Blog

Share
Quem entra no Brasil? - Introdução
Hoje estreia a nova série de textos desenvolvida pela equipe do Museu da Imigração: "Quem entra no Brasil?". Essa série tem como objetivo discutir como se deu a entrada de migrantes no país ao longo do tempo – mais especificamente desde o contexto de inauguração da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás até a atualidade – e desconstruir a ideia geral de que esse processo se deu de forma livre e natural. Discutiremos questões históricas em torno dos perfis de migrantes desejados e indesejados e sobre como isso repercute nos dias de hoje, tanto pela perspectiva do imaginário quanto dos entraves legais para a permanência dos mesmos no país. Trabalharemos também com a figura do migrante, seja nacional ou estrangeiro, e seus inúmeros estereótipos e preconceitos.
Para iniciar esta conversa, é fundamental compreender a existência do conceito de migração desejável e indesejável que permeou toda a história dos processos migratórios no país, variando de acordo com projetos de nação específicos de cada período e suas propostas de governo. A história da Hospedaria do Brás é um ponto exemplar dessas transformações e é com ele que iniciaremos nossas reflexões neste texto introdutório. Observando as mudanças nos contingentes de migrantes recebidos pela Hospedaria é possível acompanhar as variações do que era tido como migração desejável e indesejável.
No período de sua inauguração, ou seja, nas últimas décadas do século XIX, o Brasil passava por processos de mudanças sociais e econômicas decorrentes da gradual abolição da escravatura, que teve como desfecho a assinatura bastante tardia da lei de maio de 1888. Até então, os escravizados eram a principal mão de obra nas lavouras do estado de São Paulo – especialmente o café, item de cultivo em plena ascensão no mercado internacional. Com o fim do regime de escravidão, as populações africanas e afro-brasileiras, agora livres, poderiam ter sido contratadas como força de trabalho assalariada – uma vez que já estavam aqui, conheciam o cultivo, possuíam as técnicas necessárias, entre outros. No entanto, o que aconteceu foi a sistemática marginalização dessas populações, que tiveram que buscar novas formas de existir e trabalhar, sem o mínimo auxílio estatal ou uma política pública de inclusão social. O que ocorreu foi, então, uma série de medidas que visavam a atração de uma nova força de trabalho: o imigrante europeu. Por trás de um discurso que colocava o camponês vindo do exterior como um excelente conhecedor do ofício da lavoura e uma mão de obra relativamente barata, estava uma política de branqueamento da população brasileira – em diálogo com as teorias eugenistas, que circulavam pelo mundo atlântico no período.
A introdução dos preceitos do darwinismo social e determinismo aproximava as elites intelectuais e políticas do racismo científico europeu, buscando neste pensamento as soluções para as fragilidades e particularidades supostamente decorrentes do processo de miscigenação imposto desde o período colonial[1]. O desenvolvimento de teorias e pretensos saberes sobre as raças implicou "um ideal político, um diagnóstico sobre a submissão ou mesmo a possível eliminação as raças inferiores, que se converteu em uma espécie de prática avançada de darwinismo social – a eugenia –, cuja meta era intervir na reprodução das populações"[2]. Constituindo um forte movimento social e científico, a eugenia entra no cerne dos debates sobre raça a partir da década de 1880, contribuindo para uma série de deliberadas intervenções sociais, como a proibição de casamentos inter-raciais. O objeto de branqueamento da população apresentou-se, então, inserido no contexto do discurso da eugenia, já em voga nos círculos científicos europeus.
Em geral, as teorias raciais chegaram com algumas décadas de atraso ao Brasil. A apropriação dessas ideias, ainda que tardia, demonstra seus diversos usos em território nacional: "Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferença entre as raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizasse as implicações negativas da miscigenação. Das máximas do evolucionismo social sublinhou-se a noção de que as raças humanas não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e 'aperfeiçoamento', obliterando-se a ideia de que a humanidade era una"[3]. A questão racial estava presente na interpretação de vários naturalistas estrangeiros. Muitos viam a miscigenação como algo negativo, que contribuiria para o apagamento das qualidades das raças. No Brasil, os teóricos do branqueamento acreditavam que o país poderia se tornar majoritariamente branco em cerca de um século ou, aproximadamente, três gerações.
Nesse contexto, o homem branco europeu desponta como o principal perfil de migrante desejável. Em 1876, o Ministério da Agricultura promoveu a reestruturação dos departamentos dedicados à imigração, colonização e gestão de terras públicas – a, então, Inspetoria Geral de Terras e Colonização ficou encarregada dos trâmites e da situação geral dos migrantes. Nas décadas seguintes, conhecidas posteriormente como o período da "Grande Imigração", o governo buscou alterar a forma de propaganda nos países europeus, promovendo exposições na França, Alemanha, Inglaterra, entre outros, com o objetivo de melhorar a imagem do Brasil no hemisfério norte. A mão de obra imigrante era cara; muitos imigrantes vinham com as passagens subsidiadas pelo Governo (por meio dos grandes fazendeiros). Tais passagens eram restituídas a juros, ou seja, se o imigrante chegasse bem e trabalhasse conforme o contrato estabelecido, o fazendeiro lucrava, caso contrário, experimentava um prejuízo multiplicado; além de não receber pela passagem, não iria ter uma mão de obra essencial para o trabalho no campo e demandaria mais força de trabalho, bem como novos contratos.[4]

A Hospedaria de Imigrantes do Brás, instalada em um edifício monumental (visando passar uma imagem positiva da recepção dos migrantes em terras brasileiras) e construída em apenas dois anos, é parte central desse processo. Ao analisarmos a documentação referente aos registros de matrícula dos migrantes internacionais que passaram pela Hospedaria no final do século XIX e início do século XX, constatamos uma enorme quantidade de italianos, seguidos por português, espanhóis, alemães e outros. Os japoneses também se apresentaram em grande número naquele momento; considerados como os "europeus da Ásia", também fizeram parte – ao menos nesse momento – do grupo de migrantes desejáveis.
Neste texto, buscamos introduzir parte de temáticas e conceitos importantes para entendermos como, ao longo da história, variaram os perfis de migrantes "desejados" e "indesejados" em nosso país, tomando como ponto de partida a história de construção Hospedaria de Imigrantes do Brás e os projetos imigrantistas do final do século XIX do qual o edifício fez parte. Para compreender sua monumentalidade, portanto, é necessário reconstruir as discussões políticas e científicas da época, em especial as discussões decorrentes do racismo científico e seus desdobramentos no suposto problema da "miscigenação" no Brasil. O caráter desejável do migrante europeu, dessa maneira, só poderia ser compreendido à luz desse contexto de disputas e discussões em torno das identidades nacionais que, em detrimento da maioria da população indígena, africana e afrodescendente que habitava o país, mobilizaram recursos concretizados em instalações para recepção e integração, como a Hospedaria de Imigrantes do Brás.
Referências bibliográficas
[1] MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. [S.l: s.n.], 2008.
[2] SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia das Letras, 2015, p.78.
[3] Idem, p.25.
[4] LESSER, Jeffrey. A invenção da brasilidade. Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp, 2015; REZNIK, Luís; Fernandes; NASCIMENTO, Rui Aniceto. “Hospedarias de Imigrantes nas Américas: a criação da hospedaria da Ilha das Flores”. História, São Paulo, v.33, n.1, p. 234-253, jan.-jun. 2014.