Blog
Compartilhe
Mulheres e Migração: Mulheres migrantes e as mobilidades na pandemia
A pandemia da COVID-19 talvez seja um dos eventos de maior impacto na contemporaneidade para as mobilidades humanas. Desde a proibição de viagens internacionais às mudanças em nossa forma de sociabilidade, os vetores de mudança são inumeráveis e, mesmo depois que os contágios e mortes vierem a se reduzir, vamos seguir compreendendo as transformações engendradas por esse acontecimento de escala global. Neste texto, vamos apresentar uma sistematização parcial sobre como a pandemia afeta principalmente a situação das mulheres migrantes.
Para isso, apresentaremos alguns temas recorrentes que surgiram em publicações e lives do Museu da Imigração. Centraremos nossas atenções principalmente às publicações da série "Mobilidade Humana e Coronavírus", além de cursos e transmissões ao vivo realizados nas redes da instituição. Vale ressaltar que a maior parte do material produzido sobre a pandemia nesses últimos meses foi com a contribuição de mulheres migrantes ou se propunha a pensar a sua situação. Ao buscar entender a situação dessas mulheres na pandemia, dessa forma, acessamos por uma perspectiva muitas vezes silenciada, uma compreensão do próprio fenômeno migratório, a luz desses novos acontecimentos.
O "velho normal" na pandemia
Mais do que gerar novas questões ou novos problemas sociais, uma hipótese que tem sido considerada por diversos analistas é a de que a pandemia da COVID-19 intensificou elementos e mecanismos já existentes anteriormente em nossas sociedades.
Um exemplo de como, no contexto pandêmico, as referências anteriores puderam ser utilizadas pelos próprios atores sociais se encontra no texto "O espaço que eu deixei", entrevista realizada com Patricia, migrante internacional no Brasil, que naquele momento havia ido fazer uma curta viagem para a sua cidade natal, Arequipa, Peru. Lá, depois de muitos anos vivendo longe, nossa entrevistada se via em quarentena obrigatória com a sua mãe, avó e tia. Feita em março de 2020, quando todos nós estávamos nos acostumando com as dinâmicas de tentar ficar em casa, a publicação mostra como Patricia via uma similaridade de ritmos no cotidiano entre a condição de quarentena, longe das movimentações da rua, com a da maternidade vivenciada majoritariamente até aquele momento longe da sua cidade natal, no Brasil. Segundo ela, o que havia de diferente naquela ocasião específica de viagem temporária era que, mesmo sem ter planejado, poderia ter o apoio das mulheres da sua família para cuidar da sua filha.
Em outros casos, é possível ver como as vulnerabilidades existentes já antes do novo Coronavírus, vinculadas a alguns dos marcadores sociais, como gênero, raça, classe e nacionalidade, chegam a superar o que é perceptível sobre a pandemia. O caso de Lena[1], mulher cabo-verdiana, de 52 anos, entrevistada por Heloisa Freitas, talvez nos ofereça um dos relatos mais significativos nesse sentido. Em "A gente já pagou pelo nosso crime. Então, dá-nos condições de vida ali fora para não cometermos o mesmo crime, entendeu?" conhecemos a sua trajetória como mãe e avó, a sua experiência no cárcere em São Paulo e os caminhos que a levaram até o regime aberto, em que se encontrava em meados de 2020, quando chegou a pandemia. A prisão é descrita por Helena, a entrevistadora que frequenta aquele espaço, como "um ambiente inóspito e violador de direitos", apontando para o fato de que os aspectos degradantes daquele cotidiano já vinham de muito antes. Nesse sentido, Lena fala, principalmente, da má alimentação, da ausência de produtos básicos de higiene e da negligência com a saúde das mulheres encarceradas. Para ela, a profunda precariedade gerada pela própria prisão era tamanha que a pandemia não pôde mais que se somar aos aspectos que já vinham de antes naquele local.
O trabalho é outro âmbito importante em que se dão algumas continuidades com as configurações anteriores à pandemia. Um dado da mobilidade contemporânea a se considerar, nesse sentido, é de que a demanda por participação das mulheres na migração global se relaciona principalmente aos empregos precarizados, majoritariamente no setor de serviços[2]. Assim, também pelo frágil vínculo desse tipo de ocupação, a deterioração econômica trazida pela pandemia afetou rapidamente a vida das mulheres migrantes.
Uma das entrevistadas que nos descreveu com precisão esse processo foi Luciana Kornalewski, produtora cultural que vive nos Estados Unidos há mais de 20 anos. Segundo ela, as várias ocupações exercidas por trabalhadoras migrantes, como house keeper (governanta), faxineiras, babás, cuidadores de cachorro e motorista, foram as primeiras a serem cortadas dos gastos das famílias, reduzindo ainda mais o mínimo de proteção social disponível a essas pessoas – muitas delas mantidas em situação de irregularidade migratória pelo Estado.
