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Cenário do refúgio atual: o que nos revelam os números?
Evelize Moreira – Analista de Pesquisa
Nos conteúdos anteriores do blog, pudemos acompanhar o processo de entendimento por parte do Estado brasileiro do que é uma pessoa refugiada, inicialmente considerando a crise migratória gerada pela Segunda Guerra Mundial. Também vimos como o Brasil se apresenta na proteção às pessoas solicitantes de refúgio e no desenvolvimento e estabelecimento de direitos desses sujeitos, assim como a situação de pessoas apátridas, que acabam sendo invisibilizadas em muitos casos, devido à falta de garantia de direitos fundamentais. Dando seguimento as postagens sobre o tema do refúgio, esse texto vem mais uma vez trazer dados e informações sobre os deslocamentos forçados no mundo, e principalmente para o Brasil.
Este breve artigo apresentará de forma condensada dados do cenário atual sobre a emigração forçada, com os números do refúgio no mundo, dando destaque ao Brasil e às nacionalidades que mais tem entrado com processos de solicitações de refúgio no país, assim como suas motivações e necessidades para esses pedidos: Venezuela, Angola e Cuba.
Apesar da importância de não se ater somente aos números quando pretendemos entender a situação de pessoas refugiadas e os deslocamentos humanos, os relatórios gerados pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) [1] e Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) [2], conseguem nos dar um panorama de como tem se apresentado o contexto das emigrações forçadas.
Como trazido pelo último relatório do OBmigra, a caracterização demográfica das migrações consegue revelar alguns aspectos e marcas dos deslocamentos humanos e auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas para a população em situação de refúgio ou solicitantes de reconhecimento da condição de refugiados no Brasil. Os deslocamentos humanos, ainda que forçados, estão em constantes transformações e muitas vezes desafiam os modelos tradicionais de migração ou mesmo os cenários nas sociedades de acolhida, e por isso, precisam ser entendidos através de diversos vieses.
Mas o que podemos entender através de dados demográficos sobre as migrações forçadas?
Há atualmente no mundo 108,4 milhões de pessoas deslocadas à força. Deste total, 35,3 milhões são pessoas registradas como refugiadas, sendo 52% dessa população originada de apenas três países: Síria, Ucrânia e Afeganistão. Mundialmente os pedidos de refúgio mantém escala evolutiva e estão ultrapassando todas as estatísticas anteriores. Mesmo com dados como no ano de 2022, onde 339,300 pessoas em situação de refúgio retornaram para o país de origem, após resoluções de conflitos e cessar fogo, os números de regresso revelam que para cada pessoa que retornou, 22 outras se tornaram refugiadas durante o ano de 2022.
Os países que mundialmente mais tem recebido pessoas em situação de refúgio são Turquia, seguido do Irã e Alemanha. No presente, a Turquia acolhe cerca de 3.6 milhões de pessoas sírias, e mais 320 mil pessoas de outras nacionalidades, entre afegãos, iraquianos e ucranianos. O país, além de ser uma fronteira com a Síria, faz parte da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967. Em 2013, foi elaborada a primeira lei de asilo da Turquia, além da Lei sobre Estrangeiros e Proteção Internacional, de 11 de abril de 2014. A lei estabelece os principais pilares do sistema nacional de asilo no país e criou a Presidência da Gestão das Migrações (PMM), como a principal entidade responsável pela definição de políticas e pelos procedimentos relativos a todos os estrangeiros na Turquia. [3] Também, devido a sua localização, se torna um meio para chegar a outros países, principalmente da União Europeia, que inclusive tem exercido forte influência política no país, pela questão da crise migratória.
Já no contexto brasileiro, os números de pedidos de reconhecimento do status de refugiados também estão em constante crescimento. O país vem se destacando como um dos principais destinos da população refugiada na América Latina, devido a suas fronteiras e também por historicamente estar comprometido com medidas protetoras aos imigrantes, que garantem seus direitos em solo brasileiro, mas também tem chamado a atenção de pessoas provenientes de outros continentes.
