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Distopia amazônica: a mudança do clima e a migração dos povos indígenas
Ruby Buttolph – Estudante britânica formada em Letras, estagiária de pesquisa no Museu da Imigração
A nova exposição temporária do Museu da Imigração, chamada ‘Mova-Se! Clima e Deslocamentos’, busca refletir sobre a migração causada pela mudança do clima. Através de relatar as histórias de pessoas do mundo inteiro, ela trata de uma diversidade ampla de experiências humanas. Este texto vai abordar os desafios enfrentados por um grupo cada vez mais vulnerável às mudanças de clima – as quase 1.700.000 pessoas indígenas do Brasil [1].
A exposição conta com vários elementos distintos, divididos entre três módulos: ‘Tempo de Saber’, ‘Tempo de Agir’, e ‘Tempo de Sentir’, que apresentam considerações diferentes sobre clima e deslocamentos. Nesse último, é apresentada uma mostra do trabalho fotográfico de Lalo de Almeida, premiado fotógrafo brasileiro.
Nascido em São Paulo em 1970, Lalo de Almeida é fotógrafo documental que trabalha com o jornal Folha de São Paulo. Em 2022, o seu projeto Amazonian Dystopia, “Distopia amazônica”, recebeu o prêmio de Projeto de Longo-Prazo do World Press Photo. O projeto retrata a ocupação da Amazônia e como o desmatamento e a mudança global do clima está destruindo a floresta. Um dos assuntos tratados nesse projeto é a maneira como pessoas indígenas lidam com a perda e a destruição de suas terras. Todas as fotos dessa coleção são em preto e branco, cheias de emoção e fortes contrastes. Ao reduzir a biodiversidade colorida da Amazônia ao preto e branco, Lalo de Almeida consegue comunicar a tristeza da situação atual do meio ambiente e dos povos indígenas na área. A Amazônia está sendo engolida pela fumaça do agronegócio, do desmatamento e da mudança climática.
Neste texto pretendo trazer uma análise sobre as representações dos povos indígenas no Brasil, afetados pela mudança do clima, quem tem o deslocamento como uma de suas consequências. Nesse percurso, proponho conexões entre três fotos do projeto Amazonian Dystopia e os três módulos expositivos da exposição temporária do MI (os três “tempos”).
TEMPO DE SABER
“Um menino descansa no tronco de uma árvore morta no rio Xingu em Paratizão, uma comunidade localizada perto da usina hidrelétrica Belo Monte no Pará. Ele está cercado por árvores que morreram como consequência da inundação do reservatório.” [2]
Sem título, Lalo de Almeida, 2018. Veja a foto aqui.
‘Tempo de Saber’ se refere ao reconhecimento e entendimento da maneira que o nosso planeta está mudando. Sobre tudo, o módulo propõe a pergunta seguinte:
“Mas será mesmo que sabemos o que está acontecendo?” [3]
A abordagem popular da mudança do clima climática muitas vezes não inclui as perspectivas indígenas, embora a população indígena seja profundamente afetada por essas mudanças. Esta foto é um exemplo gritante de como o clima está mudando para os povos indígenas.
A aceleração dramática dos efeitos da mudança do clima nessa região é, em parte, devido à construção da usina hidrelétrica Belo Monte. A construção do Belo Monte – a segunda maior usina hidroelétrica da América Latina – resultou no deslocamento forçado de aproximadamente 20.000 pessoas da região do rio Xingu no Pará [4]. Para alguns, a diminuição drástica da água mudou o ecossistema do rio, deixando a área seca e sem várias espécies de peixes nativos, não encontradas em outro lugar do mundo [5]. Para outros, a criação do reservatório inundou a terra, impedindo a agricultura e matando a flora e fauna da região. A terra ancestral dos povos indígenas do rio Xingu virou um terreno baldio. Que outra opção eles têm senão migrar?