Principais fontes de renda familiar e do trabalho de cuidado
Apesar de ocorrerem de maneira generalizada, esses processos de piora nas condições econômicas de subsistência devem ser considerados na sua expressão generificada, principalmente porque as suas consequências diferem bastante entre mulheres e homens. Uma recorrência nas análises e entrevistas, nesse sentido, é chamar a atenção para a importância da posição de principal fonte de renda familiar dessas mulheres migrantes, além de serem as principais responsáveis pelo cuidado de filhos/as (e pais em muitos casos). Não poderemos nos deter aqui sobre o caráter transnacional desses fluxos de renda e de cuidado, mas esse é um tópico que vale a pena ser mencionado. O tema da dificuldade de envio das remessas e a preocupação com a condição de saúde com os familiares nos locais de origem é recorrente nas publicações analisadas, assim como a menção aos desdobramentos disso para a própria saúde das mulheres migrantes. O impacto que a pandemia alcança na vida delas tem muito a ver com essa posição que ocupam numa configuração que é, inclusive, transnacional.
Ao focalizar a análise sobre a vida nos espaços de fronteira latino-americanos, o artigo de Menara Guizardi, "Coronavírus, mulheres e fronteiras: reflexões latino-americanas", por exemplo, indica que o modo como essas mulheres que vivem, em grande medida, do trânsito de pessoas e mercadorias nas fronteiras responderiam à conjuntura pandêmica dependeria da posição que elas exercem dentro da estrutura econômica familiar. Para a autora, nesse sentido, seria errôneo considerar num automatismo o isolamento social e a paralisação da circulação como formas de proteção dessas mulheres, na medida em que por terem que garantir o sustento familiar, essas restrições poderiam estar empurrando-as ainda mais a se submeterem a condições mais vulneráveis de trabalho e circulação.
No texto "Senti que o mundo parou, mas as contas não. Até agora não para", Jhannyna Siñani, natural de La Paz, Bolívia, nos ensina a partir de sua própria experiência como esse tipo de aprofundamento da vulnerabilidade pode ocorrer. Ela conta que logo que chegou há 10 anos, foi trabalhar em São Paulo numa oficina de costura, onde a locatária do espaço a intimidava, fazendo-a crer que por estar fora de seu país não gozava de direitos mínimos. Jhannyna afirma ter escutado da sua patroa, inclusive, que a saída dos seus filhos de casa poderia resultar em prisão e na apreensão das crianças. Apesar de falar de uma situação anterior a da pandemia da COVID-19, o relato dessa entrevistada é uma importante contribuição para percebermos como para a mulher migrante as decisões em relação a sua mobilidade estão vinculadas a essa posição central na família e, ao mesmo tempo, os mecanismos de vulneração estão relacionados com essa mesma posição de principal responsável pela proteção de seus familiares.
Como mencionado, Menara nos alertava, em seu artigo, sobre as consequências não previstas da adoção de medidas de contenção da circulação e, mais grave talvez, da deterioração econômica que se seguiria da conjuntura pandêmica. Baseada em estudos anteriores, a autora indicava como a piora nas condições de vida poderiam incidir no aumento da violência masculina contra mulheres naqueles espaços. Em "Uma força que nos alerta", Tatyana Scheila Friedrich trata, justamente, do aumento desse tipo de violência contra mulheres e meninas migrantes, a partir de dados consolidados sobre o Brasil e outros países da américa-latina[3]. Segundo ela, alguns elementos contribuem para o agravamento da exposição de mulheres migrantes a esse tipo de violência: "estar distante de seu país e de suas relações pessoais originárias; não compreender com exatidão o sistema de justiça do país de destino; ter dificuldades linguísticas e comunicacionais; viver em ambiente familiar onde prevalece a cultura machista, além de já possuir os traumas psicológicos e até físicos decorrentes do processo migratório e que podem se agravar num contexto pandêmico de isolamento social, quarentena e confinamento".
Atuação em rede: endereçando demandas e vocalizando pautas
Se o isolamento muitas vezes contribui para intensificar esses mecanismos de vulneração e também de violência, a contrapelo desse processo, podemos encontrar nas ações articuladas em rede uma das potentes formas de agência das mulheres migrantes, relatadas em várias análises e entrevistas.
Em uma live realizada pelo Museu da Imigração[4], por exemplo, as ativistas Nádia Ferreira, Natali Mamani e Maria Fernanda Pascoal nos explicaram como as suas organizações e os seus coletivos de migrantes[5] puderam acionar e ampliar uma atuação em rede já existente antes da pandemia, tendo como principais pontos focais outras mulheres migrantes, principalmente as mães chefes de família. Com essas redes, várias organizações passaram a realizar diversas campanhas desde que se iniciou o cenário pandêmico. Além de arrecadar e oferecer cestas básicas, elas trataram de dar apoio a essa população no acesso a programas de assistência social.