“No ano de 2020, A cada 100 refugiados que saiam de outros continentes em direção à América do Sul, 63 ficavam no Brasil. Em 2020, havia 10,8 mil refugiados de 66 países diferentes vivendo em terras brasileiras, contra 6,3 mil refugiados vivendo em países vizinhos. Na Argentina, havia 2,4 mil refugiados; no Equador, 1,1 mil.” [4]
Até o ano de 2022, no Brasil, foram reconhecidas mais de 65 mil pessoas como refugiadas, o que caracterizou um aumento de 10% em relação ao ano de 2021. Mais especificamente, em 2022, as solicitações de reconhecimento da condição de refugiados giraram em torno de 50.355, provenientes de 139 países. Dentre os principais, podemos destacar Venezuela (67%), Cuba (10,9%) e Angola (6,8%). Outras solicitações recorrentes são do Afeganistão, Colômbia, China, Nigéria, Líbano, Marrocos e Gana. [5]
É importante destacar a região Norte nesse acolhimento, principalmente no Estado de Roraima, as cidades de Pacaraíma e a capital do estado, Boa Vista. Em 2022, 57,8% das solicitações apreciadas pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), foram registradas nas Unidades Federativas de Roraima, Amazonas e Acre. [6] Apesar das dificuldades de proteção e assistência, antes mesmo do grande fluxo migratório Venezuelano, o estado de Roraima, dispõe de ocupações organizadas por imigrantes e abrigos que são geridos por Organizações não Governamentais e pelo exército brasileiro, com a Operação Acolhida. [7]
Roraima sendo região fronteiriça da região Norte do Brasil, é um dos fatores, por exemplo, da busca de cidadãos venezuelanos pelo país como local de refúgio. Agregado a esse fator, mais de 73% das pessoas venezuelanas, abrigadas em centros de acolhidas em Roraima, veem oportunidades de emprego como um motivo para instalação definitiva em algum lugar ou região, o que caracteriza uma prioridade para as pessoas refugiadas, que é a busca por trabalho e meios de sobrevivência.
Outra causa que merece destaque no cenário brasileiro é o acolhimento da população indígena venezuelana refugiada, que em novembro de 2023 alcançou a marca de 10 mil pessoas. Em Boa Vista, há abrigos integrantes da Operação Acolhida que são voltados para a população.
“Desse total, 66% corresponde a etnia Warao, grupo étnico mais antigo da Venezuela, o qual vive na região delta do Orinoco há pelo menos oito mil anos. Outros 27% são da etnia Pemon, e o restante é composto pelas etnias Kariña, Eñepa e Wayúu.” [8]
Enquanto isso, as outras regiões brasileiras apresentam as seguintes estatísticas no acolhimento a pessoas em situação de refúgio: Sudeste (26,2%), com destaque para a capital, São Paulo, Sul (9,5%), com destaques para os Estados de Paraná e Santa Catarina, Centro Oeste (3,9%) e Nordeste (1,2%).
Motivos do Refúgio perante a lei.
É importante apontar que o pedido de refúgio por parte de uma pessoa que emigrou forçadamente não garante o status de refugiado em um país de acolhida, sendo os solicitantes de refúgio “potenciais refugiados”. Dependerá do Estado a decisão, dentro das normas estabelecidas, para o preenchimento de requisitos que valham ao reconhecimento como pessoa refugiada. Até o parecer final, a pessoa ficará com status de solicitante de refúgio.
