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Um edifício de muitas bibliotecas: possibilidades de pesquisas a partir das marcas de proveniência da Coleção Bibliográfica do Museu da Imigração
Por Mayara Ferreira Aranha
Olhar em perspectiva histórica para a formação de acervos de bibliotecas exige mais habilidades típicas de arqueólogos do que de bibliotecários. Diferente de coleções com caráter orgânico, como os arquivos, os itens que compõem uma biblioteca são escolhidos um a um, ainda que as preferências por determinado escopo não cheguem sempre de forma clara até nós. Ademais, a trajetória dos itens em direção às prateleiras pode seguir distintos caminhos: compra, permuta, doação espontânea, solicitação de doação... No caso dos itens da atual biblioteca do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, grande parte deles chegou até nós através de uma turbulenta história institucional que culminou em sucessivas incorporações de coleções.
Neste artigo buscaremos refletir sobre o impacto desses movimentos na configuração contemporânea da biblioteca do Museu da Imigração, instituição que completa 30 anos em 2023, apontando possibilidades de pesquisas científicas a serem desenvolvidas a partir de sua rica e complexa Coleção Bibliográfica.
O desenho vigente da biblioteca do Museu da Imigração resulta de uma complexa história relacionada ao edifício onde funcionou a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, construído entre 1886 e 1888[1]. Para melhor compreendê-la, estamos em um processo de qualificação deste acervo, que se voltou, desde o primeiro semestre de 2022, aos estudos de documentos institucionais, literatura científica da área da Ciência da Informação e da realização de trabalho de inventário, buscando responder a uma pergunta fundamental: o que é a biblioteca do Museu da Imigração hoje?
Assim como os demais acervos do museu - Coleção Museológica, Coleção de História Oral e Arquivo Institucional -, a Coleção Bibliográfica deve ser compreendida sob o enfoque das diversas camadas temporais que a compõem. Ela foi formada a partir de sucessivas incorporações de coleções preexistentes, partindo "[...] da necessidade de salvar e institucionalizar uma coleção (os itens que haviam permanecido no edifício), seguindo assim a 'fórmula' tradicional do surgimento dos museus"[2].
Para se ter uma ideia de quão complexa é a sua história, a atual biblioteca, que teve início em 2010[3], incorporou em seu acervo os itens da biblioteca do antigo Memorial do Imigrante, que funcionou entre abril de 1998 e 2010. Este, por sua vez, incorporou ao seu acervo os itens da biblioteca do primeiro Museu da Imigração, instituição que esteve em funcionamento entre junho de 1993 e abril de 1998. Sua biblioteca foi formada a partir da incorporação dos itens da biblioteca do Centro Histórico do Imigrante da Secretaria da Promoção Social do Estado de São Paulo, que funcionou no período entre 1986 e 1993. A biblioteca do Centro Histórico do Imigrante foi formada a partir da incorporação dos itens da biblioteca da Secretaria da Promoção Social do Estado de São Paulo, que funcionou entre os anos de 1967 e 1986, sendo que esta havia incorporado os itens da biblioteca da Diretoria de Terras, Colonização e Imigração e do Serviço de Imigração e Colonização da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, que funcionou entre 1939 e 1967.
Apesar de tantas mudanças, o que une essas instituições de diferentes nomes e suas respectivas bibliotecas é o edifício onde estiveram em atividade: a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, complexo onde hoje funciona o Museu da Imigração e a Associação Internacional Arsenal da Esperança[4]. As transformações ocorridas no interior dos órgãos da Administração Pública Estadual acarretaram impactos na configuração de suas bibliotecas, o que pode ser observado no quadro abaixo:
O acervo adquirido nos anos de 1940 e 1950 conta com obras de diversas áreas do conhecimento, como Agricultura, Medicina, Filosofia, Economia, Sociologia, Política, Antropologia, Direito, História, Geografia, além de obras relacionadas à temática da Indústria e Comércio[9].