Maria Fernanda, do coletivo Diásporas Africanas, avaliava em 800 o número de famílias alcanças pela sua organização nesse um ano de atividade de distribuição de cestas básicas. A Equipe de Base Warmis Convergência das Culturas, outro coletivo de mulheres migrantes da cidade de São Paulo, por sua vez, informou em uma prestação de contas publicada em suas redes que, entre abril e agosto de 2020, chegou a entregar 415 cestas para famílias imigrantes, dando assistência a, aproximadamente, 1250 pessoas migrantes e refugiadas, incluindo crianças[6].
Por tanto, esse trabalho de acionar e fortalecer as redes criadas e mantidas por mulheres migrantes foi fundamental para as comunidades migrantes no contexto pandêmico vivenciado até aqui. No texto "Unir a mulherada porque só a gente sabe a importância de ter uma rede de apoio no exterior", Luciana Kornalewski, já mencionada anteriormente, nos conta desse mesmo tipo de ação em Nova York, onde uma rede de vários coletivos locais teve na organização das mulheres migrantes o principal meio para localizar brasileiros e brasileiras que precisavam desse auxílio, arrecadar esses recursos e coordenar a sua entrega.
A importância estratégica dessas organizações de mulheres migrantes para a assistência às famílias migrantes, em especial nessas ações de distribuição de cestas básicas, já havia sido apontada no início da pandemia, em junho de 2020, na live "Campanhas solidárias para imigrantes na pandemia", realizada pelo Museu da Imigração. Naquele evento, Oriana Jara e Jobana Moya, ativistas dos direitos humanos em São Paulo, localizavam justamente no trabalho e contato prévio dessas organizações a capacidade de reativar essas redes nesse momento de emergência.
Um ponto a se considerar, porém, é que essas mesmas ativistas não deixaram de levantar uma importante ressalva sobre os limites e a pertinência desses coletivos responderem a esse tipo de demanda. Afinal, esses grupos haviam sido criados para defender direitos, proposta que não se reduzia, por tanto, a gerir demandas não respondidas pelos setores públicos. Meses depois, esse mesmo tipo de questionamento surgiria na fala de Nadia Ferreira, liderança migrante que mencionou os inúmeros processos de adoecimento decorrentes desse tipo de atuação. Segundo ela, ao tentar responder às demandas que superariam as capacidades de coletivos não constituídos com esse intuito, muitas das mulheres se viram sobrecarregadas e elas mesmas sem amparo. Uma pergunta importante levantada por essa ativista, então, em umas das mesas de debate foi "Quem cuida de quem está cuidando?". A pergunta seguirá como uma questão para aqueles que trabalham com a temática migratória.
Um último elemento a ser ressaltado é a capacidade de mobilização política dessas redes e organizações de mulheres migrantes. Os relatos e as análises se somam às pesquisas anteriores[7] para mostrar como, mesmo nesse cenário de imobilidade, organizações e coletivos logram levantar questões e defender direitos em variadas frentes. Na entrevista "Não tem país livre sem mulheres livres", a ativista Rawa Alsagheer, que reside no Brasil desde 2015, nos conta da situação das mulheres na Jordânia e na Palestina. Naquele momento, a violência contra as mulheres nesses países havia crescido exponencialmente, muito vinculado aos processos de violência contra mulheres em âmbitos domésticos, mas não só, visto que mulheres que protestavam contra essa violência chegaram a ser agredidas em espaços públicos. Esses casos geraram uma mobilização ainda maior com o apoio e ativismo de mulheres como Rawa, que internacionalmente se rearticularam para dar visibilidade ao caso e às manifestações de outras mulheres nesses países.
Jhannyna Siñani, citada mais acima, no momento da entrevista em 2020 estava rearticulando uma rede de empreendedores migrantes, que como ela trabalhavam no setor têxtil. Frente a compradores que ofereciam preços baixos para produção das máscaras de proteção[8], nossa entrevistada dizia que seguiria buscando maneiras de incorporar mais trabalhadores e trabalhadoras do setor para conseguirem coletivamente negociar preços mais justos. É esse movimento de encontrar outras mulheres migrantes e buscar reconhecimento como sujeito político e sujeito de direitos que pode ser visto também no texto "Temos que aprender todo dia um pouco, pois o cotidiano é um aprendizado", com Diana Soliz. Na entrevista, a migrante, que chegou ao Brasil há 24 anos, relata a sua trajetória como trabalhadora doméstica no país e o seu processo de sindicalização. Atualmente, atua como diretora sindical e considera como principal objetivo e desafio, para a categoria das trabalhadoras domésticas, a regularização do trabalho, por meio de carteira assinada. Segundo Diana, a luta por regularizar a atuação dessas profissionais, principalmente as diaristas, é o caminho para efetivar outros direitos já conquistados por migrantes e não-migrantes.
