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Apatridia: entre as complexidades e desafios
Bianca Alves – Assistente de Pesquisa do Museu da Imigração
A nacionalidade, em termos legais, é o elo estabelecido entre um Estado e um indivíduo, conforme as leis vigentes em uma determinada jurisdição [1]. Apesar de parecer um conceito simples e intrínseco a todos, uma considerável parcela da população não está vinculada a nenhum país, enfrentando assim uma série de desafios decorrentes dessa condição, denominada apatridia.
O apatridismo refere-se a indivíduos que não são reconhecidos como pertencentes a nenhum Estado, seja este o país de seu nascimento ou de residência, podendo ou não ser o mesmo lugar. Em outras palavras, um apátrida não possui nenhuma nacionalidade, e em casos de países que adquirem esse vínculo jurídico-político através da descendência, por exemplo, a criança nascida no território, não será considerada pertencente a ele, caso os pais não sejam nativos. Essa situação ocorre por diversasrazões, incluindo a discriminação de gênero, étnica, religiosa, divisões geográficas e/ou em detrimento de conflitos políticos. [2]
De acordo com o Relatório de Tendências Semestrais do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), existem aproximadamente 4,4 milhões de apátridas no mundo [3]. Sendo assim, é fundamental ressaltar que essa considerávelparte dos indivíduos, enfrentam uma série de obstáculos que cerceiam os direitos básicos de um cidadão.
Após a Segunda Guerra Mundial, diante da situação fragilizada de deslocamento que milhares de pessoas tiveram de lidar, se fez presentea necessidade de um aparatojurídico que pudesse contemplar os indivíduos invisibilizados nesse processo. Assim surgiu a Convenção de 1954, que até a atualidade, permanece sendo um dos instrumentos em forma de tratado internacional que visa protegeros direitos dos apátridas, estabelecendo padrões mínimos para seu tratamento. [4]
Apesar da Convenção delinear de maneira clara e objetiva, a exigência de condições essenciais de vida e garantia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, é fato que, algumas nações, ainda assim, fazem o uso indevido, ou nenhum, dessas disposições gerais estabelecidas.
Um bom exemplo disso, é a questão da apatridia na República Dominicana. Por décadas, com o intuito de fomentar o comércio da cana-de-açúcar, o país desempenhou um papel ativo ao promover e incentivar a migração de haitianos para as lavouras, na intenção de baratear a mão de obra. Após todo o processo de deslocamento, essa parte da população, que encontrava-se em uma situação de vulnerabilidade social, era submetida a condições de vida insustentáveis. Isso se deve, em grande parte, à falta da aplicação assertiva das políticas específicas existentes. [5]
Não obstante as numerosas denúncias e conflitos que assolavam o país, as adversidades na República Dominicana perduraram, resultando em uma sequência contínuade violências. No caso dos haitianos, devido às condições tumultuadas do processo diaspórico, a maioria chegava ao novo país desprovida de documentos que atestassem sua nacionalidade. Isso, automaticamente os colocava na condição de migrantes indocumentados, facilitando os abusos e a exploração, uma vez que também não eram reconhecidos como cidadãos dominicanos, ou seja, tornando-se então, apátridas. [5]
Nesse contexto, é indubitável a restrição dos direitos fundamentais. Ao não serem vistos como pertencentes àquele Estado, há uma probabilidade considerável de lacunas nas leis serem aproveitadas, resultando na ausência de condições fundamentais para a sobrevivência e proteção dessas pessoas como moradia, educação, saúde e todas as outras garantias que são intrínsecas ao indivíduo. Ademais, o exemplo supracitado, destaca como práticas históricas e políticas podem perpetuar a condição de apatridia, impactando de maneira desproporcional os mais vulneráveis. A exploração de mão de obra migrante, aliada à falta efetiva da prática dos aparatos legais, cria uma população à margem de condições básicas de sobrevivência.