Composta pelo menino deitado na frente das arvores mortas e do solo inundado, esta foto parece ser de um planeta extraterrestre. Para os povos indígenas da Volta Grande do Xingu, cuja comunidade tem habitado a região por séculos, a mudança do clima e do ecossistema tornaram seu lar totalmente irreconhecível. Para os não-indígenas, ‘Tempo de Saber’ é mais relevante do que nunca. Precisamos reconhecer agora como a mudança climática ameaça as terras indígenas, de várias maneiras distintas.
TEMPO DE AGIR
“Membros da comunidade Munduruku embarcam em um avião no aeroporto de Altamira, Pará. Depois de protestar na área de construção da usina hidrelétrica Belo Monte no rio Xingu, viajaram a Brasília a apresentar suas demandas ao governo.” [6]
Sem título, Lalo de Almeida, 2013. Veja a foto aqui.
‘Tempo de Agir’, além de se referir ao ato de migrar em si, também abrange todas as ações que se fazem para combater as dificuldades decorrentes da mudança do clima e o deslocamento como consequência. Neste caso, trata do ato de protestar.
“É preciso estar atento aos sinais emitidos pelo planeta e traduzi-los para todos quando se trata de agir sobre os efeitos da mudança global do clima. Tal tarefa é realizada por diferentes pessoas, em diferentes contextos, indo desde a reunião no bairro até as mesas de negociação internacionais.” [7]
Esta foto mostra algumas pessoas indígenas do povo Munduruku embarcando em um avião em Altamira, Pará depois de uma manifestação contra a construção da usina hidrelétrica Belo Monte. Apesar dos Munduruku não habitarem o rio Xingu, onde está localizada a usina de Belo Monte, a sua ocupação da área e as manifestações demostram uma solidariedade entre os povos indígenas na luta pelos seus territórios e o meio ambiente. A da usina Belo Monte foi concluída em 2019, mas os Munduruku seguem lutando na sua própria terra. No rio Tapajós, terra Munduruku, outro projeto de usina hidroelétrica foi proposto em 2015 – a usina São Luiz do Tapajós. Em 2016, após críticas e pressão de grupos indígenas e ambientalistas, o Ibama reconheceu o dano extensivo que o projeto teria no meio ambiente e as consequências graves para a população indígena, e decidiu encerrar os procedimentos [8]. Portanto, a ação coletiva e comunitária provou-se ser eficaz na luta pelos territórios indígenas e pelo meio ambiente naquele momento.
A mudança do clima que provoca o deslocamento humano nem sempre é um resultado direto do aquecimento global. Seja por qualquer motivo, a mudança de um ecossistema causa um efeito em cadeia que deixa os povos indígenas sem ter o que comer, sem ter como praticar seu modo de vida tradicional e sem ter onde morar. Já é evidente que manifestações conseguem impedir mais danos ao meio ambiente. No caso do rio Tapajós, entretanto, neste ano de 2024 a Eletrobras reabriu discussões sobre a construção da usina, ameaçando o território Mundukuru [9]. O dever de cuidar do meio ambiente e pressionar as autoridades para que não explorem a Amazônia - ou o rio Tapajós - não é somente um dever para os povos indígenas, mas é um dever coletivo para todos nós. O ‘Tempo de Agir’ é agora.
TEMPO DE SENTIR
“Um homem caminha perto da aldeia Yawalapiti, através da fumaça dos incêndios florestais no Parque Indígena do Xingu, na Amazônia. O desmatamento no parque tem resultado em um aumento na temperatura local e um microclima mais seco. Isso causou um aumento no número de incêndios florestais tem aumentado, além da ameaça ao modo de vida tradicional dos povos indígenas da região pois dificultou a agricultura de subsistência e aumentou a dependência em comida industrializada.” [10]
Sem título, Lalo de Almeida, 2018. Veja a foto aqui.