Por fim, em "Campanha: Regularização imediata, permanente e sem condições para imigrantes no Brasil", Jobana Moya apresenta a ação internacional realizado em defesa do direito à regularização migratória, levada adiante com outros movimentos de migrantes de países como Argentina, Chile, Espanha e Portugal. Como aponta Jobana, a ideia de iniciar a campanha surgiu em seguida das primeiras atuações de distribuição de cestas básicas, na medida em que era necessário ir além das necessidades específicas daquele momento, incidindo também em um tema que estrutura as experiências de migrantes e refugiados. Esses últimos exemplos nos mostram que, além de endereçarem demandas mais diretas do contexto pandêmico, a atuação das mulheres migrantes opera na vocalização de pautas estruturantes na luta por direitos no Brasil.
Seguir acompanhando as mulheres migrantes
Nesse breve sobrevoo entre algumas das publicações e lives feitas por mulheres migrantes ou que trataram da sua situação na pandemia, pudemos ver como as condições anteriores à pandemia se sobrepuseram de variadas maneiras ao atual cenário. Nesse sentido, ressaltamos também a importância assumida pelas mulheres migrantes como principais fontes de renda e de cuidado em suas famílias. Essa condição, além de afetar o modo como enfrentaram o risco de contágio e adoecimento, também influiu no modo como lidaram com a deterioração das condições econômicas que se seguiram. Foi levantado em vários estudos, ainda, como processos de vulneração dessas mulheres estariam se aprofundando, seja nos espaços de trabalho, de circulação ou doméstico. Tratava-se também de um importante alerta sobre as violências masculinas que tendem a se intensificar em conjunturas como as atuais.
Por fim, apresentamos também algumas contribuições que mostravam o trabalho em rede dessas mulheres de apoio a população migrante. Além de endereçar as demandas que estão surgindo, essas mulheres estão constantemente vocalizando diversas pautas que surgem em defesa dos direitos. Desse curto trajeto realizado aqui, temos certeza que aprendemos muito neste último ano, apesar de os desafios com a pandemia não pararem de crescer. Nesse sentido, para seguir buscando as melhores formas de atravessarmos esse momento, continuará sendo, cada vez mais, importante escutar e seguir acompanhando essas mulheres em movimento.
Referências
[1] Este é um nome fictício dado por Heloisa Freitas, autora do texto, para proteger a identidade de sua entrevistada.
[2] MORA, Claudia, 2008. "Globalización, género y migraciones". Polis, 20. Acessado pela última vez em 24 de fevereiro de 2021. http://journals.openedition.org/polis/3544
[3] Houve, segundo Friedrich, "aumento de 50% nos registros de abuso doméstico apenas na Colômbia; de 30 vezes nas pesquisas online sobre proteção em caso de violência de gênero em El Salvador e Honduras; de 50% nas chamadas de emergência que relatam ataques a mulheres no México e 75% nos casos de feminicídio na Venezuela".
[4] Mesa "O racismo no Brasil no âmbito das migrações contemporâneas", realizada no curso online "A Hospedaria de Imigrantes e os tijolos do racismo estrutural no Brasil". O conteúdo está disponível no YouTube.
[5] Nádia Ferreira é fundadora do Coletivo Iada África e da Anin Magá Expressa África. Natali Mamani integra a Equipe de Base Warmis-Convergência das Culturas. Maria Fernanda Pascoal é membro fundadora do Coletivo Diásporas Africanas.
[6] https://www.facebook.com/EquipeDeBaseWarmisConvergenciaDasCulturas/photos/1580728365421533 (Acessado por última vez em 24 de fevereiro de 2021.)
[7] WALDMAN, Tatiana Chang; MORALES, Maria Angélica Beghini. Entre Trajetórias e Memórias: mulheres migrantes e a luta por direitos na coleção de história oral do Museu da Imigração de São Paulo. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X.
[8] "Imigrantes em SP ganham R$ 0,05 para confeccionar máscaras antiCovid". Jornal Folha de S.Paulo, julho de 2020. Acessado pela última vez em 24 de fevereiro de 2021. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/imigrantes-em-sp-ganham-r-005-para-confeccionar-mascaras-anticovid.shtml
Foto da chamada: Arica / Crédito: Claudio Casparrino / Esta foto foi realizada para o "Projecto Fondecyt 1190056", com financiamento da Agencia Nacional de Investigación y Desarrollo de Chile (ANID). Para mais informações: www.mujeresyfronteras.com.