Com a criação do Museu da Imigração em 1993, a biblioteca passou a ter como principal temática as migrações, valendo-se da colaboração de outras instituições e de comunidades migrantes para diversificar seu acervo, alinhando-se, assim, à uma prática museológica mais contemporânea[10]. Em 2023, a Coleção Bibliográfica segue em constante crescimento a partir da incorporação de itens que buscam dialogar com o tema das migrações e assuntos correlatos em diversos aspectos e abordagens[11].
Paralelo à atualização do acervo, atualmente desenvolvemos um trabalho que busca olhar para trás na tentativa de compreender a seguinte questão: quais bibliotecas existem entre as prateleiras da biblioteca do museu de 2023? Um caminho para iniciar nossa investigação foi nos debruçarmos sobre os fragmentos gravados sobre os suportes de seus exemplares: as marcas de proveniência bibliográfica. Estas, também denominadas “marcas de propriedade”, podem ser definidas como "[...] carimbo, etiqueta, selo branco ou outro distintivo, que identifica um documento como pertencente a um determinado particular ou instituição; marca de posse, pertence, marca pessoal"[12].
Quando observados atentamente, os itens do acervo exibem as mais variadas marcas de proveniência que, assim como as diversas instituições que funcionaram no edifício em questão, se sobrepuseram ao longo do tempo. Abaixo apresentaremos dois exemplares da Coleção Bibliográfica que exibem algumas delas.
A imagem apresenta a folha de rosto do livro "Instituições políticas brasileiras, v. 1: fundamentos sociais do Estado" de Oliveira Vianna, publicado em São Paulo em 1949 pela Livraria José Olympio. Nela observamos três marcas de proveniência distintas. A chancela circular "Serviço de Imigração e Colonisação - Biblioteca" indica que o livro pertencia à biblioteca do Serviço de Imigração e Colonização (SIC) da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, portanto, foi adquirido no período entre 1939-1967. O carimbo circular "Seção de Biblioteca e Documentação - São Paulo - DOT-SPS" no canto inferior direito indica que o livro foi incorporado pela coleção da biblioteca do Departamento de Orientação Técnica (DOT) da Secretaria da Promoção Social (SPS), o que possivelmente ocorreu entre 1967 e 1993. Já o carimbo "Museu da Imigração - Biblioteca" no canto inferior esquerdo da folha de rosto apresenta um antigo logo do Museu da Imigração, indicando que o item foi incorporado pela biblioteca do museu após junho de 1993.
Virando as páginas do livro até o seu fim, chegamos à última folha de guarda, que indica o valor "85 cruzeiros" e a data "9.11.1950". Acreditamos que este seja o valor pago pelo item com verba da Administração Pública Estadual, seguido da data de aquisição do mesmo.
Assim como no exemplo acima, vários itens do acervo possuem marcas simultâneas de distintos períodos, o que reforça a hipótese de que ocorreram sucessivas incorporações de itens decorrentes das mudanças nos órgãos administrativos aos quais as bibliotecas estavam subordinadas. Além disso, muitos dos exemplares possuem inscrições à mão indicando que foram adquiridos com recursos públicos.
Outro item que apresenta uma série de marcas de proveniência é "Estatistica" de Sigmumd Schott, traduzido do alemão para o português por Lyon Davidovich e publicado no Rio de Janeiro em 1934 pela Atlantida Editora.
Assim como no primeiro exemplo, esta folha de rosto apresenta a chancela circular "Serviço de Imigração e Colonisação - Biblioteca", o que o caracteriza como propriedade da biblioteca do Serviço de Imigração e Colonização da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. No entanto, o item expõe ainda o carimbo circular "Directoria de Terras, Colonização e Immigração - Bibliotheca" e um carimbo retangular "Directoria de Terras, Colonização e Immigração". Apesar de as três consistirem em marcas de propriedade da mesma instituição, o intervalo temporal entre a chancela e os carimbos se mostra pela diferença da grafia entre as palavras "biblioteca"/"bibliotheca", "colonisação"/"colonização" e "imigração"/"immigração"[13].
