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Brasileiros na Hospedaria: Uma casa temporária
A série "Brasileiros na Hospedaria" trouxe no artigo Onde o Frio é Maior informações a respeito da relação entre o inverno na capital paulista, os migrantes nordestinos e a falta de um planejamento habitacional adequado na cidade. Entretanto, não eram só as temperaturas baixas as causadoras de problemas para a população que vivia em São Paulo. No final do ano chegava o verão e, junto dele, as chuvas torrenciais. Como acontece ainda hoje, as enchentes atormentavam o cotidiano dos moradores da capital.
A década de 1920 teve dois anos de alagamentos acima do normal na cidade: 1923 e 1929. Esse último foi mais significativo e traumático. Muitas pessoas perderam suas casas e a Hospedaria de Imigrantes do Brás se transformou em refúgio temporário para elas. No dia 21 de janeiro, as primeiras 22 chegaram na Hospedaria, 11 delas eram senhoras que viviam no asilo São Vicente de Paula, na rua Tibiriçá, que estava completamente tomada pela água. A cidade já estava um caos, mas a situação não melhorou nas semanas seguintes.
Evidentemente, quem habitava próximo às margens dos rios Tietê, Pinheiros, Tamanduateí e das dezenas de córregos e riachos espalhados pela cidade eram aqueles que mais sofriam com os danos causados pelas chuvas. Em janeiro de 1929, o bairro do Canindé estava inundado. Os moradores precisaram ser removidos em dois batelões e dois botes. O campo de Marte virou um lago e um avião sem asas foi transformado em barco. A várzea do Ipiranga também estava sob a água; do alto do bairro, a estação de trem da São Paulo Railway parecia uma ilha em meio à desordem. Os jornais alertavam as pessoas que se aventuravam a nadar para que tomassem cuidado com cobras, detritos e corpos de cães que apareciam boiando. Além disso, muitos indivíduos foram levados mortalmente pelas águas.[1] Os casos fatais ocorreram, principalmente, na Ponte Pequena, no Canindé, na Penha, no Ipiranga e na Vila Guilherme. Cenas extraordinárias aconteceram na cidade: no bairro do Bom Retiro, um caixão deixou uma casa em um barco e seguiu rumo ao cemitério. Atrás do barco fúnebre se juntou uma série de outros pequenos botes com amigos e parentes do defunto em uma procissão aquática.[2]
Muita gente perdeu tudo o que tinha e precisou abandonar sua residência. Essas pessoas foram realocadas para casas que não tinham sido invadidas pelas águas e para a Hospedaria de Imigrantes, como citado acima. No dia 30 de janeiro, doze famílias da Vila Anastácio chegaram no edifício da imigração. Em meados de fevereiro, moradores da Barra Funda, cerca de cem famílias que não tinham para onde ir, procuraram a Hospedaria. Sabemos os nomes de algumas pessoas que estiveram na instituição durante esse verão: Vicente Kvikter, esposa e filhos, moravam na rua Matarazzo; Pedro de Lima, esposa e quatro filhos menores, moravam na Rua Jaraguá, número 66; Antonio Henrique, esposa e cinco filhos menores, moradores da rua Cruzeiro, número 70.[3]
Para o resgate dos ilhados e seu transporte para a Hospedaria e outros locais foi necessário o esforço conjunto do Serviço Sanitário, da Cruz Vermelha, da Cruz Azul, da Polícia e do Corpo de Bombeiros. A Cruz Vermelha utilizou motocicletas como ambulâncias de emergência, a Cruz Azul disponibilizou suas dependências para abrigo das famílias de militares da Força Pública. Ainda assim, muita gente precisou do auxílio de vizinhos e amigos, em locais que as instituições e o poder público não conseguiam chegar. Esse foi o caso da Rua Luiz Pacheco, no prédio 40, onde uma senhora, que havia dado à luz há três dias, precisou pedir socorro aos vizinhos porque a água adentrara seu quarto. Algo semelhante ocorreu na rua Tapajós, na residência do guarda civil João Aguiar Neves. Ele e sua esposa grávida, prestes a entrar em trabalho de parto, precisaram ser acudidos por conhecidos que moravam nas imediações[4].
A ligação entre os bairros inundados e o centro precisou ser reorganizada pela Seção de Fiscalização de Rios e Várzeas e pela Chefatura de Polícia. O transporte foi estruturado dessa forma:
"Bairro do Limão: Dois batelões, sendo um das 4 às 8 e das 17 às 21 e outro das 6 às 18 horas.
Vila Guilherme: Dois batelões, sendo um das 4 às 8 e das 17 às 21 e outro das 6 às 18 horas.
Vila Maria: Dois batelões, sendo um das 4 às 8 e das 17 às 21 e outro das 6 às 18 horas."[5]
E segue:
"Inúmeras famílias foram socorridas em suas habitações, sendo transportadas em auto caminhões fornecidos pela Secretaria do Interior para a Hospedaria de Imigrantes, edifício este colocado à disposição da Chefatura de Polícia pelo sr. Secretário da Agricultura.
Muitas outras famílias também foram socorridas, porém transportadas para casas de parentes e amigos, assim como as dos militares para o Ambulatório da Cruz Azul."[6]
Em meados de fevereiro, a estrutura aumentou. A Vila Elza tinha à disposição nove embarcações; na Vila Maria, 16; na Vila Guilherme, dez; no bairro da Coroa, quatro; na Casa Verde, 18; no Limão, sete; na Freguesia do Ó, quatro; na Ponte da Lapa, duas; na Rua 12 de Outubro, duas; na Vila Anastácio, duas; na Avenida Cidade Jardim, duas; no Canindé, oito; e no Bom Retiro, 13. No total, existiam cerca de 100 embarcações para o auxílio da população. Além disso, foram instalados ou melhor desenvolvidos postos de socorro nas ruas General Flores, Capitão Matarazzo, Rodolpho Miranda e nos bairros da Vila Maria e Bom Retiro. Mais de 300 pessoas foram enviadas para a Hospedaria de Imigrantes do Brás ou para outros bairros da cidade.[7]
Seja no frio ou no calor, os moradores de São Paulo não escapavam às aflições do clima, da falta de moradia adequada e da inércia do poder público em resolver problemas crônicos da cidade. Uma das soluções frequentemente encontrada era o abrigo nas dependências de um edifício construído no final do século XIX, entre 1886 e 1888, no bairro da Mooca: a Hospedaria de Imigrantes do Brás era local de acolhida e refúgio para estrangeiros e brasileiros, migrantes e moradores da própria cidade.
Referências bibliográficas
[1] Diário Nacional, 22.01.1929.
[2] Diário Nacional, 31.01.1929.
[3] Correio Paulistano, 23.01.1929.
[4] Diário Nacional, 22.01.1929.
[5] Jornal Correio Paulistano, 22.01.1929.
[6] Idem.
[7] Diário Nacional, 19.02.1929.