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Arte, Migração e Identidade: entre deslocamentos e pertencimentos
Nicole Alexsandra - Analista de pesquisa Jr.
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos,
em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa
personalidade para especial libertação.
- Fernando Pessoa [1].
Ao longo dos milênios, a arte tem sido uma importante forma de expressão e identificação para a humanidade [2]. Por meio de diversas manifestações, ela possui o poder - e a intenção - de evocar emoções, provocar reflexões e sensibilizar aqueles que a observam. Nesse sentido, sua relevância na formação da identidade social de um indivíduo é evidente, desempenhando um papel fundamental na maneira como expressamos nossas emoções, identidades e conexões com o mundo ao nosso redor.
Descrita como “quase tão antiga quanto o homem” [3], seja por meio de pinturas, esculturas, literatura, dança, música ou outras formas, a arte consegue transcender fronteiras temporais e culturais. Nesse contexto, ela estabelece uma ligação profunda entre o indivíduo e seu ambiente social, possibilitando uma reflexão sobre as realidades sociais, políticas e emocionais que cercam a produção da obra. Segundo a autora e arte-educadora Ana Mae Barbosa:
Através das artes temos a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam a sociedade ou o grupo social, seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A arte, como uma linguagem presentacional dos sentidos, transmite significados que não podem ser transmitidos através de nenhum outro tipo de linguagem, tais como as linguagens discursivas e científica. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua arte. Sem conhecer as artes de uma sociedade, só podemos ter conhecimento parcial de sua cultura. [4]
Ademais, sobre a relevância da arte na construção social e identitária, Anamélia Bueno Buoro disserta, em seu livro O olhar da construção [5], sobre como a arte é inerente à existência humana. Nesse âmbito, a autora afirma que não há civilização que não tenha produzido arte, destacando sua pertinência na formação e construção histórica e social da humanidade. Assim, é por meio dela que o ser humano interpreta sua própria natureza e, concomitantemente, se descobre, se identifica e se reconhece.
Constituindo-se a partir do compartilhamento de ideias entre pessoas de um mesmo meio social, a arte e a identidade são intrínsecas ao ser humano e influenciam a compreensão relacional dos indivíduos, que ocorre através da alteridade. À vista disso, a divergência entre o “eu” e o “outro” evidencia-se como um fator essencial para a construção das identidades individuais e culturais [6].
Acerca disso, a pesquisadora Patricia Carvalho Padilha afirma que “no caso dos imigrantes, que enfrentam uma realidade intercultural, para compreender a re/significação identitária é importante considerar como acontecem e são gerenciadas as diferenças, as desigualdades, a inclusão-exclusão e os dispositivos de exploração” [7].
Nesse contexto, considerando a complexidade das interações sociais, a arte se mostra um meio para intermediar e compreender essas dinâmicas. Ao ser um fator primordial de diálogos e reflexões, a arte possibilita que imigrantes e outros grupos sociais a utilizem para expressar suas experiências, vivências e desafios.
Nesse sentido, a arte não apenas espelha a diversidade cultural, mas também revela interpretações profundas sobre um contexto social específico [8]. Assim, ao expor narrativas individuais e coletivas, a arte contribui para uma conscientização crítica, criando oportunidades para o entendimento mútuo e a construção de um senso compartilhado de pertencimento. Dessa forma, a arte participa da constante (re)construção das identidades, moldando-as e adaptando-as à medida que novos significados culturais e sociais emergem e se transformam [9].
Portanto, ao explorar as diferentes formas de expressão artística, percebemos como elas ajudam a moldar identidades e a oferecer novas perspectivas sobre a realidade social. Assim, a arte não se limita a ser uma mera manifestação estética [10], mas se designa como um elemento essencial para a reflexão crítica e a transformação social.
A relação entre arte e imigração torna-se notável ao analisarmos como diferentes manifestações artísticas sempre estiveram presentes como uma forma de expressão primordial para migrantes que procuram expor suas vivências em um novo contexto. Isso é especialmente relevante, embora não exclusivo, para artistas exilados e refugiados, cuja migração acontece em situações de vulnerabilidade e violência [11].
Em um deslocamento populacional para um novo país, os imigrantes frequentemente enfrentam grandes desafios relacionados à adaptação a novas culturas e à superação de preconceitos. Por meio de suas produções artísticas, sejam elas visuais, literárias ou performáticas, os imigrantes têm a possibilidade de transmitir suas histórias, salientando suas identidades em um espaço muitas vezes hostil e invisibilizado [12]. Assim, a arte também se consolida como um meio de resistência e resiliência, permitindo que esses grupos sociais reiterem suas raízes culturais enquanto incorporam um novo tecido social.
Fica claro, portanto, que, quando as experiências dos imigrantes são compartilhadas por meio de apresentações, exposições e outras manifestações artísticas, torna-se possível que a sociedade como um todo se conecte emocionalmente com essas narrativas. Dessa maneira, a arte não apenas se caracteriza como um fator enriquecedor da vida cultural local, mas também proporciona um espaço para o diálogo intercultural, essencial para a construção de um corpo social mais inclusivo. É nesse espaço que identidades se entrelaçam e se ressignificam, tornando possível a existência de uma sociedade mais inclusiva e solidária, valorizando a diversidade em um mundo gradativamente mais plural.
Com esse propósito, o Museu da Imigração do Estado de São Paulo mantém um Programa de Residência Artística voltado à população migrante. Além disso, destaca a importância da arte em sua nova exposição de longa duração, Migrar: Histórias Compartilhadas Sobre Nós, com inauguração prevista para meados de 2025.
Referências bibliográficas
[1] PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Por Bernardo Soares. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. p. 390.
[2] DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. 3. ed. Campinas: Papirus, 1994. p. 136.
[3] FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1987. p. 20.
[4] BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. p. 16.
[5] BUORO, Anamelia Bueno. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
[6] CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Tradução Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
[7] PADILHA, Patricia Carvalho. Arte imigrante: inclusão, identidades e sobrevivência. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE SOCIOLOGIA DA UFS, 3., 2020, São Cristóvão, SE. Anais [...]. São Cristóvão, SE: PPGS/UFS, 2020. Disponível em: <https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13889/2/ArteImigrante.pdf>. Acesso em: 19 out 2024. p.5.
[8] DA ROLT, Clóvis. Quando arte e identidade se encontram: algumas perspectivas a partir da 8ª Bienal do Mercosul. Mouseion, n. 15, p. 124-143, 2013. Disponível em: <https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Mouseion/article/view/1039>. Acesso em: 01 nov 2024.
[9] HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2003. p. 38.
[10] COLI, Jorge. O que é arte. 10º edição, São Paulo: Brasiliense. 1989.
[11] CHALCRAFT, Jasper; SEGARRA, Josep Juan; HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Bagagem Desfeita: A Experiência Da imigração Por Artistas Congoleses. GIS - Gesto, Imagem E Som - Revista De Antropologia, v. 2, n. 1. São Paulo, Brasil, 2017. Disponível em: . Acesso em: 02 nov 2024.
[12] PARDUE, Derek. Can saraus speak to gender and migrant politics in São Paulo?. In: The Routledge Companion to Gender, Sex and Latin American Culture. Routledge, 2018. p. 386-397.