As leis de diretrizes para o Estatuto dos Refugiados no Brasil (Lei 9.474 de 1997), classificam de forma geral algumas categorias de motivações aceitas para o deslocamento forçado de pessoas. Especificamente no país,
“No ano de 2022, a categoria de fundamentação mais aplicada para o reconhecimento da condição de refugiado foi “Grave e Generalizada Violação dos Direitos Humanos (GGVDH)”, responsável por 82,4% do total de fundamentações, seguida por “Opinião Política”, que representou 10,9% desse total.” [9]
Baseado nisso, podemos ver abaixo as motivações através de números de pedidos aceitos:
Fundamentação | Número de Pedidos |
Grave e generalizada violação dos direitos humanos | 3364 |
Grupo Social | 181 |
Nacionalidade | 5 |
Opinião Política | 443 |
Raça | 14 |
Religião | 44 |
Outros | 30 |
Fonte: OBMigra, Refúgio em Números 2023
Dentro do contexto das fundamentações, é importante destacar como ao longo dos anos, desde a Segunda Guerra Mundial, houve o alargamento da categoria social de refugiado e marcos de direito dessas pessoas, incluindo por exemplo, o fundado temor por perseguição em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero. Os pedidos de refúgio no Brasil registrados por pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ partem em maioria de homens homossexuais ou bissexuais, e de países do continente africano, como Nigéria, Gana e Camarões. O registro de mulheres lésbicas vem principalmente de Camarões, Angola e Gana. O pedido de refúgio de mulheres trans, vem sobretudo de Angola. O primeiro abrigo do país, voltado para refugiados LGBTQIAPN+ se instalou em Manaus, no ano de 2018. [10]
Especificando algumas motivações.
Como afirmado no início do texto, serão apresentadas mais a fundo as motivações de refúgio das três nacionalidades com maior quantidade de pedidos de reconhecimento da condição de refugiados no Brasil.
Venezuelanos
Segundo o site da Acnur, a Venezuela conta com 5,4 milhões de refugiados e migrantes globalmente. Além disso, tramitam mais de 800 mil solicitações de refúgio no mundo e cerca de 2,5 milhões de venezuelanos estão vivendo sob outro tipo de status legal em países da América.
A partir de 2014, houve o aumento de 8 mil por cento de Venezuelanos buscando reconhecimento do status de refúgio, a partir da crise que se iniciou em 2013, com a morte de Hugo Chávez, ex presidente do país, e a transição para o governo de Nicolás Maduro, quando a inflação beirava 800% ao ano, o que gerou um colapso social e econômico e consequências como fome e violência. Entre 2013 e 2017 o PIB do país diminuiu 37%. Em 2017, 87% da população do país (30 milhões de habitantes) vivia na linha da pobreza e sob forte presença militar. [11]
Angolanos
A Angola, possui um histórico de Guerra Civil que perdurou de 1975 a 2002, gerando 1,5 milhões de mortos e mais de 2 milhões refugiados durante o período. As consequências, como o fato de o país ainda possuir minas terrestres ativas, que foram implantadas durante a guerra, e a vida precária pós-guerra, provocaram migrações internas, principalmente para a capital Luanda, mas também emigrações forçadas para outros países. [12]
Os estados mais comuns de instalação no Brasil são Rio de Janeiro e São Paulo, e a língua portuguesa como elo, acaba sendo também um dos motivadores da escolha pelo Brasil. Segundo a Folha de São Paulo, a população de pessoas provenientes de Angola que foram atendidas por abrigos e casas de acolhida na capital, cresceu em 757% entre 2020 e 2022. [13]
Cubanos
No ano de 2022, entre janeiro e novembro, foram feitas 4.241 solicitações de pedidos de refúgio por parte de cidadãos cubanos ao Brasil, registrando um número recorde, ainda maior que em épocas de pandemia de Covid-19. [14] Entre os motivos para refúgio, além das questões políticas históricas em Cuba, que levantam diversos debates em relação a liberdade de expressão, houve a perda do poder de consumo, mesmo para pessoas com ensino superior e bons empregos, as quedas de receitas do turismo após a pandemia, além da busca por oportunidades econômicas e o despertar em relação a problemas do país, a partir do maior acesso à internet. É comum que cubanos tenham parentes vivendo no Brasil, que ficaram no país após o programa Mais Médicos. Ademais, o Brasil é um país com custo de vida mais barato do que Estados Unidos.