O módulo ‘Tempo de Sentir’ é talvez o mais difícil de definir. Os nossos sentimentos e emoções ao redor desses deslocamentos não só constam saudades de casa. Para os povos originários, a saída dos seus territórios significa a perda de partes fundamentais das suas culturas, crenças e tradições; é um certo luto que não tem fim.
A expressão artística, e, nesse caso, fotográfica, pode expandir nosso entendimento dessa experiência dos outros, e nos deixar senti-la também.
“Tendo em vista a acumulação incontestável de evidências, a ação diante da mudança do clima torna-se imperativa.
Analisar esse fato pela lente da mobilidade humana é abraçar uma compreensão singular.
Optar pela arte como uma trilha para explorar esse conhecimento é conceder uma nova perspectiva à questão, experimentando diferentes pontos de vista.
Sintonizar-se com a urgência a partir de outras perspectivas é o catalisador de transformações significativas.” [11]
Um elemento que se destaca dessa composição de Lalo é a secura palpável da terra e do ar. Sem a possibilidade de cultivar plantas ou criar animais, os incêndios não só causam a fuga imediata das pessoas que habitam a região, mas também impedem a possibilidade de voltar a sobreviver da terra. Muitos povos indígenas dependem da natureza e do ecossistema nos seus territórios para poder se alimentar e ganhar uma vida. Sem ter onde morar, sem ter o que comer e sem ter como trabalhar, a mudança do clima destrói as vidas dos povos indígenas, que são forçados a se deslocar da sua terra ancestral.
Apesar dos povos indígenas mundiais somente constarem cerca de 6% da população global, eles cuidam de mais de 80% da biodiversidade no planeta [12] [13]. Portanto, o deslocamento forçado dos povos indígenas hoje em dia pode deixar a biodiversidade mundial cada vez mais vulnerável à exploração e extinção no futuro. Além disso, existe uma correlação entre a biodiversidade e a diversidade linguística no mundo – os países com ecossistemas mais diversos têm uma diversidade maior de línguas, especialmente línguas indígenas e minoritárias [14] [15]. Com isso, é importante reconhecer que a mudança do clima não somente resulta no deslocamento da população indígena no Brasil, mas também poderia ameaçar tanto a biodiversidade mundial como a existência de línguas indígenas.
A composição desta última foto ressalta a solidão que os povos indígenas enfrentam na luta contra as mudanças climáticas. O homem na foto segue para frente, sozinho, com a cabeça para baixo, sendo envolvido pela fumaça aos poucos. Esta é a triste realidade para pessoas indígenas forçadas a deslocar-se por causa das mudanças no clima ao seu redor: incerteza, perigo, solidão. Com o homem de costas para a câmera, o espectador é convidado a segui-lo através da fumaça, e sentir essas emoções junto com ele.
Estamos acompanhando a ameaça crescente ao meio ambiente e a população indígena do Brasil. O nosso ‘Tempo de Sentir’ é uma promessa eterna a seguir o homem através da fumaça, a criar empatia com as experiências dos outros e a prestar atenção a estas histórias.
Conclusão
A exposição destaca os efeitos da mudança do clima na população mundial. Temos visto que os povos indígenas são colocados em várias ocasiões em situação de extrema vulnerabilidade diante dessas mudanças. Ver a destruição da sua terra ancestral e a transformação em um lugar irreconhecível já é difícil. Mais difícil ainda é ter que se mudar para um lugar novo, onde se torna cada vez mais complicado praticar o modo de vida indígena, com a ameaça permanente contra suas terras, línguas e modos de existir. Através dos módulos ‘Tempo de Saber’, ‘Tempo de Agir’ e ‘Tempo de Sentir’, podemos ampliar o nosso entendimento destes assuntos para lutar junto com os povos indígenas no Brasil.
A exposição temporária ‘Mova-Se! Clima e Deslocamentos’ estará aberta ao público até 26 de janeiro de 2025.