Observando a guarda do mesmo livro, nos deparamos com a antiga ficha de bolso da biblioteca da Diretoria de Terras, Colonização e Imigração (Figura 04). A ficha apresenta metadados básicos do exemplar, um possível número de tombo (487), além de instruções para a "boa organização da biblioteca". Na ficha também há uma mudança de grafia em relação à chancela e aos carimbos, em que aparecem as palavras "diretoria" (no lugar de “directoria”) e "bibliotéca" (no lugar de "biblioteca" ou "bibliotheca"). Próximas à ficha de bolso notam-se ainda as letras “CHI” escritas à lápis, um indício de que o item pertenceu, posteriormente, ao Centro Histórico do Imigrante (CHI) da Secretaria da Promoção Social, que esteve em funcionamento entre 1986 e 1993. Aparentemente, durante o período o item recebeu um novo número de tombo (30).
Além daquelas apresentadas acima, até o momento identificamos pouco mais de uma dezena de marcas de proveniência na Coleção Bibliográfica do Museu da Imigração, estando todas em fase de mapeamento, registro fotográfico e sistematização. O trabalho está sendo essencial para auxiliar a identificação das obras que compõem o tombamento da biblioteca realizado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) em 1982, que inclui livros e periódicos pertencentes à Secretaria de Governo, Secretaria da Imigração e Secretaria da Agricultura[14].
Por outro lado, para além do interesse de bibliotecários na compreensão da trajetória das coleções pelas quais são responsáveis[15], o mapeamento e estudo das marcas de proveniência dos itens do Museu da Imigração podem fornecer informações importantes sobre o papel dos conteúdos destas obras na própria história institucional. Isso porque no Departamento de Orientação Técnica da Secretaria da Promoção Social, por exemplo, os técnicos possuíam as seguintes atribuições:
[...] I - realizar trabalhos de documentação e pesquisa de interêsse social, que fundamentem e possibilitem a formulação da política de atuação da Secretaria e a elaboração de planos ou programas de trabalho;
II - elaborar normas técnicas e desenvolver padrões de atendimento;
III - desenvolver ou orientar o desenvolvimento de planos e programas da Secretaria;
IV - promover e desenvolver os programas de preparação do pessoal técnico da Secretaria[16].
A partir da identificação das obras pertencentes aos diferentes órgãos da Administração Pública Estadual em décadas passadas, será possível esboçar o arcabouço teórico, político e ideológico financiado pelo Estado para compor as bibliotecas que funcionaram na antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás e que nortearam os técnicos destas instituições na elaboração de políticas públicas de migração e de assistência social em São Paulo.
Com isso, nota-se a gama de possibilidades de pesquisas científicas a serem desenvolvidas a partir deste acervo, tocando em temas pertinentes a campos como a Ciência da Informação, Biblioteconomia, Museologia, História e Ciências Humanas em geral. Dessa forma, acreditamos no enorme potencial da Coleção Bibliográfica do Museu da Imigração como rica fonte de pesquisa para uma compreensão mais atenta da trajetória do museu que hoje a abriga, assim como dos demais órgãos que exerceram suas atividades no edifício da antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás nos últimos 135 anos.
Referências e notas
[1] PAIVA, Odair da Cruz; MOURA, Soraya. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 98. (Coleção São Paulo no bolso).
[2] MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Política de Acervo do Museu da Imigração. São Paulo: Museu da Imigração do Estado de São Paulo, 2021. p. 13. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/acervo_e_pesquisa/documentos_de_gestao/politica-acervo-mi-rev-2021-05-10-2021-14-20.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.
[3] Entre os anos de 2010 e 2014 a instituição passou por um processo de restauro e requalificação, permanecendo fechada durante o período. Neste momento houve um significativo reposicionamento institucional, que passou a adotar a compreensão da migração enquanto fenômeno humano para além de temporalidades, grupos e nacionalidades específicas.
