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O Brasil na Proteção de Refugiados: Trajetória Histórica e Enquadramento Legal
Por Nicole Alexsandra Silva
No presente período, testemunhamos um dos mais significativos fluxos de migração forçada registrados na história. Através da implementação de instrumentos jurídicos e políticas públicas, bem como do estrito cumprimento de tratados e princípios internacionais concernentes ao tema, o Brasil se consolidou como uma nação de referência no que tange ao acolhimento e proteção de refugiados. No âmbito histórico, a constituição de órgãos oficiais e Organizações Não-Governamentais fortaleceu os alicerces do amparo e assistência a essa parcela da população deslocada.
A fundação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em 1950, representa um marco extremamente significativo na história da proteção e assistência aos refugiados em todo o mundo. No contexto histórico de sua criação, a organização foi proposta como uma resposta direta às profundas consequências da Segunda Guerra Mundial, época na qual milhões de indivíduos foram compelidos a abandonar seus lares e buscar abrigo em terras estrangeiras. Sendo assim, tendo como base a Convenção de 1951, a ACNUR foi concebida com o propósito de coordenar esforços internacionais para garantir a proteção e assistência aos refugiados europeus, além de buscar soluções sustentáveis para as situações por eles enfrentadas. [1]
Contudo, para abranger refugiados para além do continente europeu, o Protocolo de 1967 [2] ampliou e consolidou as proteções estabelecidas pela Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951. Com isso, passou a abranger uma gama mais ampla de migrantes forçados que surgiram após a Segunda Guerra Mundial e não foram contemplados na Convenção. Uma de suas maiores contribuições foi a retirada da limitação temporal que restringia suas proteções apenas aos refugiados provenientes de eventos ocorridos até 1951.
No cenário nacional, após o fim da Ditadura Militar, com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988 consolidou-se a criação de políticas públicas no âmbito dos direitos humanos. [3] Neste contexto, no artigo 5.°, caput, consta que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”[4]. Dessa forma, a nossa Carta Magna assenta a igualdade de direitos entre brasileiros e estrangeiros, abrangendo indiretamente solicitantes de refúgio e refugiados. Assim, juntamente com a lei 9.474/97 que seria instituída anos depois, é uma das bases legais fundamentais para a proteção dos refugiados no ordenamento jurídico brasileiro.
Antes da criação da principal lei para a proteção dos direitos de refugiados no país ser instituída, foi instaurada a Portaria Interministerial 394 de 1991 [5]. Esta Portaria tinha como intuito regulamentar a condição jurídica do refugiado no Brasil, expandindo seus direitos e estabelecendo o procedimento específico para a concessão de refúgio envolvendo a ACNUR e o governo brasileiro.
No ano de 1992, ao receber aproximadamente 1200 angolanos em busca de refúgio da guerra civil de seu país, o Brasil demonstrou uma atitude mais acolhedora em relação aos refugiados, transcendendo o limite conceitual estabelecido pela Convenção de 1951 e pelo Protocolo de 1967. Esse movimento resultou em uma expansão das medidas de proteção oferecidas a essas pessoas. [6]
Com base na lei 9.474 [7], que estabelece diretrizes para o estatuto dos refugiados no Brasil, vigente desde 22 de julho de 1997, podem ser reconhecidos como refugiados pessoas que se encontram fora de seu país de origem e têm fundamentados temores de perseguição por motivos de raça, religião, grupo social ou opiniões políticas e não podem ou não desejam valer-se da proteção de sua nação (conforme disposto no inciso I do artigo 1°). Além disso, conforme previsto neste arcabouço legal, o conceito de refugiado também abrange pessoas compelidas a abandonar seu país em razão de violações graves e generalizadas dos direitos humanos (como previsto no inciso III do artigo 1°).
A partir disso, houve a criação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) que passou a ser responsável por conduzir o processo de reconhecimento do status de refugiados no Brasil. Assim, possuindo uma função essencial ao analisar meticulosamente as circunstâncias individuais de cada solicitante e desempenhando um papel determinante na avaliação dos pedidos de refúgio. De acordo com o Observatório de Migrações Internacionais, desde a promulgação da lei 9.474/1997, 351.174 solicitações de refúgio foram apresentadas [8].
Na contemporaneidade, observa-se um notável aumento no número de migrantes provenientes da Venezuela, principalmente devido à persistente crise política, social e econômica no referido país. [9] Desde meados de 2015, milhares de cidadãos venezuelanos têm procurado abrigo no território brasileiro, visando escapar da violência e da instabilidade política em sua nação. Somente em 2022, um total de 33.753 imigrantes venezuelanos formalizaram pedidos de reconhecimento como refugiados. Em seguida, destacam-se Cuba e Angola, com 5.484 e 3.418 solicitações, respectivamente [8]. Este fenômeno representa um desafio importante no atual cenário de migrações internacionais e demanda uma abordagem humanitária e coordenada para garantir a proteção e a integração adequada desses indivíduos.
Ainda que existam muitas questões que podem e devem ser aprimoradas, faz-se de extrema importância ressaltar os notáveis avanços alcançados até o momento. O Brasil exemplifica a abordagem da questão migratória e de refúgio centrada na humanidade e na promoção dos direitos fundamentais. Isso implica em enxergar no refugiado, no requerente de refúgio e no migrante forçado, indivíduos dotados de direitos e dignidade.
Fica claro, portanto, que a trajetória do Brasil na proteção de refugiados é um exemplo notável de uma conduta benevolente e juridicamente sólida. No entanto, apesar desse comprometimento, a inclusão social de refugiados no Brasil enfrenta desafios significativos como discriminação, alta taxa de desemprego, barreiras linguísticas, acesso limitado à educação, condições de moradia precárias e desigualdade socioeconômica. À vista disso, mesmo diante dos consideráveis progressos, é fundamental que o Brasil persista na busca pela concretização do princípio fundamental consagrado na Constituição de 1988, de que “todos são iguais perante a lei”, assegurando, na prática, a segurança e a dignidade daqueles que encontram refúgio em território brasileiro.
[1] ACNUR. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951).
[2] ACNUR. Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados.
[3] BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (org.). Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010. p.34.
[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
[5] ANDRADE, José Henrique F. Aspectos históricos, jurídicos e políticos da proteção de refugiados no Brasil (1951-1997). In: JUBILUT, Liliana Lyra; GODOY, Gabriel G. (orgs.). Refúgio no Brasil: comentários à Lei 9.474/97. São Paulo: Quartier Latin, 2017.
[6] JUBILUT, Liliana Lyra. Panorama Histórico do refúgio no Brasil. In: O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007. p. 175.
[7] BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências. Brasília, 1997.
[8] SILVA, Gustavo Junger da; CAVALCANTI, Leonardo; SILVA, Sarah Lemos; TONHATI, Tania; COSTA, Luiz Fernando Lima. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento das Migrações. Brasília, DF: OBMigra, 2023.
[9] FREITAS, Elisa dos Santos.; FELIX, Germana Pinheiro de Almeida. A proteção da pessoa humana e direito dos refugiados: uma análise do fenômeno migratório venezuelano no Brasil. Bahia: 2019.