*Foto de abertura: Brigada Amazônia - Rota Cerrado Amazônica 25 a 27/09/2019 • Mato Grosso. Crédito: Raissa Azeredo / Mídia NINJA. A fotografia foi modificada para adequars-se ao formato do blog. Veja arquivo original em: https://www.flickr.com/photos/midianinja/49080141913.
Referências
[1] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2022, Panorama. https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html
Acesso em 21/08/2024.
[2] World Press Photo. Amazonian Dystopia – Lalo de Almeida (Foto 15). Tradução da autora.
https://www.worldpressphoto.org/collection/photo-contest/2022/Lalo-de-Almeida/15
Acesso em 27/08/2024.
[2] TEMPO DE SABER, Mova-Se! Clima e Deslocamentos (2024) [Exposição] Museu da Imigração do Estado de São Paulo, São Paulo, SP. 27 abril 2024 – 26 janeiro 2025.
[4] FEARNSIDE, Philip (2017) How a dam building boom is transforming the Brazilian Amazon. Yale Environment 360. https://e360.yale.edu/features/how-a-dam-building-boom-is-transforming-the-brazilian-amazon
Acesso em 27/08/2024.
[5] ANSEDE, Manuel (2016) Belo Monte ameaça 50 espécies de peixes únicas no mundo. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/08/ciencia/1452249996_241713.html
Acesso em 22/08/2024
[6] World Press Photo. Amazonian Dystopia – Lalo de Almeida (Foto 14). Tradução da autora.
https://www.worldpressphoto.org/collection/photo-contest/2022/Lalo-de-Almeida/14
Acesso em 27/08/2024.
[7] TEMPO DE AGIR, Mova-Se! Clima e Deslocamentos (2024) [Exposição] Museu da Imigração do Estado de São Paulo, São Paulo, SP. 27 abril 2024 – 26 janeiro 2025.
[8] IBAMA (2016) Ibama arquiva licenciamento da UHE São Luíz do Tapajós no Pará. Ibama.gov.br 05/08/2016. https://www.ibama.gov.br/noticias/58-2016/162-ibama-arquiva-licenciamento-da-uhe-sao-luiz-do-tapajos-no-para
Acesso em 22/08/2024
[9] BORGES, André (2024) Eletrobras contraria plano energético e retoma projetos para erguer megausinas no Tapajós. ((o))eco, 03/05/2024. https://oeco.org.br/noticias/eletrobras-contraria-plano-energetico-e-retoma-projetos-para-erguer-megausinas-no-tapajos/
Acesso em 23/08/2024.
[10] World Press Photo. Amazonian Dystopia – Lalo de Almeida (Foto 7). Tradução da autora.
https://www.worldpressphoto.org/collection/photo-contest/2022/Lalo-de-Almeida/7
Acesso em 27/08/2024.
[11] TEMPO DE SENTIR, Mova-Se! Clima e Deslocamentos (2024) [Exposição] Museu da Imigração do Estado de São Paulo, São Paulo, SP. 27 abril 2024 – 26 janeiro 2025.
[12] International Labour Organization (2019) Implementing the ILO Indigenous and Tribal Peoples Convention No. 169. ILO, Genebra. https://www.ilo.org/sites/default/files/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/documents/publication/wcms_735607.pdf
Acesso em 27/08/2024.
[13] SOBREVILA, Claudia (2008) The Role of Indigenous Peoples in Biodiversity Conservation. World Bank, Washington DC. https://sacredland.org/wp-content/uploads/2019/11/World-Bank-Indigenous-Peoples-in-Biodiversity-Conservation.pdf
Acesso em 27/08/2024.
[14] HARMON, David (1996) Losing species, losing languages: Connections between biological and linguistic diversity. Southwest Journal of Linguistics, 15(1): 89-108.
[15] MAFFI, Luisa (2005) Linguistic, Cultural, and Biological Diversity. Annual Review of Anthropology, 29: 599–617.