[4] O Museu da Imigração ocupa 30% do edifício onde funcionou a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, enquanto a entidade sem fins lucrativos Associação Internacional Arsenal da Esperança ocupa 70% dele. O Arsenal também possui uma biblioteca que presta diversos serviços aos seus acolhidos.
[5] Diferentemente do indicado em documentos produzidos pelo Museu da Imigração até o momento, afirmamos que a Secretaria da Promoção Social possuía uma biblioteca em funcionamento entre 1967 e 1986. Foram encontrados carimbos em itens da Coleção Bibliográfica com as inscrições "Serviço Social dos Menores - Biblioteca" e "Seção de Biblioteca e Documentação - São Paulo - DOT-SPS". "DOT" era a sigla utilizada para o Departamento de Orientação Técnica da Secretaria da Promoção Social do Estado de São Paulo, órgão que incorporou o Serviço Social de Menores em 1969. No entanto, não temos certeza se a biblioteca exerceu suas atividades durante todo o período no bairro do Brás. Isso porque também identificamos em alguns itens da atual biblioteca fichas de bolso com as inscrições "Secretaria da Promoção Social - Departamento de Orientação Técnica - Seção de Biblioteca e Documentação" e, logo abaixo, o endereço "Av. Brig. Lu[i]z Antonio, 1224 - 3º and. - S/ 33 - São Paulo - SP - Tel 34 7094".
[6] MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Política de Atendimento da Biblioteca do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. São Paulo: Museu da Imigração do Estado de São Paulo, 2023.
[7] MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Política de Acervo do Museu da Imigração. São Paulo: Museu da Imigração do Estado de São Paulo, 2021. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/acervo_e_pesquisa/documentos_de_gestao/politica-acervo-mi-rev-2021-05-10-2021-14-20.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.
[8] PAIVA, Odair da Cruz. Breve história da Hospedaria de Imigrantes e da imigração para São Paulo. 4 ed. São Paulo: Memorial do Imigrante, 2007. (Série Resumos, n. 7).
[9] PAIVA, Odair da Cruz; MOURA, Soraya. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 80. (Coleção São Paulo no bolso).
[10] MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Política de Acervo do Museu da Imigração. São Paulo: Museu da Imigração do Estado de São Paulo, 2021. p. 13. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/acervo_e_pesquisa/documentos_de_gestao/politica-acervo-mi-rev-2021-05-10-2021-14-20.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023.
[11] O escopo da Coleção Bibliográfica pode ser consultado na Política de Acervo da instituição. Disponível em: https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/acervo_e_pesquisa/documentos_de_gestao/politica-acervo-mi-rev-2021-05-10-2021-14-20.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023.
[12] FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do livro: da escrita do livro eletrônico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. p. 483.
[13] Para uma datação mais aproximada das chancelas e carimbos, sugerimos o desenvolvimento de pesquisa a partir das diferentes Reformas Ortográficas da língua portuguesa que ocorreram no Brasil ao longo do século XX.
[14] CONDEPHAAT - CONSELHO DE DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARQUEOLÓGICO, ARTÍSTICO E TURÍSTICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resolução 26, de 06 de maio de 1982. fl. 21. In: _____. Processo 20949-79-Arquivos - Acervo Arquivístico da Hospedaria dos Imigrantes. São Paulo: CONDEPHAAT, 1982. Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/wp-content/uploads/2013/12/Ipatrimonio-Processo-20949-79-Arquivos-da-Hospedaria-dos-Imigrantes.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.
[15] GREENHALGH, Raphael Diego. Homero Pires: o colecionismo bibliográfico e as marcas de proveniência. Em Questão, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 431-431, jan./mar. 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245281.402-431. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/111605/64962. Acesso em: 21 mar. 2023.
[16] SÃO PAULO (Estado). Decreto n. 51.233, de 13 de janeiro de 1969. Fixa a estrutura da Secretaria da Promoção Social e dá outras providências. Diário Oficial [do] Estado de São Paulo: Diário do Executivo, p. 2, 14 jan. 1969. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1969/decreto-51233-13.01.1969.html. Acesso em: 21 mar. 2023.