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Programa de Residência Artística 2019
Sábado, dia 31 de agosto, às 11 horas, ocorrerá a inauguração das instalações resultantes da primeira edição do Programa de Residência Artística do Museu da imigração. Durante três meses, os artistas Emilia Estrada (Argentina) e Nicolas Llanos (Colômbia) pesquisaram os acervos da instituição, conheceram os diferentes ritmos e dinâmicas do museu e conviveram com os trabalhadores e trabalhadoras das diferentes equipes. O Programa abre novas possibilidades para o Museu da Imigração recolocar alguns debates em torno do lugar da arte em museus históricos, da própria matriz desde a qual atua o Museu e, obviamente, sobre o fenômeno da migração. Nesta primeira publicação dedicada ao Programa, propomos uma breve reflexão acerca de um tema mais geral: afinal, que figura é esta a do artista imigrante? [Clique aqui para ler o post onde apresentamos os diferentes usos dos termos “migrante”, “imigrante”, “emigrante” e “refugiado”].
Uma importante tradição do pensamento social considera a figura do imigrante a partir do seu vínculo com o trabalho. Para Julia Kristeva [1], o/a imigrante é aquele/a que, por ter deixado o mundo que conhecia antes de se deslocar, carrega consigo uma noção ampliada de sacrifício. Segundo essa autora, essa noção de sacrifício se transfere a um dos bens mais importantes que carregou consigo no deslocamento, a sua força de trabalho. Para Kristeva, então, o imigrante “é aquele que trabalha”.
Apesar de Abdelmalek Sayad [2] também ressaltar a importância do trabalho para compreender a figura sociológica do imigrante, o autor contextualiza esse vínculo no que considera o paradoxo fundamental da imigração: da mesma forma que para a sociedade de acolhida os imigrantes são trabalhadores que um dia voltarão aos seus países de origem, marcando o caráter provisório do fenômeno; parar os imigrantes, a situação de estar fora de seu país -ou em determinado país de acolhida- também é só uma condição temporária. O paradoxo surge na medida em que, para ambos, sociedade de acolhida e imigrantes, essa “provisoriedade” tem um caráter estendido no tempo, como se esse “provisório” pudesse durar indefinidamente. Assim, enquanto houver trabalho, as sociedades parecem “tolerar” a presença imigrante, da mesma forma que os imigrantes aceitam permanecer enquanto houver trabalho.
O argumento do autor, então, é de que no regime internacional organizado em Estados-nações, “a única razão de ser da permanência do imigrante é o trabalho”, aspecto que se vê refletido, por exemplo, na recusa de muitos países, estados e cidades de conceder ao imigrante o direito ao voto, como é atualmente o caso do Brasil. Reduzido a uma mera força de trabalho que pode se deslocar em um momento próximo, indefinido, a própria noção de cidadania se torna problemática na imigração. Como uma primeira hipótese, então, poderíamos considerar que essa definição reducionista do ser imigrante pode estar nas bases da dificuldade de reconhecimento da figura do artista imigrante. Por que se daria tal fenômeno? Afinal, arte também não é trabalho?
Na tradição moderna ocidental, a arte ocupa o lugar das criações humanas realizadas no âmbito do extracotidiano, sendo os museus os espaços por excelência de contato e fruição com as obras artísticas. Segundo o antropólogo Alfred Gell [3], essa configuração que guarda aos objetos artísticos um lugar reservado, contraproduz a noção de que existem outros objetos que não podem ser classificados como arte. Segundo o antropólogo, esse é o fundo desde o qual as sociedades ocidentais realizam a importante distinção entre “mero artefato” e “objeto artístico”. Segundo essa distinção, tudo se passa como se os objetos só pudessem ser divididos entre aqueles utilizados na vida prática (artefatos) e aqueles que tem significados por si próprios (obra de arte), descolados das funções assumidas na vida cotidiana.
Apesar de estarmos longe de querer esgotar essa discussão – que inclusive ainda está em ampla disputa, em vários campos do saber - gostaríamos de ressaltar o efeito de distanciamento do universo do trabalho que esse tipo de concepção sobre a arte traz. Se a arte é da ordem do extracotidiano, o trabalho, atividade por excelência da cotidianidade nas sociedades modernas, só poderia gerar meros artefatos. É nesse registro que a arte produzida por imigrantes pode assumir um caráter de mero artefato frente a sociedade de acolhida.
Na prática, porém, os e as migrantes internacionais residentes no Brasil contam uma outra história. Há décadas, se organizam em praças públicas, adentram às instituições de cultura e produzem sua arte. Desde o ponto de vista das instituições, o conceito de “agentes culturais migrantes” [4], criado da ação e reflexão direta desses atores, tem sido fundamental para a possibilidade de reconhecimento desse trabalho que realizam. Mais amplo que “artista”, o termo abre caminho o para atividades que misturam práticas cotidianas, ritualísticas, vinculadas ao próprio trabalho e também políticas. Deixa em aberto, assim, a possibilidade de que esses próprios atores se definam como “artistas” quando o considerarem adequado, chamando a atenção para a própria intencionalidade que move a auto-identificação.
31 de agosto
Inauguração das obras | Programa de Residência Artística
11h | gratuito e sem inscrição
Com o objetivo de estimular a produção cultural de migrantes internacionais, o Museu da Imigração lançou a primeira edição do Programa de Residência Artística. Com a temática “Acolhida”, a iniciativa, que recebeu mais de 50 inscrições de migrantes e refugiados, buscou dar luz às memórias e às experiências vividas por essas pessoas no momento da sua chegada ao país de destino. Na edição de 2019, Emilia Estrada, argentina, e Nicolás Linares, colombiano, foram os artistas selecionados para essa experiência e terão suas obras inauguradas no dia 31 de agosto, às 11h.
Referências
[1] KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994
[2] SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade.São Paulo, Edusp,1998, 299 pp.
[3] Gell, Alfred. “Vogel’s Net: Traps as Artworks and Artworks as Traps.” Journal of Material Culture, vol. 1, no. 1, Mar. 1996, pp. 15–38,
[4] DE BRANCO, Cristina. Agentes e atuações artístico-culturais imigrantes latino-americanas contemporâneas na cidade de São Paulo e a invenção de novas latinoamericanidades. Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina. 2016.