Pensando nisso, vale destacar que existem níveis de complexidade ainda mais acentuados do que se pode imaginar dentro desse contexto. A Convenção de 1954 menciona apenas a unidade "apátrida", mas há uma dualidade nesse termo que gera distinções entre as pessoas inseridas no mesmo grupo. Enquanto os apátridas de jure são abrangidos pelas diretrizes jurídicas, os apátridas de facto, não têm conexão com nenhum tratado legal específico, ocupando, por conseguinte, uma posição ainda mais fragilizada. De acordo com o Diálogodo Alto Comissariado sobre os Desafios de Proteção, conduzido em 2010, essesfatores também contribuem para obstáculos na prevenção do apatridismo e na proteção dos indivíduos afetados. [6]
Explorando as nuances dentro do principal eixo, é importante abordar também o recorte dos apátridas refugiados, ao considerarmos as interseções históricas destes termos. Em situações específicas, quando um indivíduo se encontra fora de seu país de origem devido a motivos que se enquadram nas definições estabelecidas pela Convenção de 1951 para Refugiados, verifica-se uma sobreposição no aparelho jurídico que protege essas pessoas, caso elas se enquadrem em ambas as categorias.
Em outras palavras, no contexto legal, a condição de refúgio terá precedência sobre a apatridia para apátridas refugiados. Isso, no entanto, não abrange boa parte dessa população, uma vez que nem todo apátrida é considerado refugiado [7]. Entretanto, essas pessoas também estão sujeitas a serem ignoradas e, frequentemente, têm sua prerrogativa velada. Algo que, mais uma vez, contribui para afastar essa problemática de uma resolução definitiva.
Em conclusão, o apatridismo se revela como um cenáriodesafiador e sensívelque transcende as fronteiras legais e sociais. A presença de milhões de indivíduos sem um lugar para de fato pertencer e ter suas demandas assistidas, não apenas aponta para falhas na implementação efetiva dos princípios estabelecidos pelos tratados internacionais, mas também destaca a necessidade de reforçar medidas destinadas à educação pública sobre o assunto. Para superar a apatridia, é essencial não apenas fortalecer os marcos legais, mas também fomentar uma mudança cultural que promova a inclusão e o respeito pelas garantias fundamentais de cada pessoa. Somente ao reconhecer a complexidade desse fenômeno e ao adotar abordagens amplas, poderemos aspirar a um futuro onde todos os indivíduos sejam reconhecidos como membros de uma comunidade global, desfrutando plenamente de seus direitos e deveres.
Foto de chamada da publicação: Documento de Ulitin Helene em que consta a condição de apátrida/ Acervo: Museu da Imigração.
Referências
[1] PUCSP. Enciclopédia jurídica: nacionalidade (2022). Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/494/edicao-1/nacionalidade. Acesso em: 18 de Outubro de 2023.
[2] ACNUR. Campanhas e Advocacy: Entendendo a apatridia. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/campanhas-e-advocacy/ibelong/. Acesso em: 18 de Outubro de 2023
[3] UNHCR. Mid-YearTrends 2023. Disponível em:
https://www.unhcr.org/mid-year-trends-report-2023. Acesso em: 18 de Outubrode 2023.
[4] ACNUR. Manual de proteção aos apátridas. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_prote%C3%A7% C3%A3o_aos_ap%C3%A1tridas.pdf. Acesso em: 19 de Outubro de 2023.
[5] GEDIEL, José Antônio Peres;GODOY, Gabriel Gualanode. (2016) Refúgioe Hospitalidade. p.149.
[6] ACNUR. Diálogo do Alto Comissário sobre os Dasafios de Proteção (2010). Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Dialogo_do_Alto_Comissario_2 010_-_Lacunas_de_Protecao_e_Respostas_-_Documento_Principal.pdf. Acesso em: 19 de Outubro de 2023.
[7] ACNUR. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954). Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre_o_Estatuto_ dos_Apatridas_de_1954.pdf. Acesso em: 19 de Outubro de 2023.