, discutiremos, então, o antissemitismo na Era Vargas e como se deu o processo migratório de judeus para o Brasil na década de 1930.
Referências bibliográficas
[1] Por meio deste Decreto foi regulamentado o Decreto-lei n. 406, de 4 de maio de 1938.
[2] BUENO, M. Alexandre. O Estado Novo e sua relação com os imigrantes: a língua como defesa dos valores nacionais. Estudos Semióticos. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es. Editor Peter Dietrich, Número 4, São Paulo, 2008. Acesso em 28/10/2020.
[3] Decreto nº 3.010, de 20 de agosto de 1938. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-3010-20-agosto-1938-348850-publicacaooriginal-1-pe.html.
[4] Professor, jurista, historiador e sociólogo brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras.
[5] BUENO, M. Alexandre. O Estado Novo e sua relação com os imigrantes: a língua como defesa dos valores nacionais. P.
[6] Idem.
[7] CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imigrantes Indesejáveis: a ideologia do etiquetamento durante a Era Vargas. Revista USP 119. Disponível em: https://jornal.usp.br/revistausp/revista-usp-119-textos-8-imigrantes-indesejaveis-a-ideologia-do-etiquetamento-durante-a-era-vargas/#:~:text=A%20TEORIA%20DO%20ETIQUETAMENTO,%2C%20ciganos%2C%20negros%20e%20japoneses. Acesso em 27/10/2020.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Decreto nº 3.010, de 20 de agosto de 1938. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-3010-20-agosto-1938-348850-publicacaooriginal-1-pe.html.
[11] CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imigrantes Indesejáveis: a ideologia do etiquetamento durante a Era Vargas. Revista USP 119. Disponível em: https://jornal.usp.br/revistausp/revista-usp-119-textos-8-imigrantes-indesejaveis-a-ideologia-do-etiquetamento-durante-a-era-vargas/#:~:text=A%20TEORIA%20DO%20ETIQUETAMENTO,%2C%20ciganos%2C%20negros%20e%20japoneses. Acesso em 27/10/2020.