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Escuta em tempos de pandemia: participação em museus a partir da experiência do Museu da Imigração do Estado de São Paulo
Participação e escuta são palavras comuns no contexto atual de museus. Elas são referidas muitas vezes pela chamada "museologia colaborativa", que traz à discussão uma série de atividades que vão desde a curadoria de exposição – realizada em conjunto com pessoas que compõem determinados grupos sociais – e a promoção de usos variados por esses grupos dos equipamentos culturais até as práticas de consulta, visando ações educativas, de pesquisa, comunicação ou preservação museológica.
Fundado em 1993, subordinado à Secretaria de Estado da Cultura (atual Secretaria de Cultura e Economia Criativa), o Museu da Imigração funciona no espaço que outrora foi ocupado pela Hospedaria de Imigrantes do Brás, instituição que recebeu, ao longo de seus 91 anos de existência, mais de 2,5 milhões de migrantes internacionais e nacionais. Por ser esse um ícone das presenças migrantes do passado, a antiga Hospedaria de Imigrantes e sua documentação serviram de importante elo entre algumas comunidades migrantes e o Museu da Imigração, desde os seus primeiros anos de existência.
Foram essas comunidades que, respondendo aos chamados da instituição, contribuíram para a formação do seu acervo, acrescentando novas camadas às coleções já existentes. A própria "Festa do Imigrante", programação que surgiu em 1996 a partir da demanda dessas próprias comunidades, é, desde então, planejada, programada e realizada todos os anos em conjunto com esses atores. A participação, portanto, faz parte da história do Museu da Imigração.
Mas o que acontece quando ocorre uma pandemia de âmbito mundial, impossibilitando o uso dos espaços do próprio Museu e o contato presencial com esses importantes atores que ajudam a construir o Museu da Imigração? Quais as possibilidades encontradas para continuar mantendo a escuta, e trazer à instituição as reflexões geradas a partir das diferentes experiências migrantes, agora, do presente? A partir dessas questões, nós, do projeto "Mobilidade Humana e Coronavírus", apresentamos a nossa contribuição ao dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", da Revista Simbiótica.
No texto, detalhamos o trajeto percorrido por esse projeto, iniciado em março de 2020, que tem como objetivo contribuir para a reflexão sobre o que será das mobilidades humanas após o grave evento sanitário de escala mundial. Focamos na apresentação das entrevistas realizadas com pessoas migrantes no Brasil e no mundo, por compreender que elas são a ferramenta mais importante para lidar com o caráter em aberto imposto pela pandemia: em um cenário bastante desconhecido, em que ninguém poderia saber o desfecho, era importante escutar, além de cientistas que se debruçavam sobre o assunto, as próprias pessoas migrantes que estavam vivenciando os efeitos da pandemia no seu dia a dia.
No total, publicamos aqui, nesse blog, entre março e agosto de 2020, 11 entrevistas que geraram materiais bastante díspares entre si. Em algumas ocasiões, inclusive, a pandemia era apresentada pelos entrevistados e entrevistadas como uma preocupação secundária, em comparação com outros problemas vivenciados. Em um dos relatos, por exemplo, a realidade no cárcere, conhecida por experiência passada, foi compartilhada por uma migrante como muito mais violadora de direitos quando comparada às dinâmicas impostas pela pandemia, sendo a sua principal preocupação a denúncia dessas situações. Em outro caso, ganharam relevância na conversa as diferentes maneiras de como as populações no país de origem e no país de destino reagiram à pandemia, gerando reflexões sobre desigualdades sociais e educacionais.
Sendo o "Mobilidade Humana e Coronavírus" uma série voltada à abertura de uma conversa mais ampla sobre os efeitos da pandemia, tal pluralidade nos interessava, na medida em que ela refletia experiências de deslocamento bastante particulares, que assumiriam caráter bastante diverso quando vistos na sua totalidade.
Em algumas entrevistas, porém, a pandemia tomava uma centralidade mais evidente. Seja por conta do momento específico dentro do cotidiano no qual a entrevista foi realizada, seja pela intensa modificação, trazida pelo cenário pandêmico, no âmbito do trabalho ou do associativismo. Para algumas entrevistadas, as modificações trazidas pela pandemia pareciam gerar questões de maior urgência. E foram, justamente, as conversas com Patricia, Indira, Jhannyna e Luciana as escolhidas para serem apresentadas no dossiê, com o objetivo de mostrar como a pandemia e as suas consequências econômicas e sociais apareceram como preocupação para essas mulheres migrantes.
No Museu da Imigração, entendemos como necessária a integração do público, das pessoas e das organizações atuantes na sociedade aos processos de formação dos acervos e de elaboração dos programas museológicos. Desde a sua fundação, a participação de diferentes grupos sociais foi uma premissa buscada nos programas e nas pesquisas, independentemente do objeto de análise. Como um aprofundamento dessa abordagem, tratar o cenário pandêmico como desconhecido foi um modo de buscar não colonizar os conhecimentos existentes na sociedade sobre as migrações.
Assim, as entrevistas realizadas na série "Mobilidade Humana e Coronavírus" somaram-se à produção científica de conhecimento, captando e compartilhando formas de elaborar o contexto pandêmico a partir de experiências migratórias, ou seja, de experiências de pessoas que vivem na prática os impactos mais diretos do fechamento de fronteiras e das imobilidades (em seu sentido mais amplo), que caracterizam o momento atual. O Museu da Imigração busca ser, portanto, não um espaço de encerramento de debates ainda em andamento, mas, sim, um lugar em que exista a possibilidade de diálogo, de modo que diferentes vozes possam se fazer presentes.
Ao construir o conhecimento de maneira horizontalizada, colocamo-nos à disposição da sociedade em geral e dos migrantes, em particular, para sermos um espaço de acolhida e uma plataforma de discussão de temas que são caros à agenda pública e social. Dessa forma, fazemos as pontes tão necessárias em um mundo de fronteiras fechadas e polarizadas, além de atuarmos na sempre fundamental tarefa de escutar, mediar, registrar, contextualizar e problematizar.
Thiago Haruo Santos é antropólogo e pesquisador do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Também é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) e pela Universidad Nacional de San Martín (IDAES-UNSAM) na Argentina.
Guilherme Ramalho é comunicador e educador do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Também é mestrando em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Crédito foto da chamada: Alpaca Producciones. | Conta com tarja preta, no canto inferior esquerdo, escrito OCUPAÇÃO "REVISTA SIMBIÓTICA" em branco.
A ocupação "Revista Simbiótica" é uma iniciativa que surgiu da parceria entre Museu da Imigração e o periódico homônimo da série, da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), para a divulgação das reflexões e contribuições do dossiê "A pandemia e a crise internacional das mobilidades humanas", publicado em agosto de 2021. Dando continuidade à proposta desenvolvida na série "Mobilidade Humana e Coronavírus", seguiremos debatendo e refletindo sobre os impactos da pandemia para as migrações e demais mobilidades.