***
Diante dessas questões, é possível vislumbrar que além dos motivos fundamentados determinados pelas leis de diretrizes para o Estatuto dos Refugiados no Brasil, um grande motivador dos pedidos de refúgio tem sido por questões econômicas e esperança de reestabelecimento de uma vida digna no Brasil. O mercado de trabalho brasileiro atual não absorve de forma efetiva estes grupos. Segundo uma pesquisa feita pelo Fórum Empresas com Refugiados, 55% dos refugiados estão sem emprego. Para os que estão empregados, 16,3% atuam de maneira informal e 14,9 % de maneira formal. Grande parte atua fora da área de formação. [15] Ainda assim, é preciso reconhecer que o Brasil dispõe de uma legislação avançada na área das migrações e inclusive possui alta aceitação populacional em relação aos deveres do país no acolhimento de refugiados. [16]
Nessa reflexão, é importante pensar e considerar que os números, estatísticas e dados demográficos, como trazidos neste texto, possam ser aliados nas mãos do Estado brasileiro na promoção dos direitos básicos para pessoas em situação de refúgio, de modo a destacar cada dia mais o país no acolhimento de pessoas vítimas da emigração forçada, cumprindo com o compromisso histórico que assumiu desde 1948, e assumindo as transformações mundiais do deslocamento humano.
Por fim, deixo indicações de filmes que tratam sobre o tema do refúgio no mundo e que são capazes de nos levar a refletir mais ainda sobre os cenários globais: https://www.acnur.org/portugues/2023/08/01/15-filmes-para-entender-os-desafios-enfrentados-pelos-refugiados/
Crédito da imagem: Freepik
REFERÊNCIAS:
[1] https://www.unhcr.org/global-trends-report-2022
[2] JUNGER, Gustavo et al. Refúgio em números, Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), 2022.
[3] https://www.unhcr.org/tr/en/refugees-and-asylum-seekers-in-turkey
[4] https://piaui.folha.uol.com.br/o-brasil-dos-refugiados/
[5]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/01/crise-em-cuba-leva-a-recorde-de-pedidos-de-refugio-de-cubanos-no-brasil.shtml
[6] https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/
[7] RODRIGUES, Igor de Assis; CAVALCANTE, João Roberto; FAERSTEIN, Eduardo. Pandemia de Covid-19 e a saúde dos refugiados no Brasil. Physis: Revista de saúde coletiva, v. 30, p. e300306, 2020.
[8] https://www.acnur.org/portugues/2023/12/04/eleita-miss-trans-em-roraima-indigena-warao-refugiada-encontra-seguranca-e-acolhimento-no-brasil/
[9] https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/
[10]FRANÇA, Isadora Lins; FONTGALAND, Arthur. Gênero, sexualidades e deslocamentos: notas etnográficas sobre imigrantes e" refugiados LGBTI" no Norte do Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 28, p. 49-68, 2020.
[11] CALAIS, Bernardo Affonso et al. A crise dos refugiados venezuelanos e os impactos no Brasil. Jornal Eletrônico Faculdades Integradas Vianna Júnior, v. 12, n. 1, p. 19-19, 2020.
[12] HAYDU, Marcelo et al. Refugiados angolanos em São Paulo: entre a integração ou segregação. 2010. REPOSITORIO PUCSP Teses e Dissertações dos Programas de Pós-Graduação da PUC-SP Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
[13]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/03/numero-de-angolanos-em-abrigos-dispara-em-sao-paulo.shtml
[14]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/01/crise-em-cuba-leva-a-recorde-de-pedidos-de-refugio-de-cubanos-no-brasil.shtml
[15]https://exame.com/carreira/estudo-mostra-que-55-dos-refugiados-estao-sem-emprego-no-brasil-por-que-contrata-los/
[16]https://veja.abril.com.br/mundo/brasil-e-segundo-pais-do-mundo-que-mais-apoia-acolhimento-a-refugiados#google_vignette