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Mulheres e migração no acervo museológico do MI - parte 1
A coleção museológica do Museu da Imigração é composta por cerca de 12 mil peças, que podem ser divididas em quatro núcleos: o primeiro é constituído por itens de mobiliário e equipamentos que pertenceram à Hospedaria de Imigrantes do Brás e a outros órgãos que funcionaram no edifício; o segundo, reúne objetos doados por famílias de migrantes por meio de campanhas de doação promovidas pelo então Memorial do Imigrante; o terceiro, agrupa peças adquiridas por doações espontâneas de particulares ao longo dos anos; o quarto núcleo, por sua vez, pode ser caracterizado como o conjunto das obras e peças que passaram a ser vinculadas à coleção após a finalização do restauro do prédio do museu em 2014. Segundo a documentação da coleção, foram encontrados também alguns objetos que estavam enterrados em seus corredores, como garrafas de remédio e pisos e que foram então incorporados à coleção, ainda sem todos os trâmites formalizados.
Essa é uma coleção que possui um perfil bastante heterogêneo, abrigando conjuntos de móveis, maquinário, objetos pessoais, fotografias, documentos textuais, brinquedos, indumentária, entre outros. Apesar de seu grande potencial, a coleção carece de maiores detalhes sobre suas formas de aquisição, doadores e critérios de crescimento e incorporação.
A doação de um item para a coleção de um museu é um momento muito importante na história desse objeto. No caso de um museu histórico, como o Museu da Imigração, seu acervo é constituído por peças que, em sua maioria, não foram fabricadas para estarem em um museu – como pode ser o caso de obras arte, por exemplo. Aqui, a importância dos objetos reside, principalmente, em seu caráter histórico e afetivo, que se relacionam com temas tais como identidades, memórias e comunidades. Assim, o momento de doação de um objeto para o museu é o momento em que esse objeto perde seu valor que uso, seu valor prático e cotidiano, para ganhar novos valores, pertencentes ao domínio do simbólico. Ao deixar de ser um objeto com uma função específica na sociedade, ele se torna uma representação de si mesmo, que servirá para levantar muitas reflexões e revelar uma série de questões sobre seu contexto de produção, de utilização e de doação.
O objeto será então cuidado de modo a ser preservado da melhor forma possível, e será exposto ou utilizado das maneiras que o museu achar mais conveniente para comunicar aquilo que se procura comunicar. No entanto, a doação para uma instituição museológica pressupõe uma série de responsabilidades da parte do doador; este deve entender que, a partir de então seu valor não é mais o do uso prático, sendo que o museu irá deter a tutela do objeto para assegurar a melhor difusão de seus valores simbólicos dali por diante. Sendo assim, os objetos não poderão voltar ao seu uso cotidiano, podendo somente ser emprestados eventualmente, para outras instituições ou eventos que também estejam interessados em seus novos valores. Essas regras são de extrema importância para a conservação das peças que, a partir do momento que foram consideradas importantes ao museu, devem ser tratadas como itens de uma coleção. Sua função mudou, mas seu significado permanece, ainda que transformado. O papel do museu é cuidar para que esses significados continuem vivos e que continuem revivendo por muito tempo.
A reformulação da exposição de longa duração (2011-2014) do Museu da Imigração, bem como o processamento do acervo armazenado em reserva técnica no período em questão, levou à necessidade de lançar um novo olhar para os objetos, buscando compreendê-los para além das diversas camadas de conhecimento que adquiriram ao longo do tempo. Assim, buscou-se trabalhar na direção de melhor entender o papel desses objetos na formação dessa coleção, na sociedade que os produziu e naqueles que tiveram contato com eles – por vezes alterando-os ou realocando-os em diversos espaços físicos ou culturais. Para compor essa investigação de maneira mais organizada e produtiva, a equipe de pesquisa do museu passou a trabalhar na definição de suas linhas pesquisa; o desejo de conciliar a pesquisa científica sobre o acervo com o interesse do público norteou grande parte dos trabalhos realizados no âmbito do Museu.
Nos últimos anos, a equipe de Pesquisa do Museu da Imigração vem realizando um esforço de explorar com mais profundidade essas coleções por meio de inúmeros projetos, desde exposições temporárias, quanto artigos para o Blog, encontro com doadores etc. Desde 2020, buscando olhar para as histórias invisibilizadas em torno da Hospedaria de Imigrantes do Brás, percebemos a presença maciça de mulheres e suas trajetórias em inúmeras dessas ações. Nosso acervo museológico possui um grande número de objetos ligados ao cotidiano privado – espaços relegados de forma opressiva às mulheres, mas também onde era permitido elas exercessem algum domínio, em maior escala que na vida pública (ao menos dentro de nosso escopo temporal), e que possibilitava algumas formas de expressão e exercício da autonomia, por exemplo, através da culinária, da decoração e da moda. Falaremos mais sobre esses espaços de atuação da mulher migrante em textos futuros de nossa série. Por ora, levantaremos alguns exemplos de itens representativos de nosso acervo que podem ser elucidados dentro da chave de investigação aqui proposta. Começaremos, hoje, com alguns exemplos contidos dentro do espectro da moda.
Os leques são uma tipologia de artefato que possui uma ampla variedade na coleção. Foram objetos muito populares ao longo dos séculos e tiveram um enorme alcance geográfico, não se restringindo unicamente a uma ou outra cultura. Sua origem é bastante difusa, pois relaciona-se a um gesto bastante inerente ao próprio ser humano: o abanar-se. Constituídos de diversos materiais, como marfim, madrepérola, sândalo e penas, ornamentado de ouro, prata ou pedrarias, com detalhes em seda ou com pinturas a mão, esse objeto viajou pelo mundo ao longo do tempo e passou a ser um artefato indispensável às damas elegantes das elites cosmopolitas no século XIX. Tendo como principal serventia refrescar aquele que o porta, era de se esperar que muitas mulheres recém-chegadas aos trópicos fizeram uso constante dos leques para espantar o calor quando não havia nenhum recurso elétrico para tal, mas somente o movimento mecânico das mãos. No entanto, seus significados não remetem somente à prática utilitária do ato de abanar-se: seus adereços, ornamentos, pinturas e materiais são também símbolos de distinção social em um mercado de luxo, sendo que seu uso muitas vezes ultrapassa a necessidade de afastar o calor, constituindo um acessório de indumentária que testemunha sobre as transformações das modas, dos gestos, dos hábitos mundanos e das relações de gênero.
Os chapéus constituem outra tipologia que marca uma forte presença, tanto por sua variedade e características, quanto pela quantidade de peças presentes no acervo. A origem do uso de utensílio para proteção da cabeça contra o sol é bastante remota e difícil de mapear. Com o passar dos séculos, o uso dos chapéus – bem como outros acessórios de cabeça e cabelo, como coroas e tiaras – passaram a se descolar de sua função utilitária prática e tornaram-se, também, acessórios de moda vinculados ao status daqueles que os portavam. Em muitos casos a função de proteção continuava, mas associava-se àquela do ornamento, sendo, portanto, influenciada pelos modismos e tendências.
O chapéu é uma peça do vestuário que foi amplamente utilizada ao longo do tempo tanto por homens quanto por mulheres, marcando posições sociais, estilo pessoal e muitas vezes dando o tom da ocasião em que a pessoa se apresentava. Porém, a evolução do estilo masculino sofreu menos modificações e apresentou menos variedades do que o feminino. Com o passar o tempo, o tamanho se modificou inúmeras vezes – ora tornava-se quase um casquete, ora possuía abas grandes e flexíveis. O formato do chapéu também era influenciado pelos penteados em voga no período – mais altos, baixos, volumosos etc. – e pelo restante do vestuário. A ocasião em que se usava ou não um chapéu é ainda um aspecto simbólico que ainda na atualidade está presente no inconsciente de inúmeras culturas: o homem, principalmente, deveria tirar o chapéu em determinadas circunstâncias, como ao entrar em um templo religioso, na casa de um anfitrião, ou à mesa. Embora o item atualmente esteja fora do circuito da indústria da moda cotidiana, não é estranho ver mulheres hoje em dia utilizando esse acessório com sua função original: na praia, na piscina, como proteção do sol. Essa ocorrência nos diz muito sobre os processos de reapropriação que cercam objetos e acessórios de vestuário. A moda é cíclica; as tendências circulam nos mais diferentes tempos e espaços, sob as mais diversas circunstâncias e contextos. As mulheres apresentam-se, nesse sentido, como agentes importantes de tais processos.
Joias e bijuterias são ainda outro grupo interessante de objetos. Ainda que os homens também possuam joias de distinção, como insígnias, medalhas e abotoaduras, a maioria desses artefatos em nosso acervo são, aparentemente, femininos. A relação entre gênero e moda – ou ainda, ornamento – pode nos levar a inúmeras reflexões e questionamentos, por exemplo: ela contribui para a dominação social de um grupo sobre outra? Ou ainda: ela colabora para o empoderamento feminino diante da dominação cultural masculina? Essas peças certamente eram consideradas especiais por seus donos e portadores, trazidas para o Brasil como itens dignos de serem levados na bagagem, que muitas vezes continha apenas o necessário. As joias podem ser entendidas ainda como uma reserva monetária importante para mulheres que, na grande maioria dos casos, não possuía autonomia financia dentro da família.
Dentro das inúmeras peças de vestuário presentes no acervo, itens como combinações, meias, e outras peças mais íntimas também levantam alguns pontos de curiosidade. Por exemplo, a especificidade das meias-calças finas e de tons transparentes levanta a questão de sua utilidade: se pouco servem para aquecer, sua transparência a torna quase imperceptível no corpo da mulher – porque, então, seriam (ou são) usadas? O controle do corpo feminino é um assunto bastante debatido atualmente; cobrir partes do corpo é uma prática presente nas mais variadas culturas ao redor do mundo. No caso das mulheres, essa intenção é ainda mais complexa e diversificada. No caso das meias calças, por exemplo, a pele é escondida, mas a forma do corpo permanece visível. Sua tonalidade bege – um dos muitos tons de pele possíveis – dá um aspecto sutil ao disfarce da perna e às normas impostas a muitas mulheres que pretendiam usar uma saia mais curta, por exemplo. Outra possível função deste acessório seria homogeneizar o tom da pele e disfarçar pequenas imperfeições – mais uma das muitas formas de controle do corpo da mulher e do reforço de padrões de beleza inacessíveis que buscam sempre a perfeição da imagem feminina.
Objetos que fazem parte do ritual da toilette, isto é, pequenos itens de cuidado pessoal, também são uma tipologia relevante dentro da coleção. Esses itens podiam, por exemplo, ser levados em bolsas – no caso dos menores e mais compactos – ou mantidos sobre penteadeiras – como as embalagens maiores e menos práticas. O ato de maquiar-se ou perfumar-se é uma constante do comportamento humano ao redor do mundo; o que muda é a maneira de fazê-lo e as modas que o acompanham. Os cheiros têm um aspecto afetivo bastante particular relacionado às memórias: um determinado perfume pode lembrar um local, suscitar determinadas lembranças ou ainda, ser levado consigo como forma de recordação. Sob a experiência migratória, essa associação pode ser ainda mais comum. Comumente considerados femininos, esses cuidados alcançam uma crescente parcela da população: hidratantes, perfumes e outros produtos como estes têm sido utilizados por muitos homens como parte de sua rotina de cuidados pessoais. Além disso, o status social muitas vezes é também demarcado a partir do uso de determinados produtos. Assim, objetos que fazem parte do ritual da toilette podem ilustrar relações sociais, culturais e econômicas, bem como a relação do ser humano com seu próprio corpo ao longo do tempo.
As possibilidades de interpretação de nosso acervo pela perspectiva da história das mulheres são inúmeras. Apresentamos, no texto de hoje, alguns vislumbres das pesquisas que a equipe do Museu veio realizando nos últimos anos, evidenciando a proximidade da temática da moda com a história das mulheres. O assunto – centrado, mais especificamente, nos acessórios de vestuário – foi abordado ainda em uma exposição temporária realizada em 2017, que contou com a exibição de objetos da coleção, como estes abordados acima, além de empréstimos de famílias de migrantes e descendentes. Nos próximos textos, exploraremos outros tópicos de pesquisa, como história da alimentação e do mundo privado doméstico. Continue nos